Trump contra os povos: quando o império desafia o Evangelho

Foto: Molly Riley/Flickr

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06 Dezembro 2025

A recente ameaça de Donald Trump de fechar o espaço aéreo da Venezuela é um ato que revela brutalmente a antiga doença imperial que permeia a política estadunidense: a convicção de que o mundo é um tabuleiro de xadrez pessoal, onde as pessoas existem para serem obedientes e os recursos para poder de apossar deles.

O artigo é de José Carlos Enríquez Díaz, escritor, publicado por Religión Digital, de 02-12-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo. 

O presidente colombiano, Gustavo Petro, denunciou isso imediatamente: com que direito um chefe de Estado estrangeiro pode fechar o espaço aéreo de outro país? A resposta é simples, e também terrível: com nenhum, exceto a arrogância de uma potência acostumada a ditar ordens ao resto do mundo. Mais uma vez, os Estados Unidos se colocam acima do direito internacional, argumentando que a soberania alheia é um obstáculo quando não se submete aos seus próprios interesses. O império age e depois busca justificativas. É a mesma velha coreografia.

Essa atitude não é um acidente histórico. É a continuação de uma longa cadeia de intervenções, golpes de Estado, invasões e desestabilizações que marcaram a fogo a memória da América Latina. Basta lembrar como a Espanha, sob José María Aznar, curvou-se a Washington para participar da farsa do Iraque. Uma guerra construída sobre uma mentira forjada por eles mesmos. Armas de destruição em massa que nunca existiram, milhares de mortes, países devastados, regiões inteiras mergulhadas no caos. E, no fim, a confissão implícita: não era a liberdade que buscavam, mas o controle dos recursos e das posições estratégicas. Quando um país é pobre, não incomoda ninguém; quando um país é rico e quer decidir por si mesmo, torna-se inimigo.

A América Latina conhece bem essa lógica. Em El Salvador, o sangue dos jesuítas assassinadosIgnacio Ellacuría, Ignacio Martín-Baró, Segundo Montes e muitos outros — continua a clamar por justiça. Eles não foram mortos por engano ou acaso: foram eliminados porque diziam a verdade. Porque denunciaram a pobreza, a opressão e a injustiça institucionalizada. Porque exigiram uma paz fundada na dignidade humana. Ellacuría repetia constantemente que era necessário tirar os povos crucificados da cruz. E por causa dessa frase, por causa desse Evangelho vivido, o império decidiu que ele era perigoso. O exército que os matou foi armado, financiado e treinado pelos Estados Unidos. Essa é a realidade que Trump hoje busca apagar com um discurso de ameaças e punição.

E enquanto ataca a América Latina por fora, Trump também ataca seu próprio povo por dentro. Ele persegue os imigrantes como se fossem criminosos, procurando-os em hospitais, escolas e nas ruas onde simplesmente tentam sobreviver. Ele constrói muros físicos e simbólicos. Divide, demoniza e humilha. Seus discursos são impregnados de uma violência fria, calculada e eleitoral que nada tem a ver com os valores cristãos que alguns em seu governo afirmam defender. O Evangelho não deixa margem para dúvidas: Eu era estrangeiro e me acolhestes (Mt 25,35). Ele não diz vocês me expulsaram. Ele não diz vocês me identificaram como uma ameaça. Jesus jamais fechou fronteiras, jamais perseguiu aqueles que fugiam, jamais condenou aqueles que lutavam para viver. Pelo contrário, Trump baseia sua política na negação do outro.

Ele afirma proteger seu país, mas o faz violando o mandamento fundamental: Ame o seu próximo como a si mesmo (Mc 12,31). O que resta do Evangelho quando o governante despreza o pobre, o imigrante, o refugiado? O que resta da verdade quando o poder se alimenta da mentira cotidiana? Jesus ensinou que a verdade vos libertará (Jo 8,32). Trump demonstrou que a mentira torna escravos: escravos do medo, da manipulação, da propaganda e da ideia de que o mundo é um butim.

Após a morte do Papa Francisco, muitos temeram que a voz moral do mundo se enfraquecesse. Mas o novo pontífice, Leão XIV, falou com uma força inesperada: Quem usa a força para subjugar um povo, abandonou o Evangelho. Ele não se limitou a denunciar a violência direta; também destacou a violência econômica, a violência diplomática e a violência silenciosa das sanções que empobrecem milhões de pessoas. E acrescentou, com uma firmeza que chocou muitos governos poderosos: Deus deu a cada nação o que ela precisa para a sua dignidade. Ninguém tem o direito de se apoderar do que pertence ao povo. Não havia necessidade de citar nomes. A mensagem atingia em pleno o coração do império.

Nesse meio tempo, a Venezuela reclama à OPEP+ que os Estados Unidos estão tentando se apoderar de suas reservas de petróleo através do uso de força militar letal. E essa não é uma denúncia exagerada: é a constatação de um padrão histórico. Toda vez que um país latino-americano tenta administrar sua riqueza para o bem comum, o império responde com bloqueios, ameaças e punições. Fez isso na Guatemala, no Chile, na Nicaraguá, em Cuba, em Honduras. Fez isso com governos progressistas e democráticos, eleitos por seus povos. E está fazendo isso novamente agora, sem véus, sem desculpas, sem vergonha.

Mas algo está mudando. Algo está se rompendo na máquina do medo. As pessoas estão se lembrando. Estão se lembrando das ditaduras impostas, dos mártires silenciados, das pilhagens disfarçadas de ajuda humanitária, das promessas vazias de uma democracia exportada. Estão se lembrando do Evangelho, que sempre esteve do lado dos pobres, não dos poderosos. Estão se lembrando que Jesus disse: Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça (Mt 5,6). E essa sede está crescendo novamente na América Latina.

Trump pode ter aviões, sanções, dinheiro e propaganda, mas não pode impedir um continente de despertar. Ele não pode silenciar a memória de Ellacuría ou a voz profética de Leão XIV. Ele não pode cancelar o Evangelho que exige justiça, verdade e dignidade. Ele não pode impedir que o povo se levante para dizer basta. Porque quando os povos se lembram, não obedecem mais. E quando não obedecem mais, o império começa a ruir.

Trump pode se achar o senhor do mundo, pode construir muros, lançar ameaças e manipular mentiras, mas ele nunca poderá roubar a dignidade dos povos, silenciar a memória dos mártires ou impedir que a verdade do Evangelho prevaleça sobre a injustiça. Porque um império construído sobre o medo e a mentira está sempre fadado a cair. A história está do lado dos humildes, daqueles que lutam pela paz, daqueles que defendem sua terra e seus direitos. E como disse Jesus: Os deserdados herdarão a terra (Mt 5,5). Trump poderá gritar e ameaçar, mas a América Latina não se ajoelha mais. A América Latina está se levantando, com memória, com fé e com justiça. E quando um continente que está despertando diz basta, nem mesmo o império mais poderoso pode ignorá-lo.

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