A Operação Condor nasceu, oficialmente, em Santiago do Chile, entre os dias 25 e 28 de novembro de 1975. A pedido do então ditador chileno Augusto Pinochet, 50 oficiais de inteligência de seis países da região, incluindo o Brasil, se reuniram com o chefe da polícia secreta do Chile. Mais tarde, somaram-se Equador e Peru para perseguir, torturar e matar opositores de um país que fugissem para outro, mas o roteiro de morte começou antes mesmo do nascimento oficial da Operação Condor, tendo a Argentina como o principal palco e o único país a condenar os seus responsáveis.
A reportagem é de Márcio Resende, publicada por RFI, 25-11-2025.
O condor é a única ave capaz de cruzar a Cordilheira dos Andes. Aquele que tudo vigia inspirou o plano formal que coordenava a ação repressiva internacional dos Serviços de Inteligência e das Forças Armadas das ditaduras do Cone Sul, Argentina (1976-1983), Brasil (1964-1985), Uruguai (1973-1985), Paraguai (1954-1989), Bolívia (1971-1978) e Chile (1973-1990).
Entre os perseguidos e mortos estão militantes políticos, sociais, sindicais, jornalistas e estudantes durante os regimes militares de oito países da América do Sul que chegaram a agir nos Estados Unidos e na Itália, mas que tinham planos de chegar a Portugal e à França.
A operação foi criada entre os dias 25 e 28 de novembro de 1975 em Santiago, no Chile, durante a 1ª Reunião Interamericana de Inteligência.
Em 1992, no chamado “Arquivo do Terror” do Paraguai, foi encontrada uma cópia do convite que o Departamento de Inteligência Nacional do Chile (DINA), enviou para "promover a coordenação e para estabelecer algo semelhante ao que a Interpol tem em Paris, só que dedicado à subversão".
Assinam a ata de fundação os representantes de Inteligência da Argentina (Jorge Casas, capitão de navio, Secretaria de Inteligência do Estado), Bolívia (Carlos Mena, major do Exército), Chile (Manuel Contreras Sepúlveda, chefe do DINA), Uruguai (José Fons, coronel do Exército) e Paraguai (Benito Guanes Serrano, coronel do Exército). O Brasil mandou dois representantes à reunião que cuidaram de não deixar rastros dessa participação.
Dos seis, Chile, Argentina e Uruguai foram os países mais entusiastas. O Brasil somou-se realmente meses depois, em meados de 1976. Equador e Peru, no começo de 1978.
Esse foi um dos últimos capítulos da Guerra Fria na região e, como parte do combate ao comunismo, foi incentivado e até financiado pelos Estados Unidos.
Recentemente, em 12 de setembro, a Equipe Argentina de Antropologia Forense identificou, através de impressões digitais, o corpo do pianista Francisco Tenório Cerqueira Júnior, o Tenório Jr. ou “Tenorinho” como Vinícius de Moraes o chamava.
O carioca Tenorinho, tinha 35 anos. Estava em Buenos Aires para uma apresentação com Vinícius de Moraes e Toquinho. Na madrugada do dia 18 de março de 1976, após um show a poucos quarteirões do hotel, ele deixou um bilhete para Toquinho, com quem dividia o quarto, avisando que “iria comprar cigarro e um remédio” e que “voltava logo”. Nunca mais voltou.
Dois dias depois, foi encontrado um corpo baleado a 30 quilômetros de Buenos Aires, mas nunca houve confirmação até agora, quase 50 anos depois.
O que aconteceu realmente e como foi o crime? Isso ainda não se sabe.
“Vinícius procurava por Tenorinho incessantemente. Assinava habeas corpus, convocava a Imprensa, falava com a Embaixada. Acompanhei todo esse processo”, relembra a então esposa de Vinícius, a argentina Marta Rodriguez Santamaria. “É imprescindível saber a verdade sobre o que aconteceu e conseguir justiça”, pede.
Outro caso foi o do militante paulista Edmur Péricles Camargo que, em 1971, ia de Santiago do Chile a Montevidéu, no Uruguai. Numa escala no aeroporto de Buenos Aires, foi retirado do avião por agentes argentinos e posto num avião da Força Aérea Brasileira. Nunca mais foi visto.
Um dos casos mais emblemáticos, considerado o embrião para a Operação Condor, foi o do casal Sofia CuthBert e Carlos Prats, mortos também em Buenos Aires pela Polícia secreta do ditador chileno Augusto Pinochet. O general Carlos Prats era o comandante do Exército do deposto Salvador Allende, a quem sempre se manteve leal.
Na madrugada de 30 de setembro de 1974, o general e a sua esposa voltavam para casa quando explodiu uma bomba no carro. A bomba tinha sido posta por Michael Townley, agente da CIA e da Polícia de Pinochet.
“O crime contra os meus pais evidenciou a ruptura democrática de todos os países da região e hoje representa o que não pode voltar a acontecer, quer seja pela democracia que devemos manter, quer seja pelo respeito aos direitos humanos”, resume à RFI a filha María Angélica Prats, hoje com 77 anos.
“Desamparo e horror. Essas duas palavras representam bem o que eu senti com a morte dos meus pais”, sintetiza à RFI Sofia Prats, hoje com 81 anos.
"Quando eu soube desse atentado terrível e das mortes dos nossos pais, tive de assumir situações com um propósito claro: o de sempre procurar a verdade e de conseguir justiça”, acrescenta à RFI Cecilia Prats, hoje com 71 anos.
Em 23 de agosto de 1973, numa manobra para evitar a quebra da subordinação institucional num Chile politicamente convulsionado e para não servir como pretexto para um golpe, Prats decidiu renunciar ao cargo, indicando o general Augusto Pinochet para o suceder. Mal sabia que o seu indicado, apenas 19 dias depois, seria o responsável pela implementação de uma das ditaduras mais sanguinárias da história.
A morte de Prats é considerada o ponto de inflexão para o começo de um período de horror contra dissidentes políticos.
Todos esses crimes na Argentina foram cometidos antes mesmo de iniciada a ditadura argentina, em 24 de março de 1976, e antes da formalização da Operação Condor, demonstrando que os serviços de Inteligência já agiam, de forma articulada, especialmente entre Brasil, Chile, Argentina e Uruguai.
Não existem listas oficiais de mortos, mas o Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS) da Argentina identificou 805 vítimas, das quais 33 eram brasileiras.
O número total de vítimas é uma incógnita. Nos chamados “Arquivos do Terror” de uma delegacia do Paraguai, foram descobertos, em 1992, mais de 700 mil documentos que dariam uma dimensão: 50 mil mortos, 30 mil desaparecidos e 400 mil presos.
De maneira informal, havia troca de informações e de ações de repressão desde agosto de 1969. A operação ganhou força mesmo a partir da formalização e parou de funcionar de forma articulada no final de 1978, embora algumas operações tenham continuado, de forma bilateral, até fevereiro de 1981.
A Operação Condor perseguiu vítimas em 13 países: oito na América Latina, quatro na Europa e nos Estados Unidos. A maioria das ações aconteceu na Argentina, onde foram registrados 70% dos crimes. Apenas 2% dos responsáveis foram presos fora da América do Sul. Numa sentença histórica, em 2016, a Justiça argentina definiu a Condor como uma organização criminosa internacional.
Após 16 anos de investigações e três anos de audiências, a Justiça condenou a penas entre 8 e 25 anos de prisão 14 ex-militares argentinos e um uruguaio, incluindo o último ditador argentino, Reynaldo Bignone. O ditador Jorge Videla morreu antes da condenação.
Em 2005, a Corte Constitucional chilena decidiu que Augusto Pinochet não poderia ser julgado por problemas de saúde.
A condenação na Argentina teve um capítulo no Brasil, onde três argentinos, do grupo guerrilheiro Montoneros, foram presos ilegalmente no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, vindos do México. Eles foram ao Brasil para uma reunião com o objetivo de organizar a militância para uma contraofensiva na Argentina.
Em 31 de julho de 1978, Norberto Habegger foi sequestrado por agentes da Polícia Federal argentina com membros das Forças Armadas e de segurança do Brasil. Em 8 de março de 1980, Mónica Susana Pinus de Binstock e Horacio Campiglia foram separados ainda na pista de aterrissagem do resto dos passageiros por militares brasileiros, enquanto gritavam os seus nomes e denunciavam estar sendo sequestrados.
Eles foram levados para Buenos Aires, ao Campo de Maio, transformado em centro clandestino de prisão, tortura e morte. Nunca mais foram vistos.
Mónica e Horacio tinham marcado um encontro numa esquina do Centro do Rio com o marido de Mónica, Edgardo Binstock, quem já morava no Rio havia mês.
"Naquele momento, eu estava sozinho no Rio. Quando tomei consciência da situação, chorei durante alguns dias. Não tinha com quem falar, com quem compartilhar e tinha certeza do que havia acontecido porque a única possibilidade para não terem chegado era que tivessem sido sequestrados e fiquei destruído", recorda à RFI.
O irmão de Edgardo, Guillermo, também tinha sido vítima da ditadura, quatro anos antes. “Desde muito jovem, vi desaparecerem o meu único irmão, a minha mulher e os meus melhores amigos. Eu acho que você cria um escudo e cria a sua própria religião", reflete Edgardo.
Aos 27 anos, Mónica deixou dois filhos, uma menina de três anos e um menino de dois.
Em 2004, o governo Lula reconheceu a responsabilidade civil do Brasil no sequestro de Mónica Pinus de Binstock e de Horacio Campiglia. Mas desde a Lei de Anistia de 1979, nenhum militar brasileiro pode sofrer consequências penais.
Antes da formalização da Operação Condor, em outubro de 1975, durante o seu exílio em Roma, o deputado chileno Bernardo Leighton e a sua esposa sofreram um ataque de agentes neofascistas italianos contratados pela Polícia de Pinochet. O deputado sobreviveu aos tiros, mas ficou com danos irreversíveis nas funções cerebrais, impedindo-o de avançar com o plano de organizar os dissidentes políticos chilenos na diáspora. A esposa, Ana Fresno, ficou paraplégica.
Formalizada, a Operação Condor teve três fases:
1) a identificação dos opositores
2) a eliminação ou o sequestro na fronteira ampliada dos países sul-americanos envolvidos
3) a eliminação dos exilados em outros países do continente americano e na Europa.
Essa informação surge, durante o julgamento na Argentina, a partir de documentos desclassificados pelo Departamento de Estado americano, em 2002.
Portugal e França eram dois países nos quais os militares sul-americanos pretendiam atuar.
A terceira fase, no entanto, foi abortada pelos Estados Unidos depois do atentado contra Orlando Letelier em Washington, em setembro de 1976. O ex-chanceler do presidente chileno, Salvador Allende, derrubado pelo ditador Augusto Pinochet, foi morto por uma bomba colocada no carro em que viajava por um ex-agente de inteligência do Chile e da CIA.
Os Estados Unidos tiveram papel fundamental na consolidação das fases prévias da Operação Condor, mas não queriam que essas operações acontecessem no seu território nem na Europa.
Os computadores usados para guardar a informação das potenciais vítimas foram fornecidos pela CIA. Nenhum país possuía tal tecnologia na época. O sistema de comunicações protegidas tinha como base uma instalação dos Estados Unidos no Canal do Panamá. Henry Kissinger, chefe da Diplomacia norte-americana, via nas ditaduras sul-americanas um freio ao avanço do comunismo no contexto da Guerra Fria.
Vinícius de Moraes escreveu um epitáfio para a lápide de Tenorinho se alguma vez fosse encontrado, mas dizia que poria os versos para todos os desaparecidos:
“Não vos vejo em paz,
nem vos penso bem.
Na minha saudade
sinto que vagais
ao lado de alguém
pela eternidade”.