Niceia 1.700 anos: um desafio. Artigo de Eduardo Hoornaert

Arte: Giovanni Guerra, Cesare Nebbia/Wikimedia Commons

27 Novembro 2025

"Eis o cristianismo da esperança. Leão XIV herdou ‘o sonho’ de Francisco?", escreve Eduardo Hoornaert, historiador, ex-professor e membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA).

Eis o artigo.

O diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé, Matteo Bruni, divulgou em 07/10/25 a seguinte declaração: Aceitando o convite do Chefe de Estado e das autoridades eclesiásticas do país, o Santo Padre Leão XIV realizará uma viagem apostólica à Turquia, de 27 a 30 de novembro próximo, em peregrinação a İznik por ocasião do 1.700º aniversário do Primeiro Concílio de Niceia. O Pontífice agostiniano realiza assim o desejo de seu predecessor de celebrar o aniversário importante do primeiro Concílio da história junto com bispos e patriarcas no mesmo local da assembleia, agora chamado Iznik, a 130 km da capital Istambul, e realiza o que Francisco sempre chamou de ‘sonho’, isto é, levar o carinho do Sucessor de Pedro ao povo libanês, atingido em muitas frentes, mas sempre firme, sempre pronto para seguir em frente.

Niceia 1.700 anos: um desafio

Ao desembarcar em Iznik, em 27 de novembro 2025, o Papa Leão XIV estará diante de um desafio enorme: superar a ilusão em que se baseou Niceia 325 e propor caminhos novos à Igreja. Ele terá diante de si a quebra do delicado equilíbrio, nos séculos anteriores a Niceia, entre a visão de um ‘Jesus-pé-no-chão’, que tinha seus defensores em Antioquia, na Síria, e a imagem de um ‘Jesus-elevado-ao-céu’, que predominava em Alexandria, no Egito. Naqueles primeiros tempos se estabeleceu um diálogo fértil entre abordagens históricas e mitológicas, baseado numa continuada procura de equilíbrio. Houve, decerto, atropelos e tensões, mas também momentos de relativa harmonia. Houve exageros de ambos os lados. Uns, ao se limitar a uma visão exclusivamente histórica da figura de Jesus, corriam o perigo de se distanciar da fé popular (que sempre foi mitológica). Outros, ao desprezar a história em benefício do mito, arriscaram se perder no fundamentalismo. Enquanto a história da morte de Jesus mantinha os cristãos de Antioquia com os pés firmes no chão da realidade, a narrativa de sua ressurreição fortalecia os cristãos de Alexandria na esperança e na resistência.

Esse frágil equilíbrio se rompeu no século IV, com o Concílio de Niceia (325), confirmado depois pelo Concílio de Calcedônia (451). Desde então, a valorização de um Jesus histórico ficou muito difícil. Jesus se ‘dogmatizou’, se ‘definiu’. E é desse modo que sua imagem atravessou 1.700 anos. Em Niceia, o movimento de Jesus perdeu muito de seu poder revolucionário, pois passou a adotar políticas que sustentavam a ideia imperialista. Houve, sem dúvida, repetidos movimentos de contestação da imagem dogmatizada de Jesus, principalmente desde a Renascença, mas ela sobrevive até nossos dias em largos segmentos do universo cristão.

Essa imagem dogmatizada não caiu do céu. Em largos espaços do universo cristão, já no século III, há como perceber um movimento de ‘imperialização’ e territorialização ‘diocesana’ das estruturas eclesiásticas. O modelo imperialista seduziu não poucos bispos e foi corroendo, aos poucos, os tradicionais modelos sinagogais e comunitários do movimento de Jesus. A historiografia registra dois nomes que exemplificam o processo: Paulo de Samósata (ca. 200-275) e Cipriano de Cartago (falecido em 258). Esses bispos já desenham o padrão que a igreja católica vai adotar a partir do século IV. Até hoje, o sucesso espetacular da igreja católica, durante tantos séculos, torna difícil, para um católico de hoje, emitir uma opinião isenta acerca do real valor da reviravolta niceana. Não é fácil, para um católico, sentar-se em torno da mesa em pé de igualdade com representantes de outras religiões. Há uma ‘arrogância’ frequentemente não percebida como tal, em grande parte inconsciente, e que pesa muito na hora de trocar opiniões inter-religiosas.

Mesmo assim surgem hoje, um pouco por toda parte, questionamentos acerca de Niceia 325. Para quem serve hoje o dogma niceano? A quem interessa? Qual sua relação com a vida cristã vivida na base? Hoje, quem ganha e quem perde com Niceia? Como entender a heresia, como superar um imperialismo cognitivo, que atropela a sã razão? O que se perde com Niceia? O que Niceia marginaliza? Niceia tem vítimas? Quem são eles? Sabemos que a fé do povo não é ‘niceana’, mas amorosa e intuitiva. Como se relaciona o dogma de Niceia com essa fé popularmente vivida? Pesquisas indicam que a maioria dos cristãos hoje ou desconhece os termos do Credo ou apenas ouve vagamente falar deles em pregações e celebrações litúrgicas (Spong, J.S., Um Novo Cristianismo para um Novo Mundo, Verus, Campinas, 2006).

A ilusão de Niceia 325

A ilusão de 325 consistiu em pensar que era bom para a Igreja partir para uma territorialização ‘diocesana’ de suas estruturas, tal qual era proposta pelos ‘think tanks’ do Império romano da época. O pressuposto consistia em pensar que englobar populações em ‘dioceses’ serviria à evangelização. Um erro fundamental, pois o movimento de Jesus se propaga por comunidades espalhadas por territórios, não pela expansão e sacramentalização desses territórios. A tensão entre a ideologia do movimento de Jesus e a política da territorialização imperialista é fundamental, já que o Evangelho nos apresenta um Jesus radicalmente oposto à ideia imperialista.

Para nós, que vivemos nos atuais contextos eclesiais, não é fácil captar a lógica do movimento de Jesus antes de 325. Observadores de fora compreendem melhor o fato de os cristãos de hoje não entender mais o significado de suas terminologias fundantes, como ‘fraternidade’, ‘comunidade’, ‘compartilhamento’, ‘comensalidade’. Gandhi, um lúcido observador hindu do cristianismo, disse uma vez: Os cristãos não entendem o cristianismo. Os ingleses que colonizavam a Índia, praticamente todos cristãos, ignoravam o teor fundante de sua religião, perfeitamente percebido por um hindu. Ao lutar pela libertação da Índia do jugo colonial, o hindu Gandhi vivenciava um Evangelho que os ingleses cristãos ignoravam.

Os cristãos dos dois primeiros séculos após a morte de Jesus entendiam perfeitamente o raciocínio que esboço aqui. Eles constituíam uma ínfima minoria dentro da população. Suas comunidades não controlavam nenhum território, mas viviam em território alheio. No panorama das cidades do Império de então predominavam os templos de Isis, Asclépio, Mitra, Cibele, Demeter,etc., símbolos de domínio sobre espaços. Nessas cidades, o cristianismo era 'sal da terra', 'semente escondida', 'fermento na massa', ‘luz na montanha’.

Eu poderia continuar essa reflexão e ponderar que, recentemente, o resgate da compreensão da vida como tempo evangélico libertador apareceu no marxismo, não no cristianismo. Em seu livro O Princípio Esperança, o filósofo marxista Ernst Bloch expressa claramente uma compreensão libertadora do tempo da vida humana, e essa compreensão passa para o teólogo protestante Jürgen Moltmann, que a introduz no pensamento cristão através de seu livro A Teologia da Esperança, que por sua vez influencia, por volta do ano 1970, a Teologia da Libertação na América Latina (como Gustavo Gutiérrez captou nos tempos em que estudava em Lovaina, na Bélgica).

Em Niceia 325, o cristianismo, instrumentalizado pelo Império, passou a inibir culturas que não estavam alinhadas ao Credo. Criou-se o conceito ‘heresia’, passou-se a combater a sã razão em nome do ‘dogma’. Com sucesso.

Como se criou, em Niceia, um consenso entre os bispos?

Convém considerar, por uns instantes, como se criou um consenso entre os trezentos bispos reunidos em Niceia, no sul de um lago de bom clima e vista bonita, a 90 km de Constantinopla quando as águas estão baixas e 200 km na estação alta. O lugar aprazível foi escolhido como Residência de Verão para o Imperador Constantino após sua sensacional vitória contra seu rival Magêncio, na ‘batalha da Ponte Mílvia’ em 312. O termo grego Niceia (e atual termo turco Iznik) é derivado de ‘nikè’, que significa ‘vitória’ e alude, pois, à referida vitória.

Os bispos foram acolhidos naquela residência por meio de uma recepção cuidadosamente preparada pelos assessores do Imperador Constantino. Um texto memorável do historiador Eusébio de Cesareia, um dos trezentos bispos participantes do Encontro em Niceia, mostra o impacto da recepção em Niceia na mente e no coração dos bispos.

Eles são tratados como Senadores do Império. Cito o texto: Destacamentos da guarda imperial e de outras tropas cercaram a entrada do palácio com espadas desembainhadas. Os homens de Deus puderam passar sem medo em meio a soldados, até o coração dos aposentos imperiais, onde alguns se sentavam à mesa junto com o Imperador e outros se reclinavam em divãs espalhados dos dois lados. Quem olhava tinha a impressão de que se tratava de uma imagem do Reino de Cristo, de um sonho, não de uma realidade (Eusébio de Cesareia, Vita Constantini, 3, 15. Cit. Crossan, J.D., O Jesus histórico: a vida de um camponês judeu do Mediterrâneo, Imago, Rio de Janeiro, 1994, p. 462).

Eis um texto que flagra o momento exato em que a igreja muda. Os mais diversos termos são utilizados pelos historiadores para descrever esse momento histórico. Uns falam em constantinismo, cesaropapismo, cristandade, outros em triunfalismo e cristandade, outros ainda em ‘cristianização do Império’, e assim por diante.

Com esse texto de Eusébio, a gente chega a compreender que a coisa mais importante de Niceia não é o famoso ‘Credo’, mas o impacto psicológico causado nos bispos pela recepção na Residência Imperial. Um ‘tour de force’, uma vitória de astúcia diplomática. Os bispos mudam: de simples, espontâneos, sinceros, soltos, diretos, eles se tornam suaves, polidos, civilizados, educados e finos. Capricham na maneira de falar e se comportar, aprendem a arte retórica, controlam a fala e os gestos. Enfim, mudam de ‘hábito’ (no sentido original do termo). Com o tempo, os bispos vão querer residências melhores, meios de transporte e correio rápidos e gratuitos através das ‘vias romanas’, doações para construção de suas basílicas e igrejas. Mas a principal novidade de Niceia consiste na aprendizagem das regras da Corte, no sentido do livro A Sociedade de Corte da autoria do sociólogo Norbert Elias (Zahar, Rio de Janeiro, 2001; o texto original é de 1933). Nesse livro, o autor faz da ‘Corte’ um paradigma histórico fundamental. A Corte e um modo de se organizar a sociedade. Elias analisa a luta pelo prestígio, as fofocas, o ritual, as cerimônias, o protocolo, o bom comportamento, a adulação, a arte de falar, o papel do ‘bobo na corte’ e do ‘outsider’ etc. Podemos dizer sem exagero que, em Niceia, a igreja vira uma ‘Sociedade de Corte’.

O poder da imagem

Não se deve procurar alguma eclesiologia previamente elaborada nessa nova configuração episcopal, que se desenha aos poucos no decorrer do século III. O processo se efetua aos poucos, com o correr do tempo, praticamente sem consciência clara de uma mudança capaz de redefinir a compreensão do cristianismo.

Niceia impressiona por meio de imagens, não por meio da razão. Pois, na política, um consenso não costuma se construir sobre fundamentos racionais, mas sobre imagens. Seus fundamentos racionais são nebulosos e, desse modo, o consenso não se incompatibiliza com nenhum grupo organizado. Todos interpretam o consenso segundo seu ‘ponto de vista’. O importante consiste em canalizar os discursos e, ao mesmo tempo, se apropriar de seu potencial dinâmico. O consenso nunca insiste nos elementos racionais, mas sempre em imagens. As imagens fazem com que o sistema perdure, lhe conferem um ‘poder plebiscitário’.

Ao longo de quase mil anos, basicamente entre os séculos IV e XIII, a tradição niceana elabora um projeto organizatório que se assenta no consenso (ou seja, na imagem). Aparece uma igreja ‘católica’, ou seja, ‘espalhada pela terra inteira’ (kath’ holèn gèn), o que vem a dizer que se trata de uma igreja baseada num consenso ‘universal’. Quem diz ‘católico’, diz consenso.

O executor do projeto é o clero, que luta longamente por conquistar uma posição hegemônica dentro da sociedade. A cultura eclesiástica, durante esses séculos todos, visa construir uma cultura única. A subordinação de todas as forças culturais sob a égide religiosa e, especificamente, a subordinação dessa ideia aos ditames da corporação clerical, faz com que se forme uma igreja universalista e unificada.

Em Niceia, bispos e teólogos praticam uma bricolagem, retiram símbolos e discursos de seus universos específicos e os transportam para um universo linguístico que possa servir aos seus intentos. Mais de duzentos anos após sua redação, as metáforas do Evangelho de João, precisamente o verso 14 do primeiro capítulo (a Palavra se fez carne e veio morar entre nós), servem de inspiração para a redação do Credo, passando por cima da sã epistemologia que proíbe transformar aleatoriamente discurso metafórico e intuitivo em discurso definitório e designativo.

No Evangelho de João se lê que o Filho de Deus Pai desce do céu à terra para anunciar o Evangelho, nasce de uma virgem por obra e graça do Espírito Santo, reúne em torno de si os apóstolos e os manda continuar sua obra. É perseguido, preso, torturado e morto sob o governador romano Pôncio Pilatos. Finalmente ressuscita e volta ao céu, onde está sentado à direita do Pai, deixando na terra o Espírito Santo a guiar os apóstolos e animar os cristãos até sua segunda vinda, quando levará os fiéis consigo pelas nuvens à glória do céu. Trata-se de um discurso marcadamente metafórico, que apela para a inteligência intuitiva do ouvinte ou leitor.

No discurso de Niceia, pelo contrário, não se apela para a inteligência intuitiva. O pretenso destinatário é quem ouve e repete, ou pelo menos fica calado. Ele não reflete nem responde. Niceia não se direciona à inteligência das pessoas, mas exige cega obediência. Seu discurso não explica nada, só afirma. Por que Jesus foi crucificado sob Pôncio Pilatos? O que a história nos ensina? A explicação de que ele tenha morrido por nossos pecados ou para nos salvar não explica a razão pela qual as autoridades (romanas e judaicas) condenaram Jesus a uma morte tão terrível. A imprecisão historiográfica de Niceia faz com que, no Credo, o clero fala para si mesmo e defende seu próprio status na Igreja. O símbolo da fé se transforma em instrumento do clero. Os/as leigos/as só têm de repetir as palavras. Eu creio, concretamente, significa: eu combato os inimigos da fé (infiéis e heréticos).

Depois de Niceia trabalhou-se intensamente na formulação de uma regra de fé que fosse menos controversa, mais universal. Contudo, a história da elaboração das fórmulas no período entre 325 e 381 não fica clara. Por ocasião do Concílio de Constantinopla (381) emergiu um texto que ganhou uma aceitação duradoura e passou para a história - desde o século XVII- com Símbolo niceo-constantinopolitano. O texto de Constantinopla assume as categorias de Niceia, acrescentando alguns elementos que historicizam melhor o cristianismo. Esse Símbolo foi lido publicamente no Concílio de Calcedônia (451) e se repete até hoje, tanto no cristianismo oriental quanto no ocidental. Entrou na liturgia do batismo e da eucaristia.

Peregrinação ao Líbano: um contraste marcante

A sequência da viagem do Papa Leão parece indicar um distanciamento diante do tema Niceia 325. Entre o 30 de novembro e o 02 de dezembro, ele pretende levar o carinho do Sucessor de Pedro ao povo libanês, como reza o já citado comunicado do Vaticano em 07/11, que acrescenta: assim Leão XIV realiza o que Francisco sempre chamou de ‘sonho’, isto é, levar carinho ao povo libanês, atingido em muitas frentes, mas sempre firme, sempre pronto para seguir em frente. Conjugar esses dois destinos, na viagem papal, é intencional? Como tudo que um Papa faz tem alto teor simbólico, essa estranha conjugação entre Niceia, símbolo de poder e domínio, de um lado, e Líbano, símbolo de resiliência e esperança, de outro lado, merece reflexão de nossa parte. A originalidade do planejamento da viagem do Papa parece corresponder a uma tendência crescente, na Igreja de hoje, no sentido de voltar ao ‘movimento de Jesus’ e deixar para trás o umbral do dogma elaborado no século IV.

A história recente do Líbano é permeada de sofrimento e esperança. A partir de 2011, a chegada de 1,5 milhão de refugiados sírios, que fugiam da guerra recém-iniciada em seu país, provocou um efeito dominó devastador nas já frágeis economias do Líbano. Os serviços sociais e de saúde ficaram sob pressão. Refugiados em um país de apenas 4,5 milhões de habitantes, os sírios entraram no mercado de trabalho para oferecer suas competências e não ter que viver de assistência: isso gerou mecanismos cruéis de concorrência com os libaneses. Por fim, chegou a instabilidade política. Depois, em 4 de agosto de 2020, a explosão no Porto de Beirute. Mais recentemente, o recrudescimento das tensões com Israel. Isso sem esquecer a pandemia da Covid. No interior do país vivem 4,5 milhões de libaneses; fora, há mais de 12 milhões, dispostos a voltar, se houvesse condições para tanto. Eis o cristianismo da esperança. Leão XIV herdou ‘o sonho’ de Francisco?

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