22 Novembro 2018
A tentativa de “golpe” contra Francisco explode como uma “bomba midiática” em Dublin, durante o pedido de perdão às famílias das centenas de menores e seminaristas abusados pelo clero irlandês. É a denúncia do arcebispo Viganò, que envolve a comitiva de nada menos do que três pontífices e que acusa Francisco de ter encoberto o cardeal pedófilo McCarrick.
Capa do livro | Divulgação
Mas a bomba é apenas a deflagração mais forte e mais recente de uma guerra interna que está sendo travada desde o primeiro dia da eleição do Papa Francisco: uma batalha sem descontos entre grupos de poder, incluindo a Cúria vaticana e conferências episcopais do mundo, entre ultraortodoxos e reformadores.
Um livro recém-publicado e escrito por dois grandes vaticanistas, Andrea Tornielli e Gianni Valente, intitulado Il giorno del giudizio [O dia do juízo] (Ed. Piemme, 288 páginas), desmascara a grande mentira do dossiê Viganò. Uma investigação exclusiva com testemunhos surpreendentes e “gargantas profundas”.
O que está acontecendo no Vaticano? Falamos sobre isso nesta entrevista com Andrea Tornielli, vaticanista do jornal La Stampa e coordenador do sítio Vatican Insider.
A reportagem é de Pierluigi Mele, publicada em Confini, 20-11-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Andrea Tornielli, seu livro, escrito com Gianni Valente, desmascara o grande engano que se esconde por trás do famigerado dossiê Viganò. Um documento escrito pelo ex-núncio apostólico nos Estados Unidos, o arcebispo Carlo Maria Viganò, para desacreditar o Papa Francisco, acusando-o de ter encoberto o cardeal estadunidense Theodore McCarrick, pedófilo e abusador sexual em série de jovens seminaristas. O ataque de Viganò contra o papa chegou até o pedido de renúncia do Papa Francisco. Trata-se de um ataque “demoníaco” de Viganò contra a Igreja?
O demônio é o “Grande acusador” da Igreja e trabalha cotidianamente para dividi-la. O dossiê Viganò e toda a operação político-midiática que o apoia, chegando a pedir o impeachment do papa (algo sem precedentes na história recente da Igreja), têm essa característica. Um arcebispo viola todos os juramentos que fez e constrói um dossiê com elementos verdadeiros, memórias fugazes e omissões interessadas, com o único propósito de acusar o sucessor de Pedro, mostrando, assim, que não conhece sequer o Código de Direito Canônico: a única condição para que a renúncia de um papa seja válida é que essa renúncia seja feita de modo absolutamente livre.
Pressionar para que ele se demita é o modo para invalidar uma eventual renúncia. Além disso, é totalmente evidente a absoluta instrumentalidade da operação Viganò, que tenta descarregar apenas sobre Francisco qualquer responsabilidade sobre a gestão do caso McCarrick, esquecendo que o Papa Bergoglio foi o único pontífice a punir duramente o já ex-cardeal, tirando-lhe a púrpura, como já não acontecia na Igreja há 91 anos.
Um pequeno parêntese: por que esse título?
Porque acreditamos que, infelizmente, está em curso, em alguns setores da Igreja, uma espécie de mutação genética, que leva até mesmo bispos a confundir a própria Igreja com uma corporação, com uma empresa e a considerar o papa como um diretor-executivo submetido ao voto dos acionistas. Um sinal preocupante dos tempos em que vivemos.
Voltemos ao livro. Viganò, ao construir a “grande mentira” contra o Papa Francisco, manipula a realidade dos fatos. No seu dossiê, ele envolve também os antecessores imediatos do Papa Francisco: João Paulo II e Bento XVI. Sobre eles, porém, Viganò tem uma atitude diferente. É assim?
Sim, e isso é surpreendente para quem tenta reconstruir os fatos sem preconceitos, sem aqueles preconceitos anti-Francisco que estão disseminados em tantos artigos produzidos pela galáxia político-midiática antipapal nos Estados Unidos e na Itália. Há um papa, João Paulo II, que promoveu McCarrick por quatro vezes. Há outro papa, Bento XVI, que, diante de acusações e denúncias, aceitou a renúncia de McCarrick, sem deixá-la completar a prorrogação de dois anos e, depois, tentou limitar seus movimentos com instruções que não eram punições. McCarrick, durante todo o pontificado de Bento XVI, apesar das instruções recebidas, continuou viajando, presidindo celebrações, até mesmo visitando o Vaticano e encontrando-se, na frente de todos, com aquele papa que tinha dado o seu assentimento às instruções contra ele. Então, para não criar escândalo, Bento XVI e os seus colaboradores decidiram não prosseguir com as verdadeiras sanções e, sobretudo, não publicar nenhuma instrução ou restrição.
E, por fim, há um papa, Francisco, que não modificou de modo algum as instruções dadas pelo seu antecessor, mas que removeu a púrpura do aposentado McCarrick, com quase 90 anos, como não acontecia há 91 anos na história da Igreja. Mas atenção: todos esses fatos não significam, de modo algum, que se queira jogar a responsabilidade sobre os papas do passado. McCarrick foi muito hábil e inteligente para se defender no momento da nomeação a Washington, é uma personalidade poliédrica, com grandes relações bipartidárias no mundo político e também foi um grande fundriser, um grande arrecadador de dinheiro.
João Paulo II nomeou milhares de bispos. Neste caso, como em outros, ele foi induzido a cometer erros. Mas é verdadeiramente um absurdo descarregar a culpa sobre Francisco, como Viganò faz, apresentando o Papa Wojtyla como um pontífice muito doente e, portanto, refém da comitiva ainda cinco anos antes da sua morte: isso simplesmente não é verdade. E Viganò também sabe muito bem disso. Também chama a atenção que, na lista de pessoas envolvidas, ele omite o nome do colaborador mais próximo e influente de João Paulo II, o seu secretário, o bispo Stanislaw Dziwisiz.
Na difusão da “grande mentira” de Viganò, não faltam cúmplices. Quem são?
Viganò teve o apoio prévio e, depois, o apoio absoluto na operação de uma galáxia político-midiática, de TVs, jornais, jornais online e blogs antipapais, que nos últimos anos se especializaram no ataque cotidiano ao pontífice, independentemente do que ele faça ou diga, muitas vezes colocando na página uma imagem da realidade falsificada e instrumental, ignorando deliberadamente o magistério de Francisco. Em alguns casos, trata-se de mídias apoiadas por ambientes que estão pouco interessados em questões doutrinais, mas estão muito assustados com a mensagem do atual papa sobre as questões da economia, das finanças, do tráfico de armas, do ambiente, das migrações e da pobreza. Não é do meu estilo dar nomes e, portanto, paro por aqui.
Sabemos que o documento de Viganò foi bem recebido pelos ambientes anti-Francisco europeus e estadunidenses. Em particular, vocês se debruçam, com razão, sobre os estadunidenses. Um mundo composto de colusões entre ambientes eclesiais, políticos e a grande finança. Quais são os seus objetivos políticos ou não?
Esses ambientes não suportam que haja um papa que se tornou uma autoridade mundial confiável sobre as questões da doutrina social. Francisco, com os seus discursos e as suas encíclicas – pensemos na Laudato si’ – levantou uma pergunta séria sobre a sustentabilidade do atual modelo econômico-financeiro, pedindo a todos que considerem os remédios. Ele indicou pela primeira vez a estreita conexão existente entre problemas geralmente considerados desvinculados, como a crise ambiental e a defesa da criação, as guerras, a pobreza, as migrações, o sistema econômico-financeiro. Isso dá medo, porque certos poderes não suportam que essas questões sejam levantadas e preferem nos fazer acreditar que vivemos no melhor dos sistemas possíveis, até mesmo para a fé cristã, e que, no máximo, é preciso ensinar as pessoas a serem honestas. Francisco, em vez disso, mostrou que existem problemas estruturais. Existem aquelas que João Paulo II, ainda na Sollicitudo rei socialis (1987), chamava de “estruturas de pecado”.
No livro, vocês examinam o inquietante “Red Hat Report” (Relatório dos Barretes Vermelhos). O que é exatamente e quais as suas finalidades? Quem ele quer atacar?
O Red Hat Report é apenas um – o mais perturbador no momento – dos fenômenos que mostram que há leigos e até mesmo bispos, infelizmente, que confundem a Igreja com uma corporação, pensando que a limpeza e a luta contra a corrupção virão de normas empresariais cada vez mais precisas. Mas essa é apenas a parte, por assim dizer, mais “nobre” da operação. Há também uma evidente intenção de pilotar o próximo conclave com base na divulgação de dossiês e que já colocaram na mira o cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado.
No livro, vocês lembram as batalhas de Bento XVI e de Francisco contra a pedofilia. Um câncer mortal para a Igreja. O Papa Francisco vincula a sua luta contra o crime da pedofilia à luta contra o clericalismo. Por quê? Tem-se consciência dele na comunidade cristã?
Ainda falta uma consciência generalizada. Francisco defende,com razão, que cada abuso sexual cometido por um clérigo contra um menor ou um adulto vulnerável tem uma origem no clericalismo e sempre se configura primeiro como abuso de poder e de consciência. Não adiantam sabe-se lá quais estudos para compreender isso: o padre abusador exerce uma influência sobre o menor ou sobre o adulto vulnerável. O próprio McCarrick era o bispo dos seminaristas e dos jovens padres (todos adultos) que ele levava para a casa de praia. Ele exercia sobre eles um poder e uma influência. Não podem ser apresentadas como “relações homossexuais” assim como há entre duas pessoas adultas, livres e consensuais. Parece-me até mesmo lapalissiano. No entanto, o fato de dizer isso desencadeia a reação da galáxia político-midiática antipapal, que repete obsessivamente: o problema não é o clericalismo, mas sim a homossexualidade.
Na Igreja Católica, existe a grande questão da homossexualidade. Um tema difícil para a Igreja... É isso?
É um tema sensível. Infelizmente, a seleção nos seminários, nesse sentido, deixou muito a desejar, e foram ordenadas ao sacerdócio pessoas que não tinham uma sexualidade resolvida e uma capacidade de viver o celibato. Mas estão sendo dados passos significativos nessa direção. Fico impressionado com um fato: aqueles que hoje gritam contra a homossexualidade na Igreja são os mesmos que, há alguns anos, viam como fumaça nos olhos o recurso a psiquiatras e psicólogos nos seminários. Uma das acusações que alguns no Vaticano faziam ao então cardeal Jorge Mario Bergoglio era de usar psiquiatras demais no seminário de Buenos Aires. É impressionante que hoje sejam precisamente aqueles que não queriam essas consultas que acusam o papa pela homossexualidade na Igreja.
Em suma, o documento de Viganò apenas aumentou, em certos ambientes conservadores, o desejo muito mundano de poder e revanche. Um pretexto para uma pesada operação de lobby. A Igreja dos opositores de Francisco se assemelha à Igreja do “Grande inquisidor” de Dostoiévski. Uma Igreja, esta sim, reconfortante. Como você acha que o caminho de Francisco vai se desenvolver? Para os opositores, ele não tem mais nada a dizer...
Eu não sou capaz de dizer isso. Certamente, há aqueles que querem transformar a Igreja em um grande tribunal único; que se colocam no pedestal e acusam outros de serem corruptos apresentando-se como os únicos puros (é uma pequena que, também no caso de Viganò, isso não seja tão verdadeiro); aqueles que buscam salvação e abrigo nas normas de comportamento, nos códigos de ética e empresariais cada vez mais precisos. A resposta que Francisco nos oferece e que, antes dele, Bento XVI ofereceu é outra e tem a ver com a fé cristã: somos todos pobres pecadores, todos necessitados de ajuda, perdão, misericórdia. A resposta mais verdadeira é a da oração, da penitência. Chamou-me a atenção que Francisco tenha se voltado ao povo de Deus, convidando-o a rezar o terço, invocando também São Miguel Arcanjo contra o demônio, o “Grande acusador” que quer dividir a Igreja. Felizmente para os adversários – mas também para alguns fãs que tentaram e tentam impor-lhe a agenda deles – Francisco não tem mais nada a dizer. Porque significa, em vez disso, que ele realmente tem muito a dizer e a testemunhar, levando-nos de volta ao essencial da fé cristã.
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''O caso Viganò é um ataque aos fundamentos da Igreja.'' Entrevista com Andrea Tornielli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU