31 Agosto 2018
"Em vez de aguardar a inevitável próxima rodada de revelações chocantes, os bispos devem nomear especialistas respeitados, legais e policiais, para vasculhar os arquivos e fazer uma divulgação completa e desapaixonada dos abusos ocorridos e do dinheiro gasto durante décadas para comprar o silêncio das vítimas. Contar toda a verdade é o primeiro passo essencial em qualquer tentativa de restaurar a confiança da Igreja", afirma editorial do National Catholic Reporter, 30-08-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
A comunidade católica chegou a um ponto de sua história tão marcado pela realidade crua que não nos resta algo para apoiar ou nos proteger. Nossos líderes, drenados de autoridade e credibilidade, só podem seguir enquanto nos movemos para além das expressões sobrecarregadas, além até mesmo do conteúdo de nossas orações normais. Nós nos apegamos a algum novo salmo de lamentação para caber neste momento horrível e buscar uma nova maneira de viver como uma comunidade católica.
O escândalo de crianças abusadas sexualmente por padres cujos atos foram encobertos pelos bispos tem estado nos olhos do público em detalhes macabros há mais de 30 anos. O relatório do grande júri da Pensilvânia, por exemplo, não foi o primeiro nem foi pior em detalhes do que os outros. Por que isso deveria despertar a consciência pública e a indignação dos católicos, como tem acontecido, não importa. Um novo momento se apresenta diante de nós.
O papado de Francisco, tão promissor em relação a uma reforma necessária, está num ponto de inflexão. Ou ele lida com essa crise com ações efetivas, abrangentes e concretas, ou seu mandato será um fracasso decepcionante.
Mais importante, o momento atual deve levar a uma reforma radical da cultura clerical católica e ao significado da própria ordenação. Se não pudermos começar este trabalho desafiador, devemos pelo menos ter a honestidade de dizer que um mal monstruoso prevaleceu e que não entendemos mais o que significa ser uma igreja de Jesus Cristo.
A mudança deve vir do topo. Nos Estados Unidos, deve ser iniciado pela Conferência Nacional dos Bispos Católicos. Globalmente, olhamos para o Papa Francisco, cujo humilde exemplo e bondade mudaram a cultura do papado de maneira dramática, para reconhecer o precipício e nos guiar como uma igreja unida para longe dele.
Somos sensíveis, assim como qualquer outro que esteja do lado de fora, às dificuldades e perigos que Francisco enfrenta. Forças poderosas na igreja têm tentado sabotar seu papado desde os primeiros dias. O último veio na forma de uma carta do arcebispo Carlo Maria Viganò, ex-núncio, descontente, nos Estados Unidos. Sua correspondência é desarticulada e repleta de imprecisões e alegações infundadas de que Francisco sabia sobre o abuso de seminaristas e crianças por parte do ex-cardeal Theodore McCarrick anos atrás.
A luta destrutiva para os dois lados do conflito se tornou pública e os inimigos de Francisco estão aproveitando este momento de turbulência como uma oportunidade para minar seu papado. Questionamos se é genuíno o comprometimento deles em manter as crianças seguras e tememos que o barulho em torno da carta de Viganò servirá apenas para desviar a atenção da reforma real e necessária.
As reportagens sobre a crise apareceram nas nossas páginas em 1985, e aqui e em outras publicações por 17 anos antes do levante em Boston que chocou a atenção pública. Os bispos dos EUA rejeitaram vários avisos sérios e detalhados. Desde o início, eles optaram pelo que ficou conhecido como "o manual": adotando uma estratégia legal que muitas vezes procurava intimidar as vítimas, pagavam enormes quantias pelo silêncio e ocultavam os crimes de seus padres. Eles regularmente transferiam padres doentios e perigosos para outras paróquias, dioceses e até mesmo para outros países, sem revelar o potencial deles para causar problemas. Seu senso de responsabilidade pastoral foi reduzido aos interesses do clero e à reputação da cultura clerical.
A história é significativa porque qualquer caminho para o futuro deve considerar os erros do passado. É preciso reconhecer que o surgimento da crise de abusos sexuais abrange a maior parte do papado de São João Paulo II. Revelações de abuso e encobrimento se acumularam quase mensalmente durante seu longo pontificado, e ele forneceu o modelo para a abordagem da hierarquia ao crescente escândalo. Nem uma vez ele se encontrou com vítimas. Apesar de condenar o abuso, não fez nada para a responsabilização dos bispos, a maioria dos quais ele mesmo nomeou. Ele se recusou a ouvir os poucos que ousaram avisá-lo.
Um dos exemplos de "sacerdócio heroico" de João Paulo II foi Marcial Maciel Degollado, fundador da ordem religiosa dos Legionários de Cristo, que molestou jovens em suas escolas e gerou pelo menos dois filhos de mulheres diferentes. João Paulo II, que uma vez se referiu a Maciel como "um guia eficaz para a juventude", bloqueou a adjudicação de um caso contra o pedófilo de reputação duvidosa. Ele repetidamente ignorou relatos detalhados e persuasivos de homens excelentes que haviam deixado a ordem por causa do abuso de Maciel.
Dado o caráter da era atual, João Paulo II seria um alvo certo para medidas disciplinares. Existe claramente um perigo em apressar o processo de canonização.
Líderes da Igreja têm se mostrado lentos para reconhecer as implicações da cultura clerical, onde só homens são permitidos e cujos membros frequentemente exerciam extremo controle sobre a vida dos fiéis. Já passou da hora de fazer um exame profundo do registro de condenações, e João Paulo II está no meio dele.
O fato é que Francisco é o primeiro papa a sancionar duramente bispos acusados e a pedir desculpas por não ter acreditado e ter tomado a decisão de agir no Chile, antes dos pedidos de renúncia em massa e se encontrar com vítimas chilenas. Agora ele deve continuar a resistir aos ventos contrários, primeiro fazendo do trabalho da Pontifícia Comissão para a Proteção de Menores uma prioridade no Vaticano.
Embora o progresso tenha sido relatado entre os grupos de trabalho individuais da comissão, o corpo ainda não tem dentes. No mínimo, o papa deve insistir para que a Congregação para a Doutrina da Fé respeite e trabalhe com os pedidos que saem da comissão de abuso sexual para que ela não apenas faça perguntas, mas também possa emitir recomendações viáveis.
Além disso, Francisco precisa instituir um novo dicastério para lidar com o abuso sexual do clero em todas as suas formas e manifestações, incluindo os bispos que encobrem o mal. Tal agência deve envolver especialistas externos de estatura e realização significativas o suficiente para que eles suportem a pressão, de outros elementos da Cúria, para comprometer seu trabalho.
A igreja também precisa de um grupo internacional de especialistas encarregados de investigar, através de uma vasta gama de ciências, a cultura do clero, como ela se desenvolveu até esse estágio e quais mudanças são necessárias. Este tem que ser um estudo exaustivo do crescimento da cultura, dos seminários e programas de formação, e de todas as incrustações e presunções de privilégio e poder que se acumularam ao longo dos séculos. Para entender o que precisa mudar no futuro, a igreja deve entender como a cultura clerical chegou a um ponto em que seus líderes poderiam virar as costas para as crianças que foram sexualmente atacadas para proteger seus predadores e a cultura em que vivem.
Embora o crime de abuso sexual não conheça fronteiras internacionais, a atual crise é - mais uma vez - centrada nos Estados Unidos. McCarrick foi um prelado superior nesta nação. O júri da Pensilvânia investigou seis dioceses dos EUA. E Viganò escolheu expressar sua vingança por meio de duas agências de notícias conservadoras sediadas nos Estados Unidos.
Portanto, a igreja dos EUA é o marco zero nessa guerra e cabe aos líderes dela darem um passo à frente e assumirem o controle do sangramento antes que cause dano irreparável.
Em primeiro lugar, pedimos uma investigação nacional em todas as dioceses dos 50 estados. Esta investigação deve ser conduzida por um corpo que é independente da igreja e inclui uma forte representação de leigos, especialmente mulheres e não-católicos. Nós, nesta igreja, precisamos, finalmente, de uma contabilidade completa e nacional do que aconteceu e de quem foi responsável - por qualquer crime e qualquer encobrimento - pelo menos no último século.
Também pedimos aos bispos dos EUA que determinem que todas as dioceses tornem pública uma lista de sacerdotes e diáconos acusados com credibilidade e suas designações paroquiais. É hora de tal nível de transparência para que todos os paroquianos possam começar a reconquistar confiança em sua instituição de fé.
Além disso, queremos ver a abolição dos acordos de confidencialidade que forçam o silêncio das vítimas de abuso sexual. Isso significa dissolver os acordos de não divulgação já em vigor, a menos que, por alguma razão, as vítimas peçam para mantê-los dessa forma.
Finalmente, convocamos os bispos, os líderes desta igreja, a recusarem e refutarem o argumento que surge daqueles que afirmam que a homossexualidade no sacerdócio está na raiz do problema do abuso sexual. O fato - e estudos estabeleceram o fato - é que o ataque de crianças dentro da estrutura da igreja não é mais o produto da cultura gay do que o ataque de crianças dentro das famílias, onde a maior parte ocorre, é um produto da cultura heterossexual. O problema é uma doença, e a ofensa mais notória para a comunidade católica foi a estratégia deliberada dos bispos para encobrir esses crimes insondáveis.
O caminho para a purificação será doloroso e embaraçoso, mas é preciso começar o processo de reforma de maneira rápida e séria. Se existe algo substancial por trás da recente enxurrada de desculpas episcopais e remorso por essa "catástrofe moral", eles finalmente começarão um processo ordenado de dizer a verdade, algo que o National Catholic Reporter tem defendido há décadas.
Em vez de aguardar a inevitável próxima rodada de revelações chocantes, os bispos devem nomear especialistas respeitados, legais e policiais para vasculhar os arquivos e fazer uma divulgação completa e desapaixonada dos abusos ocorridos e do dinheiro gasto durante décadas para comprar o silêncio das vítimas. Contar toda a verdade é o primeiro passo essencial em qualquer tentativa de restaurar confiança.
Estamos corporativamente no ponto de decisão que sempre enfrentamos quando reconhecemos o pecado consequencial e, neste caso, público: Nos movemos para a dor da purificação ou continuamos a fingir e a nos enganar, vivendo em constante medo da próxima revelação?
Escolher o caminho da purificação nos levará à parte mais profunda da vida sacramental que afirmamos ser a realidade que nos une. Este caminho nos conduzirá através do coração do Evangelho, onde encontramos o Jesus da infinita misericórdia e perdão. Mas primeiro, o exame e a confissão da verdade.
Nós sabemos como fazer isso.
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É hora de escolher o doloroso caminho da purificação. Editorial de National Catholic Reporter - Instituto Humanitas Unisinos - IHU