25 Mai 2015
Depois que o falecido arcebispo de El Salvador Oscar Romero for beatificado no sábado, teremos assistido a beatificação de um mártir assassinado no altar em 1980 por ter buscado a justiça e a paz em um país que, à beira de uma guerra civil, carecia tanto de uma coisa quanto da outra.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 22-05-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Ainda que seja difícil saber o que Romero acharia de tal homenagem, parece mais certo que ele se sentiria confuso com o que aconteceu em El Salvador nos 35 anos que se passaram desde a sua morte.
Por um lado, na sequência de um conflito sangrento (de 1980 a 1992) e que viu cerca de 85 mil pessoas mortas, 8 mil desaparecidos e 1 milhão de deslocados, um acordo de paz entre o grupo esquerdista Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional e um governo salvadorenho conservador apoiado pelos EUA produziu um cessar-fogo que jamais foi rompido.
Na metade da década de 1990, a antiga guerrilha havia se transformado em um dos principais partidos políticos do país, e El Salvador teria tido uma série de transferências pacíficas de poder nos anos subsequentes.
É isso o que o secretário-geral da ONU Ban Ki-moon tinha em mente quando recentemente chamou El Salvador de um “exemplo para o mundo”.
No entanto, este sentimento de tranquilidade é, até certo ponto, ficção, pois mascara um país que ainda está, em grande parte, em guerra – embora sem as conotações ideológicas dos anos de Romero, quando uma insurreição de esquerda se colocou contra uma elite oligárquica.
O derramamento de sangue, hoje, está motivado pelas tensões entre gangues criminosas rivais, cujas práticas para reforçar o caixa financeiro delas incluem o comércio de drogas, sequestros, extorsão, permeadas por tiroteios entre as próprias gangues, a polícia e os serviços de segurança. No ano passado, a violência produziu um incrível índice de homicídios estimado em 68,6 a cada 100 mil pessoas, o mais alto do mundo.
Para fins de comparação, o índice de homicídio no Reino Unido foi, no mesmo ano, de 1,0; nos EUA, foi 4,5.
Por ano, quase o mesmo número de salvadorenhos morrem por causa da violência das gangues quanto aqueles que pereceram durante o período de guerra civil. Há dias em que o número de mortes excede os piores índices durante os anos de guerra.
Os sinais de uma sociedade sob o cerco da violência estão em toda a parte. Homens armados com espingardas protegem postos de gasolina, shopping centers e estabelecimentos de fast-food, enquanto que os ônibus em San Salvador param de circular por volta das 8h, pois não é seguro continuar depois que escurece.
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O motivo por que as gangues prosperam não é nenhum mistério.
Num país onde 40% da população vive na pobreza e a renda per capita está entre as mais baixas do hemisfério norte, um recente estudo conduzido pela polícia descobriu que, a poucas quadras do centro histórico de San Salvador, as gangues fazem 100 mil dólares por dia extorquindo o comércio local em troca de proteção.
A quantidade de participantes em gangues no país está estimada entre 60 e 100 mil – aproximadamente a metade do tamanho da força policial, e eles estão em geral melhor armados e apelam muito mais facilmente à violência para conseguirem os seus objetivos. Os salvadorenhos comuns dizem sentir a necessidade de estar constantemente em guarda, preocupando-se em não se tornar vítima de assalto ou sequestro.
Uma pesquisa recente descobriu que 1 a cada 4 salvadorenhos considerou abandonar o país devido à violência e à falta de oportunidades econômicas.
O padre José María Tojeira, jesuíta espanhol que há muito vive em El Salvador, acredita que existe uma linha tênue ligando a violência estatal da época de Dom Oscar Romero com o flagelo das gangues que se vê atualmente. Como superior jesuíta na época, Tojeira descobriu os corpos dos seis companheiros de ordem, mais a trabalhadora doméstica e sua filha, que foram mortos violentamente no campus da Universidade Centro-Americana em 1989 por se oporem ao regime militar.
“Temos uma cultura de impunidade”, disse ele. “De todos os assassinatos que aconteceram durante a guerra civil, só em 5% dos casos alguém foi responsabilizado, e é bem isso o que acontece hoje com as gangues”.
“Se a pessoa acha que não haverá consequências”, disse Tojeira, “matar se torna muito mais fácil”.
Para nós nos EUA, esta situação pode parecer distante. Mas, na verdade, é tudo menos isso.
As gangues de El Salvador são, de fato, uma exportação americana, tendo sido forjadas em Los Angeles na década de 1980 por jovens migrantes que fugiam da guerra civil, e que, muitas vezes, se achavam nos EUA sem família nem trabalho. Por exemplo: a gangue chamada “18th Street” (ou “Calle 18”) tem este nome inspirado numa localidade de Los Angeles.
Uma lei imigratória americana restritiva de 1996 acabou deportando muitos membros desta e de outras gangues para El Salvador, onde eles recriaram as suas redes.
Al Valdez, policial há 28 anos em Orange County, Flórida, disse que mandar de volta tantos membros de gangues, de uma só vez, para um pequeno país despreparado para receber um tal influxo foi crucial para a atual situação de violência.
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Assim como na época de Romero, a política em El Salvador hoje está dominada por movimentos rivais à violência.
Alguns querem envolver as gangues no diálogo, fazendo concessões em troca de uma trégua. Defendem que somente respondendo às queixas dos membros das gangues – e ao problema mais amplo da pobreza crônica – é que se pode alcançar uma paz duradoura.
Outros defendem uma mão firme, sustentando que apaziguar as gangues acaba apenas encorajando-as.
A mesma divisão acontece entre a comunidade católica de El Salvador.
De um lado estão figuras tais como Antonio Rodriguez, sacerdote que passou 15 anos trabalhando nos bairros mais difíceis do país na tentativa de resgatar os jovens que participavam de gangues.
Quando se declarou uma trégua em 2013, Rodriguez deu início a um diálogo entre as partes a fim de manter a paz, seguidamente visitando os chefões em suas celas prisionais. Ele buscou fazer com que lhes fossem concedidas recompensas por estarem cooperando, por meio de penas reduzidas e regalias tais como visitas conjugais e a permissão para comer comidas vindas de fora da cadeia.
Em setembro de 2014, no entanto, Rodriguez foi acusado de associação com o crime por supostamente fornecer telefones celulares aos prisioneiros, permitindo com que eles pudessem continuar a administrar as suas atividades criminosas por detrás das grades. Apelidado de “o padre gangster”, Rodriguez recebeu uma pena de 2 anos e meio, sendo solto no dia seguinte.
Rodriguez alega que estava agindo com o apoio do governo.
Em 2012, Dom Fabio Colindres abriu um diálogo informal com as gangues, o que muitos creditam como sendo o que pavimentou o terreno para uma trégua, responsável pela diminuição da violência, ainda que fora visto pelos críticos uma forma de simplesmente dar a oportunidade para as mesmas gangues se reorganizarem e expandir sem a pressão policial.
Estra trégua se desfez mais tarde, e em maio de 2013 Colindres foi renegado pela conferência episcopal do país. Esta emitiu uma nota dizendo que a trégua não havia feito nada para a “população honrada e trabalhadora” de El Salvador.
Da mesma forma como na época de Dom Oscar Romero, a Igreja em El Salvador ainda está produzindo mártires.
Em 2009, um sacerdote redentorista chamado Leopoldo Cruz foi morto numa área rural, presumivelmente como vítima da violência entre gangues, enquanto no mesmo ano um leigo católico chamado William Quijano, que pertencia à Comunidade de Sant’Egidio e dirigia uma “Escola da Paz” para jovens salvadorenhos, foi também morto.
Em janeiro de 2014, seis cristãos evangélicos, incluindo um adolescente, foram mortos a tiros quando deixavam a igreja numa área rural, próximo à fronteira com a Guatemala. No mesmo mês, dois outros adolescentes foram mortos violentamente em um ataque a um ônibus da igreja.
Na grande maioria das vezes, estas pessoas não estavam sendo alvos de um preconceito antirreligioso. Muitos simplesmente estavam no lugar errado, na hora erra; foram vítimas de uma guerra da qual não fazem parte.
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Este histórico empresta um sentido especial de urgência a muitos salvadorenhos diante da celebração da memória de Dom Oscar Romero, neste sábado.
Com certeza, nem todo mundo aqui está dando piruetas por causa da beatificação deste que foi um líder religioso no país. Romero foi uma figura polarizadora em seu próprio tempo e, para alguns, ele ainda continua sendo assim: visto como um herói pela esquerda política e teológica, mas como um símbolo perigoso da luta de classes nos círculos conservadores políticos.
Mesmo assim, no geral Romero é lembrado como um líder cujo ato público final foi um pedido – e mesmo uma ordem – de pausa à violência. Olhando para o estado em que está este país hoje, a maioria dos salvadorenhos provavelmente dirão que este aspecto de seu legado nunca foi tão importante.
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35 depois após Romero, El Salvador ainda está em guerra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU