16 Junho 2020
"O presidente Trump aparentemente apresentou milhões de seus colegas americanos ao fato de que um arcebispo, como Carlo Maria Viganò, com uma carreira longa e influente, também escreve coisas que podem ser carinhosamente chamadas de perturbadas", escreve Michael Sean Winters, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 15-06-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
De forma alguma a decisão do presidente Donald Trump de tuitar dizendo como se sentiu honrado por receber uma carta untuosa de Dom Carlo Maria Viganò, ex-núncio apostólico nos Estados Unidos, equivale a nada politicamente. O interesse que esse desdobramento pode ter – além do seu primoroso valor voyeurístico – está no lado religioso da dupla Igreja e Estado.
Comecemos pelo voyeurismo. Esses dois homens, ambos com mais de 70 anos, nascidos em famílias ricas, o arcebispo sendo obcecado com suas queixas enquanto o presidente se fixa em suas próprias questões, compartilham, obviamente, de uma afinidade por teorias da conspiração. Certa vez, fiquei esperando que Viganò trouxesse o caso do Terceiro Segredo de Fátima ao presidente, em que esse iria pensar que estava falando a respeito de alguma trabalhadora doméstica de Mar-a-Lago.
Em outros sentidos, eles diferem bastante. Viganò é uma espécie de Savonarola moderno, convencido de que a licenciosidade sexual – e especialmente a homossexualidade – é a origem de tudo o que aflige a sociedade moderna e a Igreja.
Trump é um libertino sexual que, semanas depois de um tiroteio em uma boate gay na cidade de Orlando, realizado por alguém que dizia pertencer a uma organização terrorista islâmica, falou à Convenção Nacional Republicana de 2016: “Como presidente, farei tudo o que estiver ao meu alcance para proteger os nossos cidadãos LGBTQs da violência e opressão de uma ideologia estrangeira odiosa”. Poderíamos ser cínicos e concluir que Trump pensou que sua base cristã evangélica gosta menos de gays do que de muçulmanos, mas nada consta na longa carreira pública de Trump para nos permita igualar isto ao tipo de homofobia que o arcebispo exibe rotineiramente.
Discordo de David Gibson, diretor do Centro de Religião e Cultura, da Universidade Fordham, que disse ao Tablet: “Com os católicos brancos Trump está em um terreno perigoso. Os católicos que apoiam o presidente podem não gostar do Papa Francisco, mas, se o virem atacar o papa, estes fiéis podem não ficar felizes”. A maioria dos católicos brancos vota no Partido Republicano e há tempo estão dispostos a abrir mão dos ensinos da Igreja a fim de apoiar seus candidatos. (É claro que esse fenômeno também se vê na esquerda católica.) É provável que os católicos apoiadores de Trump não se importem com um ataque a um papa do qual provavelmente não gostam muito, afinal.
Raymond Arroyo e colegas do canal EWTN – o Pe. Gerald Murray e o escritor Robert Royal – não gastaram muito tempo falando de Viganò, mas usaram a carta que este escreveu para reclamar do tratamento que Trump recebeu do arcebispo de Washington, Dom Wilton Gregory, quando Gregory se pronunciou contra a foto de Trump no Santuário São João Paulo II. Um verdadeiro absurdo. Arroyo e seus convidados argumentaram que Gregory demonstrou sua antipatia pelo presidente e que os bispos estão bem informados quanto a respeitar o cargo da presidência, não importa quem ocupe a Casa Branca. Nenhum dos três lembrou o tratamento que o presidente Barack Obama recebeu quando foi à Universidade de Notre Dame, em 2009.
Embora pouco provável que acarrete alguma consequência política, esse episódio de Viganò pode fazer com que certos católicos reconsiderem a posição religiosa que adotam. O programa de televisão de Arroyo é uma das formas pelas quais notícias e opiniões migram da ala católica extremada para dentro do catolicismo conservador convencional. Suspeito que a carta de Viganò contenha tantos absurdos que até mesmo Arroyo sabia que seria um erro dar-lhe atenção. Mas, com seu tuíte, o presidente aparentemente apresentou milhões de seus colegas americanos ao fato de que um arcebispo, com uma carreira longa e influente, também escreve coisas que podem ser carinhosamente chamadas de perturbadas.
So honored by Archbishop Viganò’s incredible letter to me. I hope everyone, religious or not, reads it! https://t.co/fVhkCz89g5
— Donald J. Trump (@realDonaldTrump) June 10, 2020
Até o tuíte do presidente, a carta de Viganò havia sido noticiada no LifeSiteNews, sítio eletrônico pouco conhecido. Os que frequentam este endereço eletrônico não ficariam chocados com as teorias bizarras da conspiração nem com o teor apocalíptico da carta do prelado. Coisas assim são normais nele. Quando coisas do tipo saem do LifeSiteNews e adentram a imprensa convencional católica, geralmente via EWTN ou em seu serviço de notícias, o sítio Catholic News Agency, então os bispos precisam prestar atenção e se preocupar com as consequências.
Dessa vez, foi o tuíte do presidente que levou milhões ao site LifeSiteNews. Me pergunto o que estas pessoas farão do que irão ler lá. Muitos católicos, a maioria formada por conservadores, não questionam o Concílio Vaticano II, não odeiam gays, não acham que a volta de Jesus está prestes a acontecer e que será ruim para praticamente todo mundo. As compreensões religiosas pré-conciliares que este sítio eletrônico vende não se assemelham em nada com os ensinamentos de São Paulo VI, de São João Paulo II e do Papa Emérito Bento XVI, isto é, os ensinamentos que a maioria dos católicos ouvem na missa há muitos anos.
Espero que esses novos visitantes do LifeSiteNews fiquem horrorizados e repensem o que querem dizer quando se chamam de “conservadores”, espero talvez até que reconsiderem quaisquer preconceitos que possam ter contra Francisco. Mas… esperar que mudem em se tratando de política? Nem um pouco.
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Católicos conservadores ficarão horrorizados com a mais recente carta de Viganò? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU