10 Dezembro 2018
O anúncio de setembro de que Papa Francisco quer convocar uma reunião com todos os presidentes das Conferências Episcopais do mundo de 21 a 24 de fevereiro, juntamente com a liderança sênior do Vaticano, para discutir os escândalos de abuso sexual na Igreja seria uma grande notícia em qualquer circunstância.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 09-12-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Porém, depois de o Vaticano ter convocado essa reunião, em novembro, ao instruir os bispos dos Estados Unidos para adiar a adoção de novas medidas de responsabilização até depois de fevereiro, a previsão era que analistas estadunidenses poderiam tratar a situação como Roosevelt e Stalin em Yalta - um exercício de alto risco que pode marcar a história.
Mas antes de as expectativas fugirem totalmente do controle é importante dizer em alto e bom som: seja pelo motivo que for, não vai ser como Yalta, e esperar que seja é um disparate.
Vamos desconsiderar os motivos e focar no que realmente seria um êxito.
Em primeiro lugar, a conferência de Yalta levou uma semana inteira: de 4 a 11 de fevereiro de 1945. Esta vai ser de três diazinhos, e não vai ser consumida pelos titãs da Terra em volta da mesa numa discussão sem fim para chegar a um acordo. Na verdade, tratar-se-á de ouvir as apresentações de palestrantes especializados. Parece mais um fim de semana de treinamento do que com negociações de alto nível.
Em segundo lugar, e provavelmente mais relevante para os nossos propósitos, a reunião não reúne um grupo homogêneo de bispos que concordam em maior ou menor grau sobre a crise de abuso sexual e só precisa concluir a discussão de alguns detalhes para uma abordagem comum.
Haverá cerca de um terço dos bispos do mundo que já experimentou a "crise", em relação a pressão midiática, ações judiciais, rígidos acordos financeiros, grandes ações na justiça, grupos de defesa, e assim por diante, e que compreendem instintivamente a necessidade da Igreja de adotar as "melhores práticas" no combate ao abuso.
E também cerca de dois terços dos bispos do mundo que nunca viveram a “crise” nesse sentido, muitos de países em desenvolvimento do sul global. Muitos estão convictos de que suas culturas não lidam com o problema na mesma medida e lamentam pela forma como as discussões ocidentais sobre os escândalos de abuso ofuscam suas preocupações e prioridades. Eles questionam a necessidade de seus países priorizarem algo que muitos consideram um fenômeno geográfica e culturalmente localizado.
Além disso, alguns desses bispos também suspeitam que os esforços para impor respostas universais aos escândalos de abuso não passam de mais um capítulo no colonialismo ocidental, forçando todos a adotar abordagens norte-americanas e europeias, sem parar para refletir sobre se fazem sentido em outros contextos culturais.
Por exemplo, desde o início da crise, grupos de reforma e de defesa das vítimas têm pedido que o Papa imponha uma política de "denúncia obrigatória" na Igreja, segundo a qual os bispos seriam obrigados a relatar todas as acusações de abuso sexual infantil à polícia e às autoridades civis.
Apesar de parecer óbvio para os estadunidenses e para os europeus ocidentais, lugares onde em termos gerais é possível confiar na integridade da polícia, em países como a China, a Índia ou o Médio Oriente - onde a polícia muitas vezes está sob o controle de forças ativamente hostis à Igreja - é como se os prelados estivessem dando mais armas ao inimigo, ou até mesmo fazer um religioso possivelmente inocente de comida para os lobos.
A prova dessa separação surgiu no Sínodo dos Bispos que aconteceu em outubro deste ano, em que o grupo de aproximadamente 260 bispos do mundo todo demonstrou esforços para apoiar uma política de "tolerância zero" ao abuso sexual e desistiu na última hora, principalmente pela oposição dos bispos de países em desenvolvimento, sobretudo na África e na Ásia.
Por isso, pode ser irrealista esperar que seja criado um conjunto ousado de diretrizes universais na cúpula de fevereiro. Quando os participantes e organizadores dizem que é apenas o começo, não é exagero.
O que podemos esperar então?
Bem, por um lado, a reunião possibilita que Francisco transmita uma mensagem inequívoca de que o abuso sexual clerical é um problema universal que requer a participação da igreja em todos os níveis.
Francisco também pode dar o exemplo ao anunciar propostas concretas para construir sistemas mais fortes de responsabilização, não apenas pelo crime de abuso sexual, mas pelo acobertamento. Nada chama mais a atenção dos bispos em qualquer parte quanto uma possibilidade de perderem o cargo.
Por fim, Francisco também poderia cobrar que todos esses presidentes das conferências episcopais se comprometam a encontrar as vítimas de abuso ao retornarem. Como qualquer um que tenha se envolvido no combate ao abuso sexual ao longo dos anos sabe, nada substitui dedicar algum tempo às vítimas para entender o horror do que representa ser abusado por um membro do clero na infância.
Os bispos vão encontrar-se com algumas vítimas em Roma, mas não há nada como encontrá-las no próprio território.
Ou seja, é quase certo que os estadunidenses vão ficar frustrados com resultados que podem parecer insuficientes depois da reunião de fevereiro. As coisas vão depender da agilidade dos bispos dos EUA ao desenvolver um plano de ação coerente com as indicações fornecidas após a reunião.
Considerando a situação global da Igreja, é só isso que se pode esperar realisticamente - e a parte triste é que só isso já representaria um verdadeiro progresso.
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Expectativas realistas para a cúpula sobre abuso infantil em fevereiro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU