19 Julho 2016
"Além de apenas lembrar as pessoas assassinadas na boate Pulse, memoriais católicos incluem atos de denúncia profética. Eles abriram espaço na Igreja para as pessoas LGBTs, para se reconhecer não só os seus sofrimentos neste momento como também suas presenças constantes nas nossas comunidades e as contribuições que têm a oferecer", escreve Bob Shine, coordenador de mídias sociais do New Ways Ministry, em artigo publicado por Bondings 2.0, 18-07-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
O New Ways Ministry é um grupo de defesa e justiça voltado à comunidade católica LGBT e que busca a reconciliação deste grupo com as comunidades cristã e civil mais amplas. Bob Shine escreve frequentemente para o blog Bondings 2.0, um dos projetos do New Ways Ministry.
Eis o artigo.
Quarenta e nove pessoas morreram mês atrás no Pulse, clube noturno LGBT em Orlando, e outas 53 ficaram feridas. Estas vítimas, constituindo o pior tiroteio em massa na história moderna americana, desencadeou diálogos sobre o preconceito e a violência contra a comunidade LGBT e levou inúmeros católicos a guardar na memória as vítimas.
A Irmã Jeannine Gramick, uma das fundadoras do New Ways Ministry, diz que é preciso que se fale mais sobre este evento, uma vez que ainda há muito silêncio no mundo – e na Igreja – em torno da violência praticada contra as pessoas LGBTs. Reconhecendo uma longa história de violência contra essas pessoas e as ameaças diárias que continuam a enfrentar “através de ameaças verbais, intimidação e assédio moral, e até mesmo a prisão, tortura e morte”, a religiosa escreveu em artigo publicado na internet:
“Um tipo de violência muitas vezes não reconhecido é a violência do silêncio. Depois do massacre de Orlando, alguns em nossa Igreja sentiram-se culpados por este tipo de violência. Manchetes do mundo inteiro noticiaram que o tiroteio ocorreu em um clube gay, mas que declarações divulgadas pela assessoria de imprensa do Vaticano, pela Conferência dos Bispos Católicos dos EUA e do bispo de Orlando visivelmente ignoravam o fato de que as pessoas visadas eram lésbicas, gays, bissexuais ou transgêneras. Alguns bispos não emitiram nenhuma declaração sequer.
O silêncio é uma violência quando, como neste caso, nega a existência de toda uma categoria de pessoas, as pessoas que foram alvo de violência física por causa daquilo que são. Se não reconheço a sua existência, não preciso reconhecer os seus direitos; eu não reconheço que você precisa de proteções adicionais. Além disso, sou incapaz de conhecê-lo ou de me relacionar com você de uma forma significativa.
O lema ‘Silêncio = Morte’, adotado pelos ativistas na década de 1980, não só questionava o silêncio do presidente Ronald Reagan sobre a Aids, mas declarou corajosamente também que, por uma questão de sobrevivência, o silêncio em torno da repressão a pessoas LGBTs deve acabar. A violência do silêncio mata”.
Gramick reconheceu que menos de 10 bispos americanos identificaram as vítimas de Orlando como predominantemente pessoas LGBTs. Desses, somente uns poucos desafiaram os preconceitos contra os gays na Igreja e na sociedade. Um bispo da Flórida inclusive criticou um outro bispo que, corajosamente, reconheceu as contribuições da Igreja à homofobia.
Relacionando o incidente em Orlando com a notícia do questionamento proposto pelo Vaticano a, pelo menos, três ordens religiosas femininas dos EUA, Gramick pediu pelo fim do silêncio e do sigilo.
“As investigações feitas pela Igreja a indivíduos ou grupos geralmente se dão em segredo, o que tem gerado consequências desastrosas para a vida da instituição. O sigilo infunde medo e faz com que autoridades exerçam controle da mente e da ação. Quando assuntos significativos são mantidos em segredo dos fiéis, os clérigos não podem ser responsabilizados por seus atos, nem os fiéis podem se engajar em diálogos informados sobre questões importantes (...)
O silêncio pode até mesmo destruir a família espiritual que chamamos de Igreja (…) Se a nossa Igreja fosse uma democracia e se este ano fosse ano eleitoral, o diz que eu carregaria comigo seria: ‘Para baixo com a violência do silêncio! Avante para a vitória da expressão!’”.
Memorial montado na paróquia jesuíta Farm Street, em Londres.
Outros católicos de todo o mundo vêm se manifestando desde o tiroteio em Orlando há um mês, lembrando as vítimas e comprometendo-se com a causa da justiça LGBT.
O grupo LGBT Catholics Westminster, reunido na paróquia jesuíta Farm Street em Londres, lembrou as vítimas durante uma missa no fim de junho. O homilista Pe. Tony Nye desafiou os presentes a questionarem suas prioridades em vista do ocorrido em Orlando, perguntando-lhes:
“Será que temos Deus e a justiça divina em primeiro lugar? Isso pode significar controlar a nossa raiva e descobrir qualquer preconceito que perdure em nossos pensamentos. Isso pode significar estarmos pronto para o custo que o seguimento ao nosso Senhor pode acarretar, o custo de nos levantarmos e sermos mais um em nome da justiça, de respeito ao próximo quem quer que ele ou ela possa ser, de realmente buscarmos a vontade de Deus em nossa tentativa de seguir o chamado de Cristo”.
A organização Gay and Lesbian Outreach, de Chicago, recordou as vítimas na missa da semana seguinte, colocando fotos delas diante do altar e lendo o nome e a idade das pessoas mortas. Uma carta de Dom Blase Cupich foi lida. Nela, há a declaração às pessoas LGBTs de que o prelado e a arquidiocese estão do lado delas.
Em um incidente mais problemático, uma missa em 24 de junho para as vítimas realizada em San Juan, Porto Rico, foi interrompida por uma ameaça de bomba, e a Comunhão foi distribuída do lado de fora, segundo informou o sítio National Catholic Reporter. Temores envolvendo a presença de uma mochila largada ao chão, temores depois refutados, relevaram um sentimento acentuado de vigilância. Dom Roberto Gonzalez Nieves, arcebispo de San Juan, relacionou o memorial à festa do dia, Festa de São João Batista, padroeiro da cidade, a quem o arcebispo disse que “foi mais uma vítima do ódio e do capricho”. Gonzalez pediu pelo fim da discriminação que as pessoas LGBT enfrentam atualmente.
Além de apenas lembrar as pessoas assassinadas na boate Pulse, memoriais católicos incluem atos de denúncia profética. Eles abriram espaço na Igreja para as pessoas LGBTs, para se reconhecer não só os seus sofrimentos neste momento como também suas presenças constantes nas nossas comunidades e as contribuições que têm a oferecer. Alfred Pang escreveu recentemente sobre a forma como as celebrações do orgulho gay têm funcionado na esteira do acontecido em Orlando. A Rede Global de Católicos Arco-Íris – GNRC lançou uma nota de solidariedade às vítimas de Orlando e demais pessoas LGBTs nos Estados Unidos.
Uma petição, já assinada por 1.300 pessoas, pede que o Papa Francisco retire a linguagem preconceituosa referente a lésbicas, bissexuais e gays presente no Catecismo da Igreja Católica. Pede também que apoie os esforços de descriminalização da homossexualidade em curso nas Nações Unidas. A petição, disponibilizada online, diz:
“Diante do horror [de Orlando], não é suficiente lamentar ou mesmo simpatizar, devemos lutar e lutar contra o que leva ao ódio e ao crime (…) Papa Francisco, o senhor pode combater o ódio. Revogue imediatamente o Art. 2357 (1) do Catecismo, que estigmatiza a orientação sexual. A repressão da homossexualidade como crime é, como sabemos, um terreno fértil para uma transição ao ato assassino, motivo pelo qual pedimos-lhe que faça uso de sua autoridade na ONU e (…) em vista da descriminalização universal da homossexualidade”.
Estas liturgias e estes momentos de oração, estas declarações e denúncias lembram o Corpo de Cristo, pondo uma tragédia horrível no contexto da comunhão dos santos e da ressurreição. A Irmã Julia Walsh escreveu sobre esta experiência de luto como um processo ao mesmo tempo vivificante. Walsh participou de uma missa onde rostos das vítimas foram impressos em cartazes, sobre o que escreveu:
“Os nossos corpos estão unidos. Somos um; juntos na tristeza, na dor e no trauma. Ninguém sofre sozinho. Estamos juntos em nossas mágoas; estamos frustrados e decepcionados juntos (...)
“Estamos reunidos num lugar sagrado, num lugar onde poderíamos segura e plenamente expressar a nossa experiência comum e as nossas crenças. De certo modo, não somos diferentes dos que entraram na boate Pulse, em Orlando, buscando refúgio de um mundo que os perseguia por causa da diferença. Assim como eles tinham encontrado um lar e uma comunidade amorosa, de aceitação, onde eles se sentiam livres para serem eles próprios, nós católicos encontramos o nosso lar em torno da mesa eucarística e somos livres para expressar a nossa fé. O nosso mar de rostos curvando-se em direção ao Pão Partido para Todos não é diferente do mar de rostos sagrados que encontravam segurança e liberdade numa pista de dança.
Esperando uma liturgia típica, adentrei a igreja com a minha tristeza pelas vítimas de Orlando tragadas por minha vida ocupada. Saí transformada, exausta, com os rostos sobre os pôsteres e com o tipo de pessoas na comunidade de fé embalsamado em minha memória”.
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Um mês após o massacre de Orlando, Irmã Jeannine Gramick denuncia silêncio sobre a violência - Instituto Humanitas Unisinos - IHU