Operação Condor. A construção do medo

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27 Novembro 2025

Ele tinha, sem dúvida, uma intenção bem provocativa, visto que inicialmente estava entre conhecidos. No entanto, quando o escritor Fernando Butazzoni compartilhou com a plateia reunida na Sala Maggiolo da Universidade da República (Udelar) o que vinha refletindo a caminho do seminário, a pergunta soou bastante razoável: “Eu me perguntava se não havia aqui um informante dos serviços de inteligência”, disse o autor de Las cenizas del Cóndor (As cinzas do Condor). “Sim”, respondeu imediatamente o historiador Carlos Demasi, e alguns olharam ao redor, como que para verificar se todos ali eram realmente confiáveis ou se talvez…

A reportagem é de Daniel Gatti, publicada por Brecha, 21-11-2025. A tradução é do Cepat.

Pouco antes, Butazzoni havia dito: “A questão é que o medo envenena, envenena as relações humanas, envenena a alma”. E antes ainda: “O principal legado da Operação Condor foi o medo, um medo que, 50 anos depois, persiste. No Uruguai, ainda persiste um temor generalizado do retorno do terrorismo de Estado, do retorno dos militares às ruas”. Mariana Achugar, professora da Faculdade de Informação e Comunicação, e o próprio Demasi, membro do Centro de Estudos Interdisciplinares sobre o Passado Recente, ecoaram esse mesmo sentimento.

Isso ocorreu no início do mês, durante uma conferência acadêmica internacional organizada pela Faculdade de Ciências Humanas e da Educação da Universidade da República (Udelar) (1), talvez uma das mais interessantes entre as muitas iniciativas já realizadas ou planejadas em Montevidéu neste mês de novembro para comemorar o 50º aniversário do lançamento oficial da Operação Condor, a operação coordenada de repressão lançada oficialmente no dia 25 de novembro de 1975, em Santiago, Chile.

“Quando estamos aqui hoje inaugurando uma nova disciplina, a ‘Condorologia’”, brincou Demasi no seminário da Udelar, o importante não é tanto a “arqueologia” do Plano Condor, mas investigar seu “impacto no presente”. Butazzoni referiu-se à “síndrome de estresse pós-traumático” que ainda afeta a sociedade, visível, por exemplo, na autocontenção de jornalistas ou professores que evitam ir longe demais em certos temas (“não porque serão mortos agora, mas porque podem ser demitidos ou sofrer sanções disciplinares”). Achugar falou de “medo difuso”, e Demasi enfatizou a “eficácia” das ditaduras na transmissão de sua mensagem: “Ficamos com a consciência de que o Plano Condor pode ser reativado a qualquer momento”.

Fio condutor

“Se há uma coisa da qual podemos ter certeza agora, é que a Operação Condor não foi uma operação limitada a um período específico ou a um grupo de pessoas alvo de violência”, disse Achugar a Brecha. “Ela deixou suas marcas em todas as sociedades latino-americanas, marcas que foram transmitidas ao longo do tempo, causando graves danos transgeracionais, como estabelecido na obra do psicólogo social uruguaio Miguel Scapusio”. Ou do psicanalista Marcelo Viñar.

Para aqueles que se importam em ver, esses danos ainda hoje são evidentes nos corpos e mentes das vítimas diretas da ditadura, como os ex-presos políticos. No Uruguai, a Faculdade de Medicina realizou estudos que demonstram a alta incidência de casos de câncer em idades relativamente jovens entre ex-presos como consequência da tortura que sofreram na prisão, bem como diversos transtornos psicológicos presentes neles, em seus descendentes e nos descendentes destes.

“Ainda hoje, o sofrimento de crianças e jovens durante aqueles tempos permanece invisível. No Uruguai, é muito claro que a sociedade não ouviu adequadamente esses jovens — filhos de perseguidos ou ativistas — apesar da tremenda violência que sofreram, em alguns casos física, em outros profundamente psicológica. É uma ferida aberta em pessoas que hoje mal passaram dos 50 anos”.

Mas a violência silenciosa das ditaduras transcendeu os círculos concêntricos da militância política. “Aqui e em toda a América Latina, as ditaduras normalizaram e naturalizaram a crueldade contra os mais vulneráveis, fossem eles presos políticos ou jovens e adultos marginalizados”, disse Achugar a Brecha. “A lógica é a mesma em ambos os casos.” Um fio condutor liga o extermínio do inimigo político à apropriação de seus filhos para erradicar o “gene vermelho” e “reeducá-los”, e às formas de controle social impostas pelos exércitos da Operação Condor.

“Doses de insensibilidade social foram injetadas na sociedade, criaram raízes e persistem. Hoje, assumem outras formas, mas têm a mesma raiz. A Operação Condor construiu um inimigo interno, o subversivo, que foi desumanizado até se tornar descartável. Agora, o mesmo está sendo feito com outros inimigos, também por meio de práticas profissionais e planejadas. A crise de saúde mental que vemos hoje, por exemplo, não é a soma de episódios individuais nem domínio exclusivo de certos grupos. É uma construção social, assim como o sofrimento dos filhos dos perseguidos durante a ditadura, ou dos próprios militantes”. E há uma transição mais ou menos “natural” entre uma era e outra, composta de medos, marginalização e perseguição.

“Vemos isso também na atitude atual das pessoas comuns em relação a quem vive nas ruas, nos feminicídios, na violência vicária. A mentalidade do ‘devem ter feito alguma coisa’, que em outros tempos era usada para justificar a violência contra ativistas políticos, agora está sendo aplicada a outros alvos, enquanto continua sendo usada contra aqueles que se rebelam contra as injustiças ou continuam pensando em mudar o mundo”.

Demasi lembrou no seminário da Udelar que, quando os primeiros casos de tortura de presos políticos em cadeias uruguaias começaram a vir à tona em 1970, revelou-se que essas práticas já eram comuns nos corpos dos chamados presos “comuns”. “Ninguém se importava”. Se esses processos se enraízam, sugeriu ela, invariavelmente se ramificam e se tornam difíceis de reverter. E recomendou que se olhasse para o Rio de Janeiro e o massacre, há algumas semanas, de mais de uma centena de supostos traficantes de drogas, supostos criminosos. Havia quem aplaudisse o massacre e estivesse disposto a “adaptá-lo” e reproduzi-lo, se necessário.

Nayib Bukele em El Salvador, Javier Milei na Argentina, Jair Bolsonaro no Brasil, Donald Trump nos Estados Unidos e os corajosos deputados e senadores uruguaios que apoiaram o massacre do Rio de Janeiro não são o Plano Condor, mas o carregam em seus genes. “O que aconteceu no Rio de Janeiro é mais um exemplo da necessidade de compreendermos melhor o contexto histórico dos processos que ocorreram em nossa região. As continuidades são evidentes”, disse Achugar a Brecha. E Demasi afirmou no seminário: “Estamos a um passo do Rio de Janeiro. Ao aceitarmos a transgressão de fronteiras com o crime comum, como se aceitou tacitamente nos anos 80 em relação à repressão”, caminhamos para o desastre.

Reproduções

Odilon Caldeira Neto é um historiador brasileiro especializado no estudo da extrema-direita. Autor de livros como O fascismo em camisas verdes (FGV Editora, 2020), que analisa a ascensão de organizações de massa dessa ideologia no Brasil quase simultaneamente à Itália (“a Ação Integralista Brasileira, que surgiu em 1932, foi o maior partido fascista fora da Itália”, escreveu), Caldeira Neto afirma que no Brasil o fascismo construiu “uma cultura política” com bases sólidas.

“Os cenários dos anos sessenta e setenta não são idênticos aos de hoje, isso está claro”, confidenciou a Brecha, “mas também sabemos que a história ressoa muito fortemente nas sociedades latino-americanas. É impossível não observar certas reproduções do fascismo e de seu imaginário político nas expressões mais recentes da extrema-direita ou em eventos como os do Rio de Janeiro”. Como historiador, enfatiza: “Interesso-me por essas linhas de pensamento”. Linhas que podem ser identificadas sem muita dificuldade: uma é a fabricação do medo; outra, a repressão das minorias e das dissidências políticas; uma terceira, a construção de um inimigo; e outra ainda, as interações internacionais.

“O atual debate no Brasil sobre a classificação das organizações criminosas ligadas ao narcotráfico como ‘entidades terroristas’” deve muito à “lógica de construção de um inimigo, tática tão prevalente na extrema-direita”, afirma Caldeira. Envolve “certos padrões históricos, que no caso brasileiro vão ainda mais longe do que as ditaduras da segurança nacional”, pois exploram a “suspeita” profundamente enraizada na população negra e nas minorias em geral. “E há também uma referência a uma construção geopolítica da extrema-direita latino-americana em relação aos Estados Unidos, especialmente com Trump”.

Não se pode falar de terrorismo sem falar de terroristas, apontou o historiador em entrevista à revista semanal Brecha. O inimigo precisa ganhar forma, carne e osso: aqueles que décadas atrás ostentavam características de “subversivos” sofreram mutações para adquirir as de um “narcotraficante”. Os métodos para enfrentá-los não mudaram. Nem mesmo o discurso, pois a extrema-direita emprega uma retórica que associa o “esquerdista” ao traficante e ao criminoso.

“Se você observar onde o bolsonarismo se enraíza, verá que é nos territórios controlados pelas milícias”, os grupos paramilitares, e se prestar atenção à linguagem usada para combater o narcotráfico, verá que ela tem os mesmos acentos, as mesmas invocações usadas para combater a esquerda ou as guerrilhas. “A figura do medo é um elemento central para a extrema-direita nessa arena”, que, ao mesmo tempo que molda os “arquétipos do mal que inspiram o medo social”, também exalta o “bom cidadão, as pessoas de bem” para construir comunidade, conclui o pesquisador brasileiro.

Mapas

Mas existem outros legados, diz Achugar. “Temos que investigar os planos econômicos que as ditaduras promoveram. Os paralelos com o que se seguiu, e continua até hoje, são numerosos. O mapa da Operação Condor basicamente coincide com o mapa do que hoje poderia ser chamado de república da soja. E esse extrativismo dos corpos da década de 1970 está intrinsecamente ligada ao extrativismo do modelo econômico, que se consolidou e se intensificou nos últimos anos. Há pessoas no Brasil que estão investigando como a intensificação do modelo da soja exacerbou a violência, orquestrada pelas mesmas pessoas que impuseram as ditaduras”.

Um ex-professor rural do departamento de Treinta y Tres afirmou que os aviões que pulverizam agrotóxicos nas plantações não são novidade. “Quando ele trabalhava na escola de Arrozal 33, na época do golpe, esses aviões já sobrevoavam a área carregados de pesticidas. Arrozal 33 era administrada na época por Jorge Sanguinetti”, que mais tarde se tornou ministro do Partido Colorado na era democrática. Julio de los Santos, o único trabalhador rural uruguaio a processar uma empresa por danos causados pelo uso indevido de agrotóxicos, trabalhou em Arrozal 33 até alguns anos atrás. (2)

“São uma série de dados que revelam continuidades que só agora começamos a perceber. O trabalho de preservar a memória deve também consistir em deixar claro que isso não é novo, que os atores e interesses são recorrentes”. Entre a violência contra os corpos e a violência contra o território, insistiu a pesquisadora, “as conexões são muito mais claras do que parecem à primeira vista, como afirma Rita Segato ao falar do modelo de morte e destruição que foi imposto no mundo”. (3)

Tempo perdido

A disseminação do medo também se deve à impunidade, àquela sensação de que não houve justiça, de que os militares e seus apoiadores “saíram impunes de muita coisa, continuam a puxar os fios e a impor condições, e aqueles que ousam levantar a voz, rebelar-se ou protestar continuam a ser punidos; eles espionam você como se nada estivesse errado”, analisa Achugar. Poderia ter sido diferente, é claro, mas a oportunidade de atacar foi perdida quando eles estavam, em certa medida, atordoados e na defensiva, apontou Demasi na conferência organizada pela Faculdade de Ciências Humanas.

O historiador lembrou como, durante o primeiro governo da Frente Ampla, tudo estava subjetivamente pronto para se avançar em questões de justiça e verdade, mas isso não aconteceu, e os militares gradualmente se reagruparam, avaliando como poderiam manipular cada vez mais o sistema a seu favor e percebendo que o medo realmente havia se instalado. Ou talvez mais: que não havia desejo de ir mais longe, e que os laços de cumplicidade eram tão fortes quanto o próprio medo. “O tempo jogou contra nós”, avaliou Demasi.

Por outro lado, havia a contra-Operação Condor, disse Achugar, aludindo às “redes de solidariedade” compostas por diversas organizações e associações que, da base, foram as verdadeiras responsáveis por criar as condições que permitiram o progresso alcançado. “Esse é o lado positivo desta história”, mas a balança ainda pende para o outro lado.

Notas

1. “50 anos após a Operação Condor: revisão e novas perspectivas de pesquisa”, conferência realizada entre os dias 3 e 5 de novembro, com a participação de acadêmicos e intelectuais latino-americanos, europeus e estadunidenses, bem como representantes de organizações sociais.

2. Brecha tem acompanhado de perto o caso Julio de los Santos desde que veio à tona em 2017.

3. Ver a entrevista de Raúl Zibechi com Rita Segato no especial de aniversário da Brecha (“Gaza anuncia que uma nova lei entra em vigor: a lei do poder da morte”, 30-10-2025).

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