03 Dezembro 2025
"E diante de tudo isso fica uma pergunta: se a comunidade internacional aceita o genocídio e a destruição da Palestina em nome de alianças e conveniências geopolíticas, o que impede que essa necropolítica seja aplicada em qualquer outra parte do mundo que seja eleita como alvo subalterno?"
O artigo é de Sérgio Botton Barcellos, professor adjunto do Departamento de Ciências Sociais (DCS) e do PPG em Sociologia na Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Eis o artigo.
A Anistia Internacional alerta: o cessar-fogo anunciado em Gaza no dia 10 de outubro não significou o fim da guerra e do genocídio contra palestinos(as). Significou apenas a reorganização da violência contra o povo palestino. Que cessar fogo e que paz é essa? O que se instituiu desde então é uma forma de guerra contínua, fragmentada e administrada, com cerca de 375 mortes desde o “cessar fogo”, que opera como instrumento direto de ocupação. A diplomacia internacional chama esse momento de estabilização. A realidade no território, porém, revela outra coisa: a consolidação de uma estratégia que mantém Gaza destruída, fragmentada e sob permanente sufocamento militar e humanitário.
O governo de Benjamin Netanyahu em Israel, mesmo com uma série de denúncias por corrupção, é o responsável direto por essa situação. O atual governo israelense controla as fronteiras, decide o que entra e o que sai, determina quem pode viver e quem morre. Cada bombardeio, cada interrupção de água, cada restrição de combustível e medicamentos é resultado de uma decisão política, não de uma contingência militar. Israel e seus aliados estão optando por uma destruição gradual e sistemática de Gaza. Optam por bombardear zonas povoadas ou no qual as pessoas são aglomeradas para o recebimento de apoio humanitário. Optam por impedir a reconstrução e transformar o cotidiano palestino em impossibilidade material. Essa política não é acidental. É o centro da estratégia de guerra no qual Gaza é um laboratório necropolítico para outros conflitos vindouros que serão gerados no mundo.
Ressalta-se, que nada disso seria sustentável sem os EUA que é corresponsável, de modo direto e inequívoco, pela destruição de Gaza e a morte do povo palestino. Os EUA financiam o exército israelense, fornecem armas e munições utilizadas contra a população civil, blindam Israel diplomaticamente na ONU e garantem impunidade ao governo israelense. Não há destruição em Gaza sem a logística militar, o aporte financeiro e o apoio diplomático dos EUA. Ao vetar resoluções de cessar-fogo, ao justificar a ofensiva em nome da autodefesa israelense e ao ignorar sistematicamente denúncias de organizações humanitárias, o governo norte-americano não apenas apoia Israel, o território palestino está sendo destruído e o seu povo morto com recursos, cobertura e legitimidade fornecidos por ele.
Os números tornam essa responsabilidade irrefutável. Mais de 70 mil palestinos já foram mortos desde o início da ofensiva. Após o cessar-fogo, 345 pessoas foram executadas e cerca de 900 feridas. A média de mortes diminui, mas a lógica permanece idêntica. Trata-se de uma política de morte administrada, e não de uma guerra convencional. Israel mantém operações seletivas, bombardeios pontuais, incursões terrestres e bloqueios estruturais que mantêm a faixa em estado de colapso permanente. Cada mecanismo dessa engrenagem é assegurado e amplificado pelo apoio norte-americano e aliados.
O Reino Unido integra essa responsabilidade também. Até maio de 2025 manteve contratos militares com Israel, provê tecnologia estratégica, cooperação em inteligência e oferece sustentação diplomática no cenário internacional. Seu papel não é periférico, mas estrutural. A política britânica reforça a capacidade militar israelense e contribui para a normalização internacional da ocupação, dando continuidade à longa história de intervenção colonial inglesa na Palestina desde o Mandato Britânico em 1920.
É nesse contexto que a Resolução 2803 do Conselho de Segurança da ONU pode ser analisada. Longe de apontar para uma solução, a resolução legitima um novo status quo colonial. Ela cria uma governança tutelada que transforma Gaza em um território administrado por uma comissão internacional alinhada a potências ocidentais, estabelece uma força de “estabilização” que supervisiona o desarmamento palestino sob coordenação israelense e institucionaliza um perímetro de segurança que concede a Israel o controle direto de 53% do enclave. Trata-se de uma ocupação do território palestino sob outro nome. A reconstrução é restrita, a mobilidade é controlada e a soberania palestina é anulada. O que a ONU aprovou, com apoio ativo dos EUA e do Reino Unido, foi uma reconfiguração colonial disfarçada de paz.
O controle de Gaza e de sua costa não é apenas militar: está ligado ao domínio das bacias de gás offshore conhecidas como Gaza Marine e Levant Basin, fundamentais para a viabilidade energética de qualquer futuro do Estado palestino e para os planos dos EUA. A consolidação israelense sobre essas áreas reduz a autonomia energética de vizinhos e amplia o poder de barganha de Israel no sistema regional.
Essa dimensão energética se articula a uma lógica mais profunda de colonialidade, onde a administração da morte, como formulada por Achille Mbembe, organiza a hierarquia de valor das vidas na região. A destruição de Gaza não é apenas militar: é uma reescrita territorial da soberania possível, marcada pela eliminação seletiva de populações consideradas descartáveis para a reprodução do poder regional. O sectarismo que atravessa as disputas entre sunitas e xiitas não é apenas religioso, mas produto direto de processos coloniais prolongados, mobilizado por potências ocidentais para fragmentar resistências e garantir alianças governamentais dóceis. Arábia Saudita e Emirados instrumentalizam o discurso sectário para legitimar sua aliança com Estados Unidos e Israel contra o Irã que mobiliza o xiismo político como eixo de resistência geopolítica. Esses alinhamentos reproduzem um sistema de segregação étnica de poder no qual populações palestinas, libanesas, sírias, iemenitas e iraquianas são continuamente posicionadas no lugar do “corpo sacrificável” em um regime necropolítico internacional, no qual potências locais e extrarregionais administram zonas de morte e de vida de acordo com interesses coloniais, energéticos e geopolíticos.
A posição de China e Rússia em relação à Palestina é guiada menos por solidariedade histórica e mais por cálculos geopolíticos, mas ambas funcionam como contrapesos à hegemonia EUA–Israel. Moscou usa a causa palestina para ampliar sua influência no Oriente Médio e confrontar o bloco ocidental, apoiando resoluções pró-Palestina na ONU enquanto preserva uma relação pragmática com Israel por razões militares e diplomáticas. Já a China adota postura mais assertiva: condena a destruição em Gaza, defende o reconhecimento pleno do Estado palestino e usa o conflito para reforçar sua imagem de defensora do multilateralismo frente ao unilateralismo americano. Para Pequim, a estabilidade regional é vital para proteger suas rotas energéticas e a Nova Rota da Seda. Assim, embora motivados por interesses próprios, China e Rússia tem uma posição crítica à normalização da invasão da Palestina e tem uma outra narrativa que é alternativa ao discurso ocidental.
Esse conjunto de relações internacionais formam um conjunto de situações e um bloco de poder ocidental que não apenas massacra o povo palestino, mas reorganiza a geopolítica no oriente médio. A erosão das normas internacionais, a instrumentalização do Conselho de Segurança da ONU e a normalização da violência contra civis mostra que estamos diante de uma nova fase da necropolítica global. A invasão do território palestino é transformada em política humanitária e a destruição de Gaza é apresentada como segurança e estabilização. Ou seja, Israel executa, os EUA garantem e os aliados globais legitimam o genocídio do povo Palestino e a destruição da Palestina.
A geopolítica regional do conflito?
Nesse rearranjo geopolítico, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos ocupam posições ambíguas e estratégicas. Ambos são aliados centrais dos Estados Unidos e integram o cinturão de contenção articulado por Washington para limitar a influência do Irã. A normalização das relações diplomáticas com Israel, prevista pelos Acordos de Abraão e parcialmente paralisada pela guerra, continua sendo interesse estrutural de Riad e Abu Dhabi, que apostam em uma arquitetura de segurança regional liderada pelos EUA e que apazigue qualquer forma de resistência político-militar árabe. A hesitação saudita em formalizar a aliança com Tel Aviv não é sinal de ruptura, mas de cálculo: como mostram análises do International Crisis Group (2024), o reino busca garantias de segurança e autonomia nuclear civil em troca da normalização, enquanto mantém aberta a possibilidade de acomodar pressões internas e regionais contrárias ao alinhamento total com Israel.
Do outro lado do tabuleiro, o Irã e o Hezbollah representam um desafio ao projeto de hegemonia estadunidense-israelense. O Irã atua como potência regional revisionista, estruturando alianças militares e políticas que conectam Gaza, Cisjordânia, Líbano, Síria, Iraque e Iêmen em uma rede de resistência ao domínio ocidental. Para Israel, essa arquitetura constitui uma ameaça existencial. Para os EUA, ela compromete décadas de controle sobre corredores energéticos, alianças estratégicas e bases militares no Golfo. O Hezbollah, como braço mais consolidado dessa rede, opera não apenas como força militar, mas como ator político que impede Israel de projetar poder total na região. Suas capacidades balísticas e sua base social robusta fazem do Líbano um ponto permanente de instabilidade para Israel, que vê na degradação ou neutralização do Hezbollah um passo essencial para completar sua reorganização regional após invadir Gaza por completo.
Ou seja, a destruição da Palestina está relacionada a um conflito estrutural entre dois projetos de ordem regional: de um lado, a lógica imperial liderada por Estados Unidos, apoiada por Israel, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos; de outro, um eixo que articula resistências estatais e paraestatais, centralizado no Irã e conectado a movimentos armados e redes políticas que desafiam a presença ocidental e contestam o governo israelense. O Oriente Médio vive, assim, não apenas uma guerra territorial, mas uma disputa entre modelos de soberania nacional, formas de poder e existência, bem como distintos projetos civilizatórios.
E o Brasil?
Já escrevi um artigo anteriormente sobre a posição no Brasil no genocídio, mas antes do cessar fogo. Bom, após o cessar fogo a postura do governo brasileiro diante da destruição de Gaza revela uma posição que não é apenas diplomática, mas estrutural e politicamente calculada. Embora o Brasil tenha apresentado inicialmente uma resolução pedindo cessar-fogo humanitário no Conselho de Segurança, sua política externa rapidamente deslizou para uma posição de cautela marcada por silêncios estratégicos. Do ponto de vista geopolítico, a falta de uma postura mais incisiva, como o rompimento de relações diplomáticas, mesmo que tenham ocorrido protestos exigindo o rompimento das relações entre Brasil e Israel. evidencia o tipo de posição diplomática e dependente do país no sistema internacional, onde a política externa opera sob constrangimentos estruturais que priorizam o alinhamento aos EUA e à União Europeia, mesmo quando isso implica na convivência com violações massivas de direitos humanos.
" É pela paz que eu não quero seguir”
A paz, nesse cenário, não é e nem vem sendo um horizonte possível. O que se projeta é uma prolongada administração da destruição da Palestina. Gaza torna-se laboratório e precedente histórico. O que está sendo testado ali não é apenas a capacidade militar de um Estado, mas a disposição do sistema internacional em dessensensibilizar a humanidade, criar novas estratégias de guerra e normalizar a morte de uma população inteira. Sim, Gaza é hoje o laboratório de uma política global em que se experimenta formas de matar e morrer sob a égide de um neoliberalismo autoritário e com aspirações fascistas como ferramenta legítima do que se denomina como “governança global”.
Isto é, Israel destrói Gaza e mata o povo Palestino. E os Estados Unidos com seus aliados tornam essa destruição possível. Este é o núcleo duro do genocídio. Não há eufemismo que altere isso. A Palestina está sendo devastada não apenas por bombas e tanques, mas por uma aliança política, econômica e militar que trata vidas palestinas como descartáveis e que experimenta diferentes formas de violência como método de dominação geopolítica.
E diante de tudo isso fica uma pergunta: se a comunidade internacional aceita o genocídio e a destruição da Palestina em nome de alianças e conveniências geopolíticas, o que impede que essa necropolítica seja aplicada em qualquer outra parte do mundo que seja eleita como alvo subalterno?
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