13 Fevereiro 2020
“A crise do coronavírus expõe as contradições fundamentais deste pacto. Um homem foi impedido de cumprir seu dever de fazer seu alerta. O heroico doutor Li Wenliang é um mártir da verdade, do bem comum. Ouvindo apenas seu dever, ele foi punido, considerado culpado de espalhar mentiras perturbadoras”, escreve Jean-Pierre Denis, diretor de redação, em editorial publicado por La Vie, 11-02-2020. A tradução é de André Langer.
Toda sociedade se assenta sobre um pacto, uma espécie de benefício mútuo entre o corpo social e o chefe do governo. A China não é exceção, mesmo que não esteja escrito. Essa regra pode ser formulada da seguinte forma: apatia política contra apetite econômico. O regime confisca a cidadania, mas oferece em troca orgulho, estabilidade e prosperidade. Orgulho de um povo que acaba com o “século da humilhação” e recupera seu poder milenar. Estabilidade de um regime que garante a ordem, não concedendo nenhuma chance à dissidência, a ponto de realizar uma terrível repressão contra os tibetanos, os uigures, os cristãos…
Prosperidade de centenas de milhões de pessoas que saíram da pobreza, de uma classe média com um apetite insaciável de consumo, de uma sociedade autorizada a se fartar no grande banquete egoísta dos países desenvolvidos. Em uma palavra, quando o cidadão é vigiado, maltratado ou amordaçado, o consumidor é mimado, compensado e fartado. Até o dia em que...
A crise do coronavírus expõe as contradições fundamentais deste pacto. Um homem foi impedido de cumprir seu dever de fazer seu alerta. O heroico doutor Li Wenliang (*) é um mártir da verdade, do bem comum. Considerando apenas seu dever, ele foi punido, considerado culpado de espalhar mentiras perturbadoras. A figura do jovem oftalmologista que morreu da doença que tentara, sem sucesso, impedir de se transformar em epidemia marca época. Seu nome é um aceno. De repente, o consumidor lembra que precisa do cidadão.
Até então, a questão da confiança no regime não se colocava. Além disso, ela não se coloca em nenhuma ditadura. O poder está aí, ponto final. É um mal necessário, o preço da consciência que concordamos em pagar porque não temos escolha, ou porque nos sentimos satisfeitos com essa situação, ou porque temos que aceitar ser governados. Mas o que o regime chinês sem dúvida teme é que o consumidor se sinta enganado sobre as mercadorias.
Ora, o caso do coronavírus ocorre após uma longa série de escândalos na área da saúde que tiveram um profundo impacto na opinião pública, afetando tanto o leite em pó para crianças (300 mil doentes em 2008) quanto a vacina antirrábica defeituosa, produtos de sangue adulterados ou molho de soja enriquecido com óleo usado. E quanto mais rico e mais velho o consumidor, mais exigente ele se torna. Especialmente quando o preço a pagar se torna exorbitante em termos de mortalidade, mas também de orgulho, de prosperidade e de estabilidade. Mal começado, o “século chinês” seria um produto defeituoso a ser devolvido urgentemente ao revendedor?
Ao caos material pode se acrescentar uma desordem espiritual. Por mais marxista que se pretenda, o Partido se vê o herdeiro de uma civilização. Contudo, desse ponto de vista, ele não recebe seu mandato do povo, mas do Céu, uma noção que não corresponde à nossa visão de um Deus pessoal, mas que tem uma forma de evidência na história do pensamento político chinês, marcando há mais de dois milênios a sucessão das dinastias. Culturalmente, o sábio e virtuoso imperador recebe seu mandato do Céu.
As grandes catástrofes, como os terremotos, as inundações ou as epidemias, são um sinal de que esse mandato foi retirado do soberano corrompido. Obviamente, ainda não chegamos nessa situação, e ninguém acredita no colapso do regime. Mas a virtude heroica de Li, o jovem e pequeno médico, expõe os erros políticos de Xi, o grande imperador. Para um presidente que acumulou todos os poderes como nunca desde Mao, esse é obviamente o estado máximo de alerta.
* Li Wenliang foi um oftalmologista chinês no Hospital Central de Wuhan, considerado a primeira pessoa a alertar o público sobre o surto de coronavírus de Wuhan em 2019-2020. Em 3 de janeiro de 2020, a polícia de Wuhan o convocou e o advertiu por estar "fazendo comentários falsos na Internet". Em 6 de fevereiro de 2020, ele morreu de uma nova infecção por coronavírus em uma sala de unidade de terapia intensiva (UTI). (Fonte: Wikipédia)
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O vírus, o imperador e o médico chinês - Instituto Humanitas Unisinos - IHU