17 Novembro 2014
Aos 16 de novembro de 1989, seis sacerdotes jesuítas, a cozinheira e sua filha foram assassinados por militares na Universidade Centro-americana José Simeón Cañas (UCA) na capital salvadorenha. Dos seis jesuítas assassinados, cinco eram espanhóis e, entre eles, o reitor da Universidade, Ignacio Ellacuría.
A reportagem é publicada por BBC Mundo, 16-11-2014. A tradução é de Benno Dischinger.
Sim, entre os assassinados estava o padre Ignacio Ellacuría, reitor da universidade.
O massacre dos “oito mártires da UCA” causou uma onda de indignação no mundo e aumentou as pressões da comunidade internacional para que o governo e a guerrilha iniciassem um diálogo para por fim à guerra.
Uma comissão da verdade, sob o auspício da ONU, determinou que o assassinato foi ordenado por militares de alto nível, mas nenhum general foi encarcerado.
O Estado salvadorenho se negou a conceder a extradição dos 13 oficiais requerida pela Audiência Espanhola para enfrentar juízo no país de origem de cinco dos assassinados.
No lugar dos fatos se encontrava naquele dia Lucía Cerna, que fazia trabalhos de limpeza na universidade e havia ido à UCA com sua família a pedir refúgio aos sacerdotes.
Cerna, de 69 anos, vive hoje na Califórnia, de onde relatou os eventos dessa noite trágica. Falou com Mike Lanchin, do programa Witness, da BBC.
“Em 11 de novembro se foram as luzes e a partir de então não houve energia elétrica. Pensava ir ao mercado no dia seguinte, mas já não se podia porque a guerra já estava bem pesada. Passavam helicópteros rugindo como leões, eram as forças armadas que estavam atacando os guerrilheiros, os quais corriam por todas as partes.
Eu estava escondida debaixo de um colchão da cama com minha filhinha.
Jorge, meu esposo, tinha a padaria na casa, a gente vinha como podia, embora fosse sob as balas, a comprar o pão.
Na terça, 14, à noite não tínhamos nem velas, nem candeeiros, nem água, nem lenha e o refrigerador já estava todo vazio, já não havia comida. Eu não estava de acordo com que a menina de quatro anos, que eu tinha nesse tempo, estivesse agüentando necessidades por não comer.
De manhã cedo, pelas seis e cinco da manhã, já com uma bandeira branca, eu lhe disse, vamo-nos a buscar meus chefes. Eles nos vão amparar.
A guerra em El Salvador teve lugar entre 1979 e 1992. A ONU estima que morreram mais de 75.000 pessoas.
Eu antes pedi permissão por telefone ao padre para ver se me recebia com minha Geraldina, que é minha filha, e Jorge meu esposo. Pedi-lhe se era possível que dessem pousada e ele me responder que com gosto, e me disse: vem a qualquer hora aqui, pois eu vou estar.
Na tarde em que chegamos, o padre me emprestou uns colchonetes e me disse: se queres qualquer coisa, água, comida, aqui há.
Bem entrada a noite, se ouviu aquela grande barulheira dentro da universidade. Uma noite antes, por casualidade, o padre Nachito tocava o violão, eu fiquei ouvindo e por isso havia deixado a janela aberta quando fui deitar.
Quando passaram umas quantas horas desde que nos havíamos deitado, se ouviu a grande guerra dentro da universidade e vi que havia um grupo de homens com uniforme camuflado indo para dentro.
Vi os soldados que entraram e ouvi que também o padre andava no corredor do lado por onde entraram os soldados. E ele dizia “Vocês são uma carniça! Isto é, uma injustiça!” e então o instante desse golpe, não se ouviu nada, sua voz já não se ouviu, houve um grande tiroteio de grosso calibre, um tiroteio por todos os lados.
Vi como o grupinho era como de cinco homens deste lado da casa. Não havia luz elétrica, mas iluminou-os para mim a Lua, pois havia Lua cheia nessa época.
Estava dando patadas e gritadas lá na parte de dentro da casa. Fortaleceram-se os disparos e também se ouvia que davam patadas nas lâmpadas, nos escritórios, nas camas, ouvia que pegavam umas coisas que devoravam como se fossem costelas.
Mas, a voz do padre já não estava.
Eu, de minha parte, o que senti em meu corpo era como em vez de sangue, como se eu estivesse numa geladeira, numa geladeira, mas bem pesada de gelo. O sangue me subia e descia gelado, gelado, gelado.
Ao amanhecer, vimos o monte de corpos na grama e num quarto estavam as mulheres mortas, eu acreditava que eram freiras porque nunca imaginei que a cozinheira havia ficado ali.
Civis, em sua maioria estudantes, requisitados por militares durante a guerra.
Fui à casa provincial para dar a má notícia. O padre Saenz me disse, tens que ir, Lucia, vamos mandar-te para onde queres ir, para a França, para a Espanha, ou para os Estados Unidos.
Me levaram à embaixada da Espanha. Um avião da Cruz Vermelha chegou para levar-nos ao aeroporto de El Salvador.
Quando aterrissamos em Miami, descemos do avião e nos levaram para um lado e de imediato se juntaram vários homens e se identificaram em espanhol e disseram que eram da FBI, que os seguíssemos.
Puseram-nos num hotel. Eu não imaginava o que vinha no futuro.
Interrogaram-nos desde as 7 da manhã até as 7 da noite.
O homem que eu pensava era um doutor, entrou um homem em meio ao interrogatório e lhe disse coronel, tinha vindo de El Salvador, como ele mesmo nos disse.
Nestes três dias em que ali estivemos, a mim o homem me maltratava muito verbalmente, psicologicamente.
Ele me dizia que eu não era a varredora da universidade, que eu era comunista, uma guerrilheira, uma ladra, dava contra a parede o homem quando eu lhe contestava que não era assim. Eu me punha a chorar porque lhe tinha medo.
Muito me havia feito falar, desde as sete da manhã até as sete da noite, vários dias. Estava bem cansada, só tomávamos algo no desjejum, não havia almoço e nada até que regressássemos à noite para comer.
O coronel me disse, te vou tirar esse pelo que tens para que te dê vergonha, vai ficar o puro côco e até as pestanas te vou tirar.
Então me cansei e lhes disse que não sabia nada. Já me havia cansado de que me estivesse maltratando.
Ficaram bem contentes quando lhes disse quer não ia dizer nada e me disseram: “Isso devias ter dito desde o princípio”.
Já na noite da quinta-feira chegaram dois sacerdotes a salvar-nos desse lugar onde nos mantinham presos.
Vieram dois advogados de direitos humanos e eu lhes disse, perdoem-me, porque eu mudei meu testemunho, mas não agüentava tanto sofrimento.
E me disseram, não te preocupes, estamos aqui para amparar-te e ajudar-te.
As oito vítimas do massacre foram Ignacio Ellacuría, Ignacio Martin-Baró, Segundo Montes, Juan Ramón Moreno, Joaquin López y López, Amando López, Elba Ramos e sua filha Celina Ramos de 16 anos.
Minha vida mudou totalmente. Quando alguém diz a verdade traz consequências, porque ninguém quer ouvir a verdade.
Antes que isso sucedesse faz 25 anos eu tinha felicidade, com todo meu gosto fazia a limpeza em ambos os edifícios, estávamos com a padaria e ríamos e saíamos sem aflição nenhuma.
Mas, tudo mudou. Minha pessoa ainda tem sequelas desse tempo, me ficou esse medo, ao falar disso ainda sinto medo”.
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Lucía Cerna, testemunha do massacre que mudou a guerra em El Salvador - Instituto Humanitas Unisinos - IHU