Diante das curvas ascendentes de infectados e mortos, a necropolítica assume a contradição entre economia e vida como condição para o seu jogo mortífero, enquanto a democracia aparece em toda a sua forma paradoxal. Para que o isolamento funcione é preciso fazer circular, para que a circulação não seja destruída pela pandemia, é preciso isolar e distanciar. A catástrofe seria justamente imaginar que a propagação do vírus impõe necessariamente uma lógica da contradição, naturalizando, assim, uma das piores marcas da sociedade brasileira: o grande e rotineiro sacrifício de vidas (precárias, pobres, negras) em prol do funcionamento de uma máquina fundada na desigualdade e na injustiça.
O texto é de autoria coletiva do Multinômade, publicado em seu portal, 08-04-2020.
O primeiro consenso que podemos extrair da pandemia do COVID-19 é o fracasso de todos os governos do mundo, com exceção de alguns pequenos países asiáticos, em antecipar e organizar uma resposta à altura do problema. Desde a repressão, no caso chinês, ao primeiro médico que alertou sobre o surgimento do novo vírus, passando pela indiferença e inércia dos países europeus, o apego à normalidade levou os governos à perda de um tempo precioso que custou e custará dezenas de milhares de vidas. Do outro lado do Atlântico (ou do Pacífico), a situação é pior. Nos casos de Trump (EUA), Lopez Obrador (México) e Bolsonaro (Brasil), a descrença se transformou em ação política, convertendo a postura antissistema em verdadeiro desdém organizado contra a sociedade. Diante de uma realidade que se impôs, o caso brasileiro é ainda mais grave, representando hoje o único país (com exceção da Bielorrússia), cuja autoridade máxima não só minimiza o problema, mas defende que as mortes devem fazer parte da rotina do país, custe o que custar.
Mas seria um erro nos concentrarmos apenas nessa manifestação abertamente mortífera. Precisamos colocar nossa reflexão na linha do tempo. No último ciclo político-econômico anterior ao bolsonarismo, no período que vai da crise global de 2008 até Junho de 2013, culminando na crise brasileira de 2015, o Brasil viveu sob a retórica do preparo. Era preciso preparar a aceleração do Brasil Maior com a construção de grandes barragens na Amazônia, grandes obras de infraestrutura ligadas ao extrativismo e grandes empréstimos e subsídios para uma suposta “indústria nacional”. Era preciso preparar os megaeventos esportivos com impactantes intervenções urbanas, com a construção de equipamentos esportivos, estádios caríssimos e microapartamentos para concentrar milhares de famílias removidas de suas casas.
Enquanto o Brasil ensaiava um salto que, na verdade, apontava para o atual abismo, as condições de vida passavam por uma mudança silenciosa: o aumento de tarifas do transporte chegando a 60% acima da inflação; o percentual de famílias endividadas atingindo 45% em 2014 (chegando a 61.2% em 2018); uma triplicação do número de trabalhadores terceirizados (12 milhões), uma quintuplicação do número de pessoas encarceradas (715 mil presos); os gastos das famílias representando 60% dos gastos totais em saúde do país, a rede hospitalar tornando-se 70% privada e apenas 50% das verbas para saneamento básico sendo aplicadas, com um índice inaceitável de apenas 48% de casas com coleta de esgoto.
Junho de 2013 foi o movimento que, de forma inesperada e avassaladora, suspendeu o moto-contínuo desta falsa preparação e colocou problemas concretos a todos os governos: “menos estádios e mais hospitais”, “escolas e hospitais padrão FIFA”, “saneamento sim, teleférico não”, “todos contra o aumento”, “mais livros, menos lacrimogêneo”, “fim da corrupção e mais saúde”, “democracia real já” etc. Como sabemos, o breve intervalo foi logo sufocado por repressões, capturas, crises políticas, econômicas e polarizações, adiando a possibilidade de que outro preparo pudesse confrontar os problemas coletivos e urgentes do Brasil.
Em 2020, com os olhos assustados pelo COVID-19, somos interpelados novamente pelas mesmas questões: como nos mobilizar em torno de um problema real e concreto? Como garantir condições básicas de vida? Como construir um novo pacto social e democrático no Brasil?
Antes mesmo de haver clareza sobre quais medidas tomar para reduzir o impacto do COVID-19 no país, o fato novo que surgiu foi a rápida construção de uma mobilização real e transversal que ativou toda a sociedade. Inspirada nos exemplos que vinham da Itália, logo se formou uma rede de solidariedade para apoiar trabalhadores da saúde, reforçar a necessidade de ficar em casa, compartilhar informações corretas, evitar o desabastecimento nos supermercados e criar campanhas de arrecadação e distribuição de recursos e insumos básicos. Nas favelas e periferias, os coletivos de moradores e de comunicadores tornaram-se os protagonistas de campanhas de divulgação das recomendações sanitárias, mas também lembram que nada foi feito nos últimos anos para melhorar o acesso aos serviços básicos, como água e esgoto. Esses gestos estão criando algo impensado em uma sociedade tão fragmentada e já acostumada com a multiplicação de polêmicas e disputas vazias: as bases de uma nova cooperação social e de uma nova confiança horizontal foram lançadas, movidas pelo desafio real e inédito de enfrentar os dramas de uma pandemia.
Para o clã que nos governa, essa aliança é insuportável. Ela escapa à gestão da política que vinha sendo feita através das redes sociais, das redes de intriga e de mentiras, da produção contínua de bodes expiatórios e inimigos, da normalização pela ignorância e do fomento ao caos e à fragmentação social. Ao contrário, a nova mobilização força todo o país a pensar em novas políticas sociais, em medidas de valorização da vida, na importância dos bens comuns, na necessidade de compartilhar informações seguras, no papel da ciência e das universidades e na urgência de uma união de esforços para além do sectarismo. Este novo momento pode dar início a um mundo totalmente avesso ao barulho performático do populismo, caso a mobilização encontre ressonâncias democráticas e não autoritárias. O fato é que, diante da catástrofe, a coragem de falar a verdade voltou a assumir um sentido prático e relevante.
Não por acaso, preso em um mundo que já acabou, Bolsonaro tenta quebrar essa emergente confiança estimulando uma revolta contra as medidas implementadas nos estados e pelo seu próprio governo. Não podendo suportar um movimento que cresce por fora de seus currais digitais e círculos de fanatismo, o presidente canaliza a energia antissistêmica para a exposição da população à morte, buscando, ao mesmo tempo, multiplicar as ameaças constantes e as velhas rixas improdutivas. Contrapondo cinicamente economia e saúde, e confrontado com os limites de sua própria inépcia, assume a necropolítica (a mobilização da política para a morte) como a única forma de retomar as rédeas de uma realidade que já está em outro lugar.
A mudança que estamos assistindo também explicita os limites do comando econômico do país. Basta lembrar que, quando o vírus já passava para a fase de transmissão comunitária, o ministro da economia dizia que o isolamento era uma oportunidade para se pensar em… “reformas”. Após se dar conta do caráter incontornável da pandemia, o mesmo ministro afirmou que o Brasil deverá passar rápido pela crise para depois poder retomar… “as reformas”. Essa insistência explica, por um lado, a lentidão na concepção e na efetivação dos programas de apoio financeiro, só agora implementados, e mostra, por outro, uma falta de capacidade para o enfrentamento dos efeitos permanentes da pandemia no país e na globalização em geral.
Tudo leva a crer, portanto, que é a atual mobilização pela vida que cria uma ressonância positiva entre as dinâmicas de cooperação social e as decisões que são tomadas em nível institucional e nos diversos poderes, como demonstra o atual enfrentamento em torno do Ministério da Saúde. É essa mobilização que nos impede de entrar no jogo utilitário que tenta equacionar os vivos e os mortos a partir da falsa racionalidade dos balancetes econômicos e tabelas contábeis. No atual estágio da pandemia, está claro que essa lógica nada mais é do que uma lógica da cova rasa, uma política da morte contra a qual devemos, urgentemente, contrapor uma política da vida.
Diante das curvas ascendentes de infectados e mortos, a necropolítica assume a contradição entre economia e vida como condição para o seu jogo mortífero, enquanto a democracia aparece em toda a sua forma paradoxal. Para que o isolamento funcione é preciso fazer circular, para que a circulação não seja destruída pela pandemia, é preciso isolar e distanciar. A catástrofe seria justamente imaginar que a propagação do vírus impõe necessariamente uma lógica da contradição e naturalizar, assim, uma das piores marcas da sociedade brasileira: o grande e rotineiro sacrifício de vidas (precárias, pobres, negras) em prol do funcionamento de uma máquina fundada na desigualdade e na injustiça.
Por isso, paradoxalmente, enfrentar a pandemia e proteger vidas significa pensar outra lógica da circulação e de funcionamento da própria máquina, mobilizando:
(i) a circulação de riqueza, com políticas de renda garantida, apoio aos pequenos e microempreendedores, ampliação da assistência social, doações massivas por bancos e grandes empresas etc.;
(ii) a circulação de infraestrutura, com a distribuição de equipamentos de proteção, de kits de teste por todo o país, com a manutenção de um transporte público seguro, com o acesso de todos à água, à energia elétrica, aos produtos de limpeza, com uma logística para manter e ampliar os serviços essenciais, com a construção de hospitais de campanha e ampliação dos leitos de UTI etc.;
(iii) a circulação de tecnologia, com acesso de todos à internet, com a inclusão digital gratuita em favelas e periferias, com a fabricação de respiradores, equipamentos de proteção e kits de teste, com a mobilização dos laboratórios universitários, com o investimento massivo em ciência e tecnologia etc.;
(iv) a circulação de informação, com o combate à subnotificação, com a garantia de publicidade dos dados, com o compartilhamento de métodos de higienização e de protocolos para os infectados, com o combate as fake news, com a divulgação do debate científico, a liberação de artigos acadêmicos, a mobilização de redes de aprendizagens, produção, difusão e circulação de saberes territoriais, etc.;
(v) a circulação de proteção, com equipamento que possam aumentar a proteção de todos os trabalhadores que estão na linha de frente, enfermeiros, médicos, agentes públicos, trabalhadores da logística e do setor de entregas, comunicadores, lideranças comunitárias etc.;
(vi) a circulação de liberdades, com medidas de restrição e controle que sejam resultado da liberdade e da mobilização democrática, com o veto de imposições administrativas autoritárias, prisões ou leis marciais para a garantia da quarentena, com medidas responsáveis para o maior desencarceramento possível de presos provisórios, presos com doenças crônicas, idosos, gestantes e lactantes, com a substituição das medidas de internação de jovens por medidas a serem seguidas em meio aberto etc. (Cf. Recomendação n. 62 do CNJ);
(vii) a circulação de apoio psíquico, com a proliferação de diversas iniciativas comunitárias e institucionais de acolhimento do mal-estar e do sofrimento que partem da indissociação entre vida, saúde mental, realidade social e econômica, com o atendimento online gratuito para profissionais de saúde, com o reconhecimento de que é função de todo trabalhador da saúde a detecção do sofrimento psíquico em emergências humanitárias etc.;
(viii) a circulação da biodiversidade, com a promoção da diversidade biológica como forma de proteção contra a emergência dos novos vírus (cinturão vivo), o fortalecimento dos órgãos de fiscalização ambiental e monitoramento das unidades de conservação e dos territórios indígenas, o enfrentamento das queimadas na Amazônia, a construção de uma nova relação ética entre todos os viventes etc.
Todas essas iniciativas de circulação da cooperação social e institucional, além de comporem uma agenda urgente para o período do contágio, podem formar uma sólida linha de atuação pós-crise. O fortalecimento deste novo pacto social, ecológico e democrático, baseado na requalificação da circulação, deve permitir que a mobilização continue por outros meios, e através de outras medidas que serão necessárias. No nível global, é a oportunidade de pensarmos uma mundialização fundada na solidariedade e na cooperação internacional, em contraposição à crise dos blocos regionais e às tentações nacionalistas e reacionárias que, à direita ou à esquerda, sonham com uma arcaica desglobalização.
No caso do decrépito governo brasileiro, é o que pode evitar uma rápida tentativa de reestabelecimento dos currais eleitorais fundados na mentira, a retomada de uma austeridade radical alheia à realidade, ou uma solução militarista “por cima”, lançada para enfrentar a inépcia do próprio presidente e a instabilidade trazida pela pandemia.
Que a experiência coletiva de uma mobilização solidária e transversal sirva, portanto, de vacina para essas armadilhas e componha o terreno concreto para uma democracia adequada ao mundo que emerge diante de nós.