21 Setembro 2011
O ecumenismo, ou seja, o impulso pela unidade cristã, está hoje em uma encruzilhada. De um lado, ele está entre as grandes histórias de sucesso religioso do século passado, varrendo velhos preconceitos e construindo novas amizades em um piscar de olhos histórico. Basta perguntar para a minha avó de 97 anos da zona rural de Hill City, Kansas, onde, há apenas algumas décadas, seus vizinhos protestantes tentaram impedir a venda de uma porção de terras para construir uma paróquia católica, e onde hoje as Igrejas fazem praticamente tudo juntas.
A análise é de John L. Allen Jr., publicada no sítio National Catholic Reporter, 16-09-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No entanto, os ecumênicos (ou, entre aspas, os "ecumaníacos") estão certos quando dizem que o objetivo da unidade plena e estrutural do movimento parece mais longe do que nunca. Os ressentimentos em torno do primado romano ainda impedem a distensão com os ortodoxos; as maciças diferenças eclesiológicas ainda separam os católicos de grande parte dos evangélicos e pentecostais; e as disputas em torno da moral sexual e do clero feminino acrescentaram novas complicações às relações já estremecidas entre católicos e os protestantes da linha principal.
Frente a esse "inverno ecumênico", o que é possível fazer?
Para a década desde 2001 até julho do ano passado, quando o lendário cardeal Walter Kasper foi a principal autoridade doutrinal do Vaticano, ele tinha uma resposta pronta: "Ecumenismo espiritual", ou seja, a silenciosa construção de vínculos de amizade entre cristãos de diferentes convicções, enraizados na oração e em um espírito de unidade, que, ao longo do tempo, pode remodelar o contexto em que os problemas teológicos e eclesiológicos são explorados.
Isso é um objetivo nobre, mas também uma tarefa de longo prazo sem o tipo de resultados imediatos que fazem com que o sangue das pessoas se ponha em movimento.
Esta semana, um novo modelo com uma promessa mais efetiva de resultados tangíveis no aqui-e-agora foi posto sobre a mesa pelo sucessor de Kasper: o "Ecumenismo dos mártires", isto é, a preocupação e o ativismo comuns em prol dos cristãos perseguidos em todo o mundo. Ele reflete as realidades do século XXI, em que dois terços da população cristã do mundo vivem no hemisfério Sul, muitas vezes como minorias contra maiorias hostis. De acordo com uma estimativa, 80% dos atos de intolerância religiosa no mundo hoje são voltados contra cristãos.
Não estamos falando, aliás, de uma suposta e secular "guerra contra o Natal", ou de uma exposição de arte financiada pelo governo que incomoda algumas almas piedosas. Estamos falando de violência e opressão reais, em uma escala global. O recente e emocionante livro Onde Morrem os Cristãos, da jornalista italiana Francesca Paci, documenta os ataques sistemáticos contra os cristãos no Iraque, na Terra Santa, no Egito, na Turquia, na Indonésia, no Paquistão, na Coreia do Norte, na Somália, na Nigéria e na Argélia, assim como em regiões da Amazônia – e essa dificilmente é uma lista completa.
Eu já disse antes e vou repetir aqui: não é apenas uma bobagem que os cristãos do Ocidente gastem o nosso tempo debatendo sobre pontos específicos da tradução litúrgica, ou sobre o pronunciamento mais recente dos bispos sobre algum livro de teologia, enquanto milhões dos nossos correligionários são forçados a tomar as suas vidas nas mãos todas as vezes que vão à igreja, abrem a sua loja ou simplesmente caminham pela rua. É obsceno.
O chamado para um novo "Ecumenismo dos mártires" veio do cardeal suíço Kurt Koch, presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, em uma cúpula ecumênica e inter-religiosa anual promovida pela Comunidade de Santo Egídio, organizada nesta semana em Munique.
Eis como Koch o apresentou:
"Como hoje, todas as Igrejas e as comunidades eclesiais cristãs têm os seus mártires, devemos falar de um verdadeiro ecumenismo dos mártires", disse ele. "Enquanto nós, como cristãos e como Igrejas, vivemos sobre esta terra em uma comunhão ainda imperfeita, os mártires, na glória celeste, se encontram desde já em uma comunhão plena e perfeita".
"Hoje, como cristãos, devemos viver na esperança de que o sangue dos mártires do nosso tempo se torne um dia a semente da unidade plena do Corpo de Cristo. Mas devemos testemunhar essa esperança de uma forma credível, na ajuda eficaz prestada aos cristãos perseguidos no mundo, denunciando publicamente as situações de martírio e empenhando-nos em favor do respeito da liberdade religiosa e da dignidade humana", disse Koch.
"O ecumenismo dos mártires, portanto, não é apenas o núcleo da espiritualidade ecumênica, hoje tão necessária, mas também é a melhor exemplificação de como a promoção da unidade dos cristãos e o amor pelos pobres são absolutamente indissociáveis".
(Apesar de Koch não ser a primeira pessoa a refletir sobre essa ideia, suas observações representam a estreia do "Ecumenismo dos mártires" como uma proposta mais ou menos explícita da autoridade ecumênica do Vaticano. E, embora provavelmente seja algo óbvio, vou dizer mesmo assim: abraçar o "Ecumenismo dos mártires" não é algo que vem às custas do "Ecumenismo espiritual". É e/e, não ou/ou).
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Um "Ecumenismo dos mártires" do século XXI tem pelo menos três pontos para recomendar a si mesmo.
Primeiro, ele pode dar um novo e forte impulso ao movimento ecumênico. Tertuliano observou uma vez que "o sangue dos mártires é a semente da fé", e algo semelhante poderia ser dito com relação ao ecumenismo: a experiência do martírio é muitas vezes o motor da unidade.
A opressão de católicos, ortodoxos e protestantes sob os nazistas e os soviéticos foi a chave para o impulso ecumênico de meados do século XX. De acordo com o falecido cardeal holandês Johannes Willebrands, pioneiro da causa ecumênica, a "vida em conjunto" dos clérigos católicos e protestantes nos campos de concentração nazista foi a chave para o crescimento do movimento depois de 1945. A teoria da unidade, afirmou Willebrands em 2002, "recebeu a sua vida e o seu propósito desse fato".
Também hoje, as relações ecumênicas tendem a ser mais próximas em algumas partes do mundo onde os cristãos enfrentam uma ameaça comum: o Oriente Médio, o subcontinente indiano, a China e a Coreia do Norte, e partes da África subsaariana. Quanto mais o cristianismo se engaja na resposta a essas crises, mais ganha espaço o sentimento de urgência para pôr de lado antigas rixas.
Segundo, o "Ecumenismo dos mártires" oferece uma resposta às questões práticas mais importantes que os ativistas em defesa dos cristãos atacados sempre fazem: como podemos construir redes para mobilizar o apoio no Ocidente?
Na verdade, essas redes não precisam ser construídas. Eles já existem, na forma de uma galáxia em expansão de comissões ecumênicas, em órgãos de diálogo, séries de conferências, publicações, escritórios e equipes dedicadas ao trabalho ecumênico, e assim por diante. O truque é assumir essa infraestrutura – que, na verdade, no contexto de paralisia ecumênica de hoje, às vezes parece ser subutilizada – e concentrá-la diretamente sobre o martírio cristão do século XXI.
Em julho, eu participei de uma cúpula conjunta anglicano-católica sobre as ameaças enfrentadas pelo cristianismo na Terra Santa, realizada em Londres, no Palácio de Lambeth, sede da Comunhão Anglicana, e copromovida pelo arcebispo anglicano Rowan Williams e pelo arcebispo católico Vincent Nichols. Foi um caso exemplar do "Ecumenismo dos mártires" em ação: anglicanos e católicos podem não estar muito próximos acerca da ordenação das mulheres, mas Williams e Nichols pareciam em perfeita sintonia sobre a necessidade de impedir que a terra do nascimento de Cristo se transforme em uma "Disneylândia espiritual", cheia de atrações, mas vazia de uma população cristã nativa.
Terceiro, um "Ecumenismo dos mártires" serviria ao propósito de lembrar às pessoas que o cristianismo e o Ocidente não são coextensivos. As comunidades cristãs mais dinâmicas e de crescimento mais rápido hoje estão fora do Ocidente, especialmente na África e em partes da Ásia. Elas vão dar o tom para a Igreja global no século vindouro. Se essas comunidades forem reprimidas, e talvez radicalizadas, todo o mundo cristão terá que viver com as consequências.
Esse perigo parece mais agudo hoje no Oriente Médio, onde ninguém ainda sabe qual será o resultado da Primavera Árabe, mas a aposta segura parece estar sobre um papel novo e forte para o Islã militante. No mesmo encontro da Santo Egídio em que Koch falou, o patriarca católico do Egito, Antonios Naguib, advertiu que a revolução egípcia foi "sequestrada" por salafistas e por outros grupos islâmicos. Agora, disse, os cristãos estão sendo deixados fora dos postos de governo, tanto no nível nacional quanto regional do país, os conflitos entre cristãos e muçulmanos estão aumentado, e a maioria dos cristãos estão profundamente temerosos.
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Se o "Ecumenismo dos mártires" der certo, há duas outras implicações que vale a pena ponderar.
Primeiro, a conversação ecumênica já não seria mais a província quase exclusiva dos teólogos. Ela atrairia uma parcela maior de diplomatas, analistas políticos, ativistas políticos e organizadores de base, que se tornariam, em certo sentido, os principais portadores do progresso ecumênico.
Isso poderia romper a lamentável dinâmica que cresceu ao longo dos últimos 50 anos, segundo a qual o ecumenismo é "de facto" considerado como um projeto para um pequeno grupo de especialistas, enquanto o restante de nós é relegado a se sentar à espera da publicação do próximo documento sobre Maria ou sobre a autoridade na Igreja.
Essa mudança também colocaria o acento sobre o que os cristãos compartilham, em vez do que ainda os divide. Enquanto certamente há uma visão católica particular sobre a sucessão apostólica ou a Eucaristia, não há nenhuma parte especificamente católica no chamado a impor a "sharia" mediante a lei civil. A esse respeito, católicos, pentecostais, evangélicos, ortodoxos e protestantes da linha principal têm a mesma posição básica: "Não".
Segundo, um "Ecumenismo dos mártires" injetaria um equilíbrio nas atitudes cristãs com relação ao secularismo.
No Ocidente, o ressentimento nos círculos cristãos sobre a hostilidade secular à fé religiosa se aprofundou significativamente. Desdobramentos como o fracasso da União Europeia de reconhecer suas raízes cristãs, vários ataques perceptíveis contra o casamento e a vida humana, e uma nova desfaçatez de usar a mídia e o sistema legal para perseguir instituições religiosas (mais notavelmente, na crise dos abusos sexuais enfrentada pela Igreja Católica) produziram um crescente sentimento de guerra cultural.
As notícias desta semana de que uma fundação legal secular com sede em Nova York, em conjunto com a Rede de Sobreviventes de Abusos Praticados por Padres, pediu que o Tribunal Penal Internacional julgue o papa e outras autoridades do Vaticano, irá reforçar essas impressões em alguns meses.
O cardeal italiano Renato Martino, ex-presidente do Pontifício Conselho Justiça e Paz, resumiu memoravelmente esse sentimento de antagonismo ainda em 2004, depois que um político católico italiano foi banido de um trabalho com a Comissão Europeia depois de confessar ter aceitado a doutrina da Igreja sobre o aborto e a homossexualidade: "Parece uma nova Inquisição", disse Martino na época. "É uma inquisição secular, mas é igualmente indecente. Você pode insultar e atacar livremente os católicos, e ninguém vai dizer nada".
Há, é claro, preocupações reais sobre uma forma ideológica do secularismo, que é cegamente hostil à Igreja. Há também, no entanto, um perigo igual e oposto em uma psicologia "nós-contra-eles" que bloqueia as linhas de comunicação e desperdiça as oportunidades de parceria.
A opção do "Ecumenismo dos mártires" agiria como um corretivo nesse sentido. Ele faria do impulso à liberdade religiosa uma pedra angular do esforço ecumênico, o que significa que valores essencialmente seculares como a democracia, a separação entre religião e política, e o estado de direito receberiam um novo e poderoso abraço cristão. Uma prova disso pode ser encontrada hoje no Oriente Médio, onde a pequena minoria cristã da região também é o seu defensor mais apaixonado do secularismo saudável – aberto aos valores religiosos, mas não dominado por uma única visão religiosa.
O "Ecumenismo dos mártires", em outras palavras, quer lembrar os cristãos do Ocidente que o secularismo não deve ser um inimigo. Sob as condições certas, ele é realmente o melhor amigo que temos.
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"Ecumenismo dos mártires": uma saída para a unidade cristã - Instituto Humanitas Unisinos - IHU