05 Janeiro 2012
É uma tradição nossa repassar os fatos do Vaticano menos noticiados do ano. A ideia não é sinalizar os eventos ou personalidades mais celebradas do ano, porque inúmeras outras agências de notícias já fazem isso. Ao contrário, eu tento levantar as histórias que, por outro lado, voaram abaixo do radar mas que foram realmente muito importantes.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada no sítio National Catholic Reporter, 30-12-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Se eu estivesse compilando uma lista das maiores histórias do Vaticano do ano, por exemplo, a beatificação do Papa João Paulo II no dia 1º de maio provavelmente estaria perto do topo. No entanto, isso não está à altura de um evento "sub-noticiado", porque é difícil acreditar que alguém que tenha lido um jornal de maio de 2011 ou tenha assistido à TV nesse dia possa ter perdido esse fato.
Da mesma forma, tanto um documento do Conselho Pontifício Justiça e Paz sobre a reforma da economia internacional, assim como a disputa diplomática do Vaticano com a Irlanda foram histórias importantes, mas foram quase negligenciadas.
Por outro lado, se esta fosse uma lista de histórias "sobre-noticiadas", a número um provavelmente seria a sempre pendente reconciliação do Vaticano com a tradicionalista Fraternidade São Pio X. Apesar de já termos estado nessa estrada antes – seduzidos por ansiosos relatos de um acordo, para apenas vê-lo desfazer-se – a pegada sociológica do grupo não justifica a atenção. Estamos falando de menos de um décimo de 1% da população mundial católica, embora as suas negociações com Roma sejam às vezes noticiadas como se fossem Roosevelt e Stalin em Yalta [conferência que redefiniu as fronteiras da Europa no pós-Segunda Guerra Mundial].
Em vez disso, o que se segue é uma lista decrescente de 10 histórias ao longo de 2011 que não tiveram muito eco, especialmente nos Estados Unidos, mas que nos dizem algo significativo. Em outras palavras, este é o tipo de coisa que os vaticanistas descompromissados de todos os lugares precisam saber.
Aliás, não deixe de ler até o fim para ver um bônus que apresenta a principal "não história" do ano.
O cardeal Angelo Scola, 70 anos, já estava na parte superior dos candidatos papais antes da sua nomeação no dia 28 de junho a novo arcebispo de Milão, mas essa medida certamente ressalta o seu status. Durante o século XX, dois papas foram eleitos de Milão, Pio XI e Paulo VI, e vários outros arcebispos de Milão foram considerados formidáveis concorrentes. Scola se revela como uma versão extrovertida, otimista e de língua italiana de Bento XVI – um feroz defensor da identidade católica, mas que gosta de pôr o acento sobre o que a Igreja é, em vez de contra quem ela é. Como nota de rodapé, a nomeação também confirma que o Comunhão e Libertação é o movimento favorito de Bento XVI. Scola tem antigos vínculos com os ciellini [como são chamados os membros do movimento Comunhão e Libertação] e é um discípulo intelectual do seu fundador, o falecido monsenhor Luigi Giussani.
Embora ele não tenha tido muita atração na imprensa de língua inglesa, o evento "Átrio dos Gentios", entre os dias 24 e 25 de março, em Paris, foi um grande sucesso no mundo francófono. Organizado pelo Conselho Pontifício para a Cultura, do Vaticano, presidido pelo hipererudito cardeal italiano Gianfranco Ravasi, e copromovido pela Unesco, pelo Institut de France e pela Sorbonne, o encontro levou cristãos e secularistas a um sério diálogo. Um sinal do sucesso é que um celebrado filósofo agnóstico francês, Jean-Luc Ferry, ficou tão impressionado que pediu uma reunião urgente com Ravasi para propor que os dois colaborem em um livro sobre o Evangelho de João. O encontro de Paris foi o primeiro do que Ravasi concebe como uma série de eventos "Átrio dos Gentios" em várias partes do mundo, destinados a demonstrar que a religião e o secularismo não precisam ser inimigos.
Compreensivelmente, o encontro de 300 líderes religiosos na cidade natal de São Francisco, promovido por Bento XVI no dia 27 de outubro, não atraiu um interesse semelhante ao que cercou a primeira cúpula inter-religiosa promovida pelo Papa João Paulo II em 1986 (a esse respeito, os próprios encontros subsequentes de João Paulo II em Assis, em 1993 e novamente em 2002, não geraram o mesmo burburinho). No entanto, a escolha de Bento XVI de marcar o 25º aniversário do histórico evento de João Paulo II com uma própria cúpula inter-religiosa foi, sem dúvida, tão importante quanto a original por causa do que ela simboliza: que a convocação dos líderes religiosos do mundo em prol da paz não era simplesmente um capricho pessoal de João Paulo II. Ao contrário, tornou-se parte da descrição de trabalho do papado, algo que os futuros papas deverão repetir. Dada a reputação de Bento XVI como um guardião da identidade católica, também é significativo que ele tenha endossado explicitamente o diálogo inter-religioso e tenha reconhecido a "grande vergonha" pelas ocasiões em que a violência foi cometida em nome da fé cristã.
Na ausência de um novo tumulto em torno dos preservativos e a Aids na África, a viagem de Bento XVI ao Benin, nos dias 18 a 20 de novembro, não foi uma sensação midiática. No entanto, os papas votam com os pés, ou seja, as suas prioridades pastorais e geopolíticas são muitas vezes reveladas por onde eles escolhem viajar. Essa foi a segunda viagem de Bento XVI à África, tornando-o o segundo continente mais visitado por ele depois da Europa. Enquanto esteve no Benin, Bento XVI apresentou um documento contendo as conclusões de um Sínodo dos Bispos para a África, de 2009, representando um plano de jogo papal para o continente onde o catolicismo cresceu quase 7.000% durante o século XX. Bento XVI endossou a agenda sociopolítica do catolicismo africano, especialmente a luta contra a corrupção, e desafiou os bispos a arrumarem a sua própria casa em termos de responsabilidade, transparência e bom governo. Ele também estendeu os seus braços ao Islã, convocando a Igreja, "em todas as situações, a persistir em estima pelos muçulmanos". Um momento marcante ocorreu no Palácio Presidencial do Benin, onde a chanceler Koubourath Osseni, uma mulher muçulmana, saudou Bento XVI como "um autêntico amigo da África".
A nomeação do dia 19 de outubro do arcebispo italiano Carlo Maria Viganò como o novo núncio ou embaixador papal para os Estados Unidos tem tanto um significado negativo quanto positivo. Durante o seu período no governo da cidade-Estado do Vaticano, Viganò esculpiu uma reputação de efetivo reformador financeiro, instaurando procedimentos eficientes de contabilidade entre os pequenos feudos notoriamente independentes do Vaticano. Seu exílio de Roma, como resultado de algumas políticas de gabinete bastante desagradáveis, ilustra indubitavelmente o que alguns observadores chamam de uma "brecha de governança" com Bento XVI – boas intenções que às vezes não são acompanhadas de escolhas administrativas astutas, que, neste caso, poderiam significar o fato de permitir que Viganò terminasse o que havia começado. No entanto, o fato de ele estar agora nos Estados Unidos significa que Viganò está posicionado para ajudar os bispos norte-americanos a seguir em frente na boa gestão do dinheiro em um momento em que alguns observadores temem que os escândalos financeiros possam se tornar o segundo round da crise dos abusos sexuais em termos de uma fonte crônica de desordens.
Assim como Milão na Itália, Manila nas Filipinas é mais uma daquelas megadioceses cujo líder se torna automaticamente um ponto de referência global e geralmente atrai pelo menos um olhar como um concorrente papal. Só isso já faria a nomeação do arcebispo Dom Luis Antonio Tagle, 54 anos, no dia 13 de outubro, uma medida importante. No entanto, a escolha também é reveladora por outras razões, como o fato de que Tagle se inclui entre os estereótipos convencionais sobre o tipo de líder que geralmente prospera sob a vigilância de Bento XVI. Tagle é um moderado teológico e político, associado a uma história controversa do Concílio Vaticano II (1962-1965), cuja interpretação progressista Bento XVI passou grande parte de sua carreira contestando. Porém, Tagle também é conhecido como um talentoso teólogo, uma personalidade extremamente não clerical, um bom ouvinte e alguém totalmente desinteressado pela construção de impérios eclesiais – em outras palavras, não muito diferente da reputação de Joseph Ratzinger antes da sua eleição ao papado. Em todo caso, com a tenra idade de 54 anos, Tagle está posicionado para ser um grande rosto e uma grande voz para o catolicismo asiático por um longo tempo.
Bento XVI é um papa ensinante, um ponto que ficou muito claro durante as suas 22 viagens ao exterior. Até agora, os observadores papais sabem que o grande momento de cada viagem provavelmente irá ocorrer durante um discurso para o "mundo da cultura", que geralmente inclui dignitários políticos, intelectuais e espirituais. Esses discursos atraem excelentes resenhas, mesmo entre os menos inclinados a simpatizar com aquilo que Bento XVI representa. O ano de 2011 trouxe outro caso em questão, na forma do discurso de Bento XVI, no dia 22 de setembro, ao Bundestag em Berlim. O papel dos grupos religiosos em uma democracia, afirmou o papa, não é "propor uma lei revelada ao Estado e à sociedade", mas sim para sustentar a "natureza e a razão" como fontes confiáveis de escolhas morais – incluindo, ressaltou, o respeito pelo pluralismo e pela diversidade. Bento XVI também acenou positivamente ao movimento ambientalista, chamando-o de "um grito por ar fresco", uma percepção de que a natureza contém uma bússola moral. A revista Der Spiegel chamou o discurso de "corajoso" e "brilhante", enquanto o jornal londrino de esquerda The Guardian encorajou os "verdes" seculares a esquecer os estereótipos do papa como "um professor alemão puritano e reprimido". Somado a discursos anteriores em Regensburg em 2006, no Collège des Bernardins, em Paris, em 2008, e no Westminster Hall, em Londres, em 2010, o discurso no Bundestag completa uma proeza de reflexão papal sobre a fé, a razão e a democracia em quatro volumes.
Improvável o suficiente, o grupo que mais sentiu o amor de Bento XVI durante 2011 foi a multidão secular agnóstica. Provavelmente, a maior manchete da sua viagem em setembro à Alemanha foi o elogio de Bento XVI aos "agnósticos que (...) sofrem por causa dos nossos pecados e desejam um coração puro". Essas pessoas, disse o pontífice, estão, na verdade, "mais perto do Reino de Deus do que os fiéis de 'rotina', que só veem o aparato da Igreja, sem que o seu coração seja tocado pela fé". Da mesma forma, o sinal inovador de Bento XVI durante o encontro de Assis foi a sua decisão de convidar não apenas líderes espirituais, mas também agnósticos. Em seu discurso naquele dia, Bento XVI disse que os agnósticos genuínos estão "fazendo interiormente o seu caminho a [Deus], na medida em que buscam a verdade e a bondade", e até os agradeceu porque "desafiam os seguidores das religiões a não considerar Deus como sua própria propriedade, como se ele pertencesse a eles, de tal forma que se sentem justificados em usar a força contra os outros". Quem poderia prever que um pontífice que se supunha ser o "Rottweiler de Deus", o último guerreiro cultural, se tornaria o "Papa dos agnósticos"?
Em um desdobramento impressionante e totalmente inesperado, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos reverteu em março a sua própria decisão de 2009 e sustentou o direito da Itália de exibir crucifixos em salas de aula públicas. A decisão significa que as expressões públicas de crença religiosa foram consideradas como não conflitantes com as normas europeias dos direitos humanos e da liberdade de consciência. Embora possa não ter atraído muita atenção nos Estados Unidos, a história tem um significado muito além das fronteiras da Europa. Com relação ao que a tradição cristã fala sobre o que ela chama de "mundo", sempre houve duas escolas básicas de pensamento. Uma delas é uma política da "porta aberta", enfatizando o diálogo com o mundo, presumindo a sua boa vontade e o seu encontro a meio caminho. A outra é um instinto de "fortaleza", que vê o mundo como fundamentalmente hostil e busca uma Igreja mais voltada para dentro, capaz de permanecer fiel a si mesma. A decisão do Tribunal dos Direitos Humanos forneceu um poderoso impulso para a abordagem da "porta aberta", sugerindo que a distensão com o secularismo pode ser possível, afinal de contas. A vitória também gerou uma nova força ecumênica e inter-religiosa, por ter atraído o apoio de denominações cristãs diferentes, assim como de muçulmanos e judeus europeus.
Como nota de rodapé, se eu tivesse que propor candidatos para as principais celebridades religiosas do ano, eu nomearia o advogado que venceu o caso do crucifixo – um especialista de Nova York em direito constitucional europeu e judeu ortodoxo chamado Joseph Weiler. A imagem de Weiler de pé na Grande Câmara do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos com a sua kipá, defendendo apaixonadamente o direito da Itália de manter o crucifixo na parede, se encontra entre as partes mais memoráveis do imaginário inter-religioso do ano.
Weiler também passou boa parte de 2011 trabalhando em um novo livro sobre o julgamento de Jesus, que promete causar frisson nas relações católico-judaicas. Entre outras notícias bombásticas, ele vai tentar persuadir os companheiros judeus que seus esforços ao longo de mais de 2.000 anos para rejeitar a acusação de deicídio foram mal empregados. Explicando cuidadosamente, Weiler acredita que "os judeus", de fato, levaram Jesus à morte e estavam fazendo exatamente o que o Senhor esperava (seu objetivo é oferecer uma leitura do julgamento que torne tanto as respostas judaicas quanto cristãs consistentes com a Escritura – um projeto, admite ele prontamente, destinado a despertar reações ferozes dos dois lados).
O ano de 2011 começou com o bombardeio de uma igreja cristã em Alexandria, no Egito, no dia 1º de janeiro, que deixou 23 pessoas mortas, e encerrou com os ataques no dia de Natal contra três igrejas cristãs na Nigéria, incluindo uma paróquia católica onde pelo menos 27 pessoas morreram. No meio disso, houve inúmeros outros ataques contra cristãos, incluindo o "Massacre Maspero" do dia 9 de outubro no Cairo, em que o Exército egípcio abriu fogo contra manifestantes coptas desarmados, matando 27 pessoas e ferindo centenas de outras (acrescentando insulto à injúria, a mídia controlada pelo Estado no Egito tentou culpar brevemente os coptas pela violência, mas esse esforço rapidamente entrou em colapso diante das testemunhas oculares).
Embora esses episódios tenham sido amplamente divulgados à medida que ocorriam, eles eram geralmente interpretados como eventos localizados e isolados, ou como parte de uma outra narrativa – o rescaldo da Primavera Árabe no Egito, ou tensões inter-étnicas e sectárias na Nigéria. No entanto, tomados em conjunto, o que surge dessas atrocidades é um retrato de uma guerra global contra os cristãos. Hoje, os cristãos são de longe o grupo religioso mais perseguido do planeta.
De acordo com o secular Instituto para os Direitos Humanos, com sede na Alemanha, 80% de todos os atos de intolerância religiosa hoje são dirigidos contra cristãos. A Organização para a Segurança e Cooperação na Europa estima que cerca de 200 milhões de cristãos agora sofrem discriminação, assédio e violência direta.
A guerra global contra os cristãos também é uma história vaticana, porque os eventos de 2011 consolidaram a liberdade religiosa como o sinal social e a preocupação política do Vaticano no início do século XXI. Essa mudança tem consequências em todas as áreas, inclusive nas relações ecumênicas. O cardeal Kurt Koch, alta autoridade do Vaticano para as relações com outros cristãos, fez um discurso pouco noticiado mas muito importante em setembro, propondo o "ecumenismo dos mártires" como o novo fundamento da unidade cristã, dado que todas as Igrejas nos dias de hoje estão testemunhando o surgimento de uma nova geração de mártires.
Infelizmente, é uma aposta segura que a guerra global contra os cristãos continuará sendo uma das principais histórias de 2012. O fato de ela continuar sendo pouco noticiada vai depender de quão profundamente o resto do mundo – talvez especialmente nós, no Ocidente – acorde para ela.
* * *
Bônus: a principal não-história do Vaticano em 2011
Às vezes, um ano é notável não apenas pelo que aconteceu, mas também por aquilo que não aconteceu. Nesse espírito, eu proponho "o cão que não latiu" como a principal não história do Vaticano: me refiro ao fato de que 2011 foi, em grande parte, poupado dos massivos desastres de relações públicas que marcaram outros anos do pontificado de Bento XVI.
Considerem este breve passeio pela estrada da memória:
Aqueles que prestaram atenção percebem que essa não é uma lista completa, mas é suficiente para dizer o seguinte: em anos anteriores, a equipe vaticana de Bento XVI ocasionalmente demonstrou talento para acertar o tiro no seu próprio pé.
Dado esse histórico, 2011 foi notável porque o cão de desastres de relações públicas basicamente não latiu.
Houve controvérsia ao longo do ano passado, é claro. O ultraje continuou se infiltrando na Irlanda em torno da crise dos abusos sexuais, e uma fundação legal sem fins lucrativos com sede nos Estados Unidos anunciou um recurso ao Tribunal Penal Internacional buscando indiciar o papa e o Vaticano pelos escândalos. Católicos liberais reclamaram contra a nova tradução do Missal Romano e contra a aproximação do Vaticano à tradicionalista Fraternidade São Pio X. Conservadores se queixaram do documento do Conselho Pontifício Justiça e Paz sobre a economia global, especialmente o seu apoio a uma governança mundial mais forte, incluindo a ideia de um banco central mundial.
No entanto, governar é escolher, e, inevitavelmente, durante qualquer período de 12 meses, o Vaticano terá de fazer escolhas que deixarão alguém infeliz. O mais impressionante de 2011 é que não houve uma grande falha de relações públicas que exacerbasse esses debates políticos ou que criasse distrações gratuitas. Bento XVI, por exemplo, não caiu na "armadilha dos preservativos" durante a sua viagem de novembro ao Benin, nem houve qualquer nova erupção nas relações inter-religiosas.
Se o "cão que não late" de 2011 foi o resultado de uma nova compreensão ou simplesmente pura coincidência, isso está aberto a debate. No entanto, essa é a grande não história do ano, uma não história à qual Bento XVI deveria estar agradecido.
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Os 10 fatos do Vaticano menos noticiados em 2011. Mais um bônus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU