El Salvador. 31 anos de insistência. Breve resumo do caso dos jesuítas assassinados e suas diferentes implicações

Mural aos mártires da UCA, de El Salvador. Foto: El Faro

16 Julho 2020

“A impunidade não oferece nenhuma garantia de que não se repitam crimes de lesa-humanidade, cremos que todo esforço de levar aos tribunais os supostos autores destes crimes contribui às garantias de não repetição”, relata o Instituto de Direitos Humanos da UCA - Idhuca sobre o atual julgamento dos mentores do assassinato de Ignácio Ellacuría e seus companheiros, ocorrido em 16-11-1989. O artigo é publicado por Religión Digital e reproduzido por CPAL Social, 09-07-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis o relato.

 

A notícia da abertura do julgamento do coronel Montano é uma boa notícia à justiça e reforça o processo pendente em El Salvador contra cinco supostos autores intelectuais, igual a Montano, do crime contra os jesuítas e duas de suas colaboradoras. Fazer um breve resumo do acontecido no caso ao longo destes 31 anos pode ser interessante, especialmente para tantos jesuítas que entraram na Companhia depois daquela distante data.

 

Quando às 06:30 da manhã, de 16 de novembro de 1989, fomos ver os cadáveres de nossos companheiros e de sua colaboradora e sua filha, muito próxima há anos, nos demos conta de que se tratava de uma operação militar dirigida desde o Estado Maior do exército salvadorenho. Escutamos um intenso tiroteio de aproximadamente vinte minutos às duas da manhã do mesmo dia, junto com três ou quatro explosões muito fortes. Pensamos que era um enfrentamento na rua entre o exército e a guerrilha. Porém, ao vermos a quantidade de balas de diversos calibres dentro da Universidade, junto com o resto de um “foguete antitanque Law”, disparado contra a morada dos jesuítas, não nos restaram dúvidas. Ademais, previamente, em 11 de novembro, escutamos em uma emissora nacional de rádio, dirigida por Maurício Sandoval, então trabalhando na “Inteligência militar”, e na qual, mediante telefone aberto, pedia-se pelo assassinato dos jesuítas, assim como de dom Rivera e dom Gregorio Rosa Chávez. Se o assassinato não parecia provável quando escutamos a transmissão do rádio, os acontecimentos da outra madrugada não nos deixavam dúvidas da autoria.

 

De fato, o lugar onde mataram os companheiros estava em uma zona muito vigiada. Ficava a 250 metros da Colonia Arce, fortemente protegida, onde vivia a maioria dos altos oficiais do exército. Os corpos de nossos companheiros e as duas mulheres encontravam-se a 400 metros do edifício da “inteligência militar” e a 700 metros em linha reta do Estado Maior do exército. Continuamente víamos grupos de militares em nossa zona, vigiando o entorno desses lugares estratégicos em uma luta com a guerrilha. Um tiroteio tão intenso e prolongado que somente eles poderiam fazer sem que chegassem outras forças do exército para investigar o que se passava. Ademais, várias testemunhas os viram ou os escutaram. Nesse mesmo dia 16, às 12h, o arcebispo de San Salvador, dom Rivera, seu auxiliar, o hoje cardeal Rosa Chávez e o padre José María Tojeira visitaram o então presidente Cristiani para lhe dizer que o exército havia assassinado os jesuítas e seus dois colaboradores.


Corpos das vítimas. Foto: John Hopper | AP | Religión Digital

Os dias que se seguiram foram frenéticos. Com a mídia controlada pelo estado de sítio, vários membros do Exército e do governo disseram que os guerrilheiros os haviam assassinado. Aqueles que acusavam os militares contavam apenas com a insistência da imprensa internacional, que desempenhou um excelente papel na busca da verdade. A única testemunha visual dos soldados dentro da Universidade na época do crime, Lucía Cerna, teve que testemunhar na Embaixada da Espanha por razões de segurança e deixar El Salvador imediatamente depois. Ao chegar em Miami, o FBI a segurou por uma semana para interrogá-la. E até telefonou e permitiu que ela chegasse a Miami para ser interrogada pelo tenente-coronel salvadorenho Rivas Mejía, que sistematicamente a pressionou e ameaçou, forçando-a a se retirar.

 

Após um mês e meio de insistência, o governo não teve escolha a não ser reconhecer o crime

 

No final, depois de um mês e meio insistindo que os guerrilheiros haviam assassinado os jesuítas, o governo não teve escolha senão reconhecer o crime. Mas os responsáveis foram reduzidos. Um assassinato em massa que havia sido planejado e ordenado pelo Estado Maior do Exército foi reduzido a um grupo de 9 pessoas, incluindo um coronel, dois tenentes, um segundo tenente e cinco soldados.

 

O julgamento teve seus momentos de tensão. Os dois promotores designados para o caso, que estavam trabalhando com grande profissionalismo, sofreram ameaças de morte, canalizadas através da embaixada americana, e ameaças de demissão do Procurador-Geral da época. No final, eles foram forçados a renunciar e foram contratados como promotores particulares pela Companhia de Jesus.

 

O julgamento que ocorreu entre 1989 e 1992, absolveu os autores materiais do crime, condenou os intermediários da ordem e encobriu os autores intelectuais, membros do Estado Maior e do Alto Comando.

 

A luta pela verdade continuou e, finalmente, a Comissão da Verdade, em 1993, deu o nome de cinco oficiais do alto comando que, na época dos eventos, ocupavam os cargos de Chefe do Estado Maior do Exército, vice-ministros da Defesa (dois, um encarregado do exército e o outro da polícia, então militarizada. Este era o coronel Montano), chefe da brigada militar que controlava a capital e chefe da Força Aérea. Cinco dias após o Relatório da Verdade, a Assembleia Legislativa emitiu uma lei geral de anistia que cobria absolutamente todos os crimes cometidos durante a guerra.


O ex-coronel e ex-vice-ministro de Defesa de El Salvador Inocente Montaño, o quarto da esquerda para a direita, nesta foto de 1989, depõe pelo assassinato dos cinco jesuítas e duas colaboradoras da Universidade Centro-Americana. Foto: La Prensa Gráfica | Religión Digital

Em 1999, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da OEA, solicitou a El Salvador que reabrisse o caso jesuíta devido às graves deficiências que havia no julgamento iniciado em 1989. A resposta do presidente Flores foi afirmar que eles não abririam o caso do julgamento novamente. O mesmo foi dito pelo procurador-geral da época, Belisario Artiga. Em 2000, apresentamos uma denúncia ao Ministério Público, acusando os militares mencionados pela Comissão da Verdade como autores intelectuais, e duas outras pessoas, ex-presidente Cristiani e ex-ministro da Defesa, general Larios, envolvendo-os por omissão de seu dever de proteger. No final, depois de uma longa espera, o Ministério Público abriu o caso solicitando a suspensão da anistia e da prescrição do crime (10 anos, em El Salvador, pelos crimes mais graves), apesar de que crimes contra a humanidade e de guerra sejam imprescritíveis. O sistema judicial, indo até a Suprema Corte, disse que os crimes não foram acobertados pela anistia, mas que o prazo de prescrição já havia expirado. Mesmo um dos juízes do primeiro recurso afirmou, a favor do estatuto de limitações, que “a lei em El Salvador sempre esteve latente” e que as vítimas não eram as culpadas.

 

Primeira grande conquista: a extradição do coronel Montano e a revisão da Lei de Anistia de El Salvador, declarada inconstitucional

 

O próximo passo foi a abertura do julgamento na Espanha, a pedido de alguns familiares dos jesuítas. A UCA deu apoio ao caso, especialmente com informações. Uma primeira grande conquista daqueles que lidaram com o caso na Espanha foi a extradição do coronel Montano, detido nos Estados Unidos por mentir às autoridades de imigração. Dos Estados Unidos, ele foi extraditado para a Espanha para ser julgado pelo crime de terrorismo com homicídio, referindo-se apenas aos jesuítas de origem espanhola.

 

A abertura do julgamento na Espanha foi um passo importante para pressionar não apenas o caso dos jesuítas, mas a favor da revisão da lei de anistia, declarada inconstitucional em 2016. Os esforços a favor da justiça foram acompanhados por várias abordagens que, sem prejudicar a justiça, marca um caminho de perdão. Nesse sentido, o padre Andreu Oliva, como reitor da Universidade, juntamente com o padre Tojeira, diretor do Idhuca, solicitou em maio de 2017 a comutação da sentença de trinta anos aplicada ao coronel Benavides por quase cinco anos de prisão (três antes da lei de anistia e dois hoje). Nosso pedido foi rejeitado pelo Supremo Tribunal de Justiça, que, por outro lado, tem sido extremamente lento em perseguir os acusados no julgamento reaberto em El Salvador.

 

Também em 2017, solicitamos ao Terceiro Tribunal de Paz de San Salvador a reabertura do caso de autoria intelectual que tentamos iniciar em 2000. Desde a sentença de inconstitucionalidade da lei de anistia, trabalhamos para legislar desde a perspectiva da justiça de transição, como um complemento à justiça criminal, a fim de facilitar o julgamento de crimes contra a humanidade e crimes de guerra cometidos durante nossa guerra civil. A resposta do Estado foi nula, que nos motivou a solicitar a reabertura do julgamento que foi tentado em 2000. Após muitos e repetidos apelos da defesa dos militares envolvidos, o juiz decidiu declarar nulas as demissões do ano 2000, dando a razão de nossa reivindicação de inconstitucionalidade.

 

O juiz declara nulas as suspensões do ano 2000 e inicia uma cadeia de destituições, ainda não resolvidas, na justiça salvadorenha

 

A decisão do juiz, em resumo, teve os seguintes elementos: Primeiro, ele declarou sem lugar para as alegações da defesa dos acusados, que insistiam na validade do julgamento do ano 2000. Ao mesmo tempo, declarou nulo o requerimento de 07 de dezembro de 2000, apresentado pelo então promotor Belisario Artiga, que solicitou a suspensão da anistia e da prescrição. Consequentemente, ordenou ao Ministério Público que preparasse um novo requisito. A defesa dos acusados recorreu da decisão do juiz e o caso foi para a Terceira Câmara Criminal de San Salvador. Recebido o caso pela Câmara, os advogados dos réus contestaram um de seus juízes. O caso foi então transferido para a Câmara Criminal do Supremo Tribunal Federal, que confirmou o juiz contestado em seu posto. A Câmara apoiou a resolução do juiz solicitando uma nova liminar. Mas três membros das forças armadas recorreram novamente na Câmara Penal e rejeitaram dois dos juízes da Câmara Penal. O Supremo Tribunal confirmou um dos juízes da Câmara e removeu outro do julgamento. Por cerca de um ano, a Câmara Criminal ainda não julgou o recurso da cassação dos militares.

 

Nesse contexto, o fato de o coronel Montano ser julgado na Espanha tem um significado importante. De fato, a abertura do caso na Espanha de alguma forma contribuiu para a Câmara Constitucional tomar a decisão de declarar inconstitucional a Lei de Anistia em vigência em El Salvador. A deportação de Montano para a Espanha também contribuiu para o sistema judicial salvadorenho, mesmo com toda a lentidão e atrasos, reabrindo o caso dos jesuítas aqui, no qual são acusados cinco supostos autores intelectuais do assassinato, incluindo o então presidente de El Salvador, seu ministro da Defesa e três comandantes militares de alto escalão dos cinco indicados pela Comissão da Verdade de El Salvador. Os dois dos cinco indicados que não são acusados aqui são o general Ponce (chefe do Estado Maior naquela época) por ter morrido e o coronel Montano, que está sendo julgado na Espanha.


Manifestação durante celebração do aniversário do assassinato. Foto: Religión Digital

Impedir que eventos como este se repitam

 

A insistência em monitorar o caso nesses 31 anos tem sua razão de ser. Impedindo a repetição de eventos como este. De fato, em El Salvador, casos muito mais graves foram cometidos durante a guerra civil do que o assassinato dos jesuítas que permaneceram impunes até agora. Sabendo que a impunidade não oferece garantia de que os crimes contra a humanidade não serão repetidos, acreditamos que qualquer esforço para levar os supostos autores desses crimes à justiça contribui para garantir a não repetição.

 

Ao mesmo tempo em que tentamos processar esses crimes, tentamos permanecer abertos ao diálogo com os supostos autores, incentivando-os a contribuir com a verdade e oferecendo a alguns deles formas de reconciliação por meio de recursos legais que reduzam as multas que o sistema judicial possa impor. Nem todos os supostos autores quiseram dialogar (alguns foram especialmente agressivos conosco), mas a Companhia de Jesus sempre esteve aberta ao diálogo.

 

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