08 Mai 2011
Milhões de pessoas deram à beatificação de João Paulo II no última domingo uma aprovação completa. Mas, para outros, a causa mais rapidamente processada da história moderna dá pistas de uma maquinação curial, incluindo a falta de consideração às dificuldades do seu pontificado.
A reportagem é de Robert Mickens, publicada na revista inglesa The Tablet, 07-05-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Papa João Paulo II havia morrido há apenas algumas semanas quando seu sucessor recém-eleito, Bento XVI, pôs de lado o período de espera canônico de cinco anos e permitiu que a Diocese de Roma iniciasse imediatamente o processo de beatificação do falecido papa.
Uma minoria dentro da Igreja, inclusive alguns cardeais e alguns poucos prelados poderosos da Cúria Romana, manifestaram respeitosamente sua preocupação com esse raro movimento. Nunca antes na história, argumentaram, um Papa havia beatificado o seu antecessor imediato. Talvez fosse melhor, explicaram, deixar que as emoções esfriassem um pouco antes de beatificar apressadamente um homem que havia sido Papa por quase 27 anos e havia dominado tanto a vida eclesial contemporânea.
Mas essas vozes foram ignoradas, e, no último domingo, diante de um número estimado de 1,5 milhão de pessoas, o Papa Bento XVI declarou João Paulo "beato" em uma cerimônia barroca que marcou a beatificação mais rápida da história moderna. As razões de Bento para fazer isso e a maneira com que foi feito lançam luz sobre a sua personalidade e o seu pontificado.
No início de sua homilia, o Papa Bento XVI defendeu sua decisão de apressar a beatificação de João Paulo. "Já naquele dia [da sua morte] sentíamos pairar o perfume da sua santidade, tendo o Povo de Deus manifestado de muitas maneiras a sua veneração por ele", disse. "Por isso, quis que a sua Causa de Beatificação pudesse, no devido respeito pelas normas da Igreja, prosseguir com discreta celeridade". Mas, no fim, disse o Papa Bento, João Paulo II foi declarado beato tão rapidamente "porque assim aprouve ao Senhor".
Fatores terrenos
Uma série de fatores terrenos também ajudaram a acelerar a ida do falecido papa polonês à glória dos altares. Eles, também, começava em sua morte, em um momento em que já estava claro que, por baixo da superfície do que parecia ser meramente uma poderosa e vibrante Igreja, jaziam divisões profundas e problemas estruturais inerentes. A surpreendente e um tanto controversa eleição do ex-cardeal Joseph Ratzinger como Papa Bento XVI levantou preocupações sobre como ele iria lidar com essa "crise". Caricaturada pela mídia como um linha-dura doutrinal e um frio inquisidor, sua eleição ao papado causou temores de que ele mudaria a Igreja em uma direção ainda mais conservadora do que João Paulo II.
A decisão do Papa Bento XVI de permitir que a causa de beatificação do seu popular antecessor começasse rapidamente poderia muito bem ter sido um esforço para garantir a lealdade e a assistência dos defensores de João Paulo no cumprimento de seu próprio pontificado iniciante. Embora muitos o vissem como um "herdeiro natural" do papa polonês, houve uma palpável apreensão de que ele levaria os aspectos mais voltados para o exterior do antigo pontificado aos últimos bancos e se focaria na implementação de um programa novo e tenaz de disciplina interna da Igreja.
Além disso, Bento XVI assumiu o ministério papal como uma figura ambivalente que não recebeu imediatamente o mesmo carinho profundo mostrodo ao longo reinado de João Paulo. Apesar de ter sido criticado por manter posições retrógradas sobre inúmeras questões sociais e teológicas, o falecido papa ainda era admirado e amado por muitos daqueles que discordavam dele. Isso, mais uma vez, ficou claro na beatificação da semana passada.
"Ele era como um pai, realmente", disse um italiano de 34 anos que participou da cerimônia. "Como o meu próprio pai, ele sabia que muitos da minha geração achavam que ele tinha ideias ultrapassadas sobre sexo e coisas como os padres casados, mas sempre sentíamos que ele nos amava assim como nossos próprios pais, mesmo que discordássemos em muitas coisas".
Depois de seis anos de mandato, o Papa Bento ainda não atingiu esse tipo de relacionamento com o seu povo, embora, em suas viagens ao exterior, como à Grã-Bretanha em setembro, ele tenha conquistado admiração, sobretudo pelo conteúdo intelectual de suas conferências, discursos e homilias.
"Bem ele é um pouco frio", disse uma mulher de 73 anos, dona de um restaurante perto da Basílica de Santa Maria Maior. Em cima de sua caixa registradora, estão fotos dos Papas João XXIII e João Paulo II e até mesmo uma bênção papal muito visível de Bento XVI. "Ele está bem", assegurou-me a mulher. "Mas ele não é Giovanni Paolo", acrescentou, usando o nome italiano do antigo papa. Essas opiniões são repetidas em quase todos os lugares.
"O Papa Wojtyla era um homem do povo", disse o dono de uma loja de bicicletas de 45 anos que cresceu como um não católico em uma família comunista. Na janela de sua loja perto de Campo dei Fiori, havia um cartaz publicitário da beatificação de João Paulo. "Mas eu não colocaria uma foto do papa atual", disse.
Ao beatificar rapidamente o seu "amado e reverenciado" predecessor, o Papa Bento claramente quis homenagear João Paulo II e angariar apoio interno dos bispos de todo o mundo (a maioria dos quais foram nomeados pelo seu antecessor). Mas também foi uma oportunidade para energizar uma Igreja Católica que, especialmente na Europa, está mostrando sinais alarmantes de fadiga, fracionamento e deserção.
O Papa João Paulo promoveu, ou pelo menos aprovou tacitamente, uma espécie de catolicismo da "grande tenda", onde parecia haver espaço para todos. Mas Bento XVI tem falado que a Igreja está se tornando uma "minoria criativa".
Sensação de melancolia
A beatificação de João Paulo II gerou um grande entusiasmo entre os peregrinos que foram a Roma para a cerimônia, mas também uma sensação de melancolia. Alguns deles disseram que ainda se sentiam "órfãos" na Igreja sem ele. Nos dias em torno dos eventos da semana passada, telões gigantes na Praça de São Pedro e do lado de fora das principais basílicas de Roma mostravam infinitas horas de filmagens do seu longo pontificado. Embora a intenção fosse homenagear o falecido papa, um subproduto não intencional da iniciativa foi que, inevitavelmente, levou as pessoas a fazer comparações entre ele e Bento XVI.
João Paulo foi uma figura maior do que a vida, que possuía uma personalidade hercúlea e um dom para os gestos dramáticos, algo que Bento não tem. Isso foi poderosamente veiculado nas imagens de vídeo transmitidas para as multidões reunidas e pelas iminentes fotos dele como um homem vigoroso e viril de 1968 que foram reveladas na sacada central da Basílica de São Pedro durante a missa de beatificação. Durante a cerimônia, o Papa Bento parecia um anão diante do fantasma de seu beato antecessor.
"Foi como se ele tivesse se diminuído a fim de apresentar à Igreja e ao mundo a grandeza espiritual de João Paulo II", afirmou o cardeal Angelo Comastri, arcipreste da basílica. O cardeal atribuiu isso nomeadamente à humildade do Papa Ratzinger, não a qualquer deficit de carisma.
Em sua homilia, o papa alemão exibiu seu antecessor polonês pelo seu "testemunho de fé, amor e coragem apostólica". E o louvou por inverter, "com a força de um gigante – força que lhe vinha de Deus –, uma tendência que parecia irreversível", isto é, a difusão do marxismo e da "ideologia do progresso". Mas, em seguida, o Papa Bento acrescentou uma "nota pessoal" sobre João Paulo e falou dos 23 anos que ele trabalhou "ao seu lado" como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Era uma indicação de que, pelo menos subliminarmente, seus anos como a coluna doutrinária/teológica do pontificado do seu antecessor também podem ter influenciado sua decisão de ignorar as normas canônicas e iniciar rapidamente o processo de beatificação.
Além da beatificação
Mesmo que as autoridades do Vaticano neguem, muitos críticos acreditam que a beatificação de João Paulo II foi pensada para "beatificar" todo o seu pontificado e para encobrir seus fracassos. Os manifestantes mais clamorosos dizem que um papa que não conseguiu lidar com os abusos sexuais por parte de padres não deveria ser considerado um modelo de fé. Mas houve muitas outras controvérsias em todo o seu pontificado, e a maioria delas, incluindo o abuso sexual clerical, concernia a questões doutrinárias e morais que, necessariamente, exigiriam a estreita colaboração do então cardeal Ratzinger.
(Essas questões incluem a deliberada diminuição da colegialidade episcopal, o silenciamento de um grande número de proeminentes teólogos, uma recusa global a ordenar homens casados, a declaração de que as mulheres nunca poderiam ser padres, a exclusão dos católicos divorciados e de segunda união à Eucaristia e uma recusa a discutir a revisão do ensino do Magistério sobre a sexualidade humana, à luz dos modernos conhecimentos científicos.)
Ao beatificar João Paulo II, o Papa Bento XVI colocou quem quisesse rever quaisquer das realizações e carências do último pontificado – com o qual ele compartilha a responsabilidade – em uma situação delicada.
Qual será o efeito imediato da beatificação em seu próprio reinado, dirigindo-se agora para o seu sétimo ano? Bento XVI mostrou-se capaz de tocar algumas pessoas, especialmente os conservadores e até mesmo os liberais de um cunho mais intelectual. No entanto, as massas parecem mais conscientes de como ele não tem o carisma e a experiência pastoral do seu antecessor. O choque de entusiasmo que a beatificação gerou pode ser transferido para uma maior explosão de energia para o pontificado de Bento XVI? Ou pode lançar uma sombra ainda mais escura sobre ele?
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Beato João Paulo II: "Assim aprouve ao Senhor" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU