27 Setembro 2025
"A primeira entrevista do Papa Leão XIV oferece esperança de que a abordagem pastoral de acolhimento do Papa Francisco seja mantida, ainda que de forma mais discreta. Ela também reflete a jornada que o papado (e a Igreja) percorreram na última década, mas também mostra o longo caminho a percorrer", escreve Gael Pardoen, PhD, teólogo e membro da St John's College, da Universidade de Durham, em artigo publicado por New Ways Ministry, 26-09-2025.
Eis o artigo.
No post de ontem, explorei as observações do Papa Leão em quatro áreas: seus fundamentos para a esperança, o significado da acolhida, a abordagem das questões LGBTQ+ como polarizadoras e o preço e o custo de manter ou alcançar a unidade em detrimento da verdade e da justiça. Hoje, continuo essa reflexão questionando a alegação de que a atenção recente às preocupações LGBTQ+ nas igrejas ocidentais decorre de uma "obsessão por sexo", argumentando, em vez disso, que essas não são, em princípio, questões de sexo. Também questiono a sugestão do Papa Leão de que as crises sociais atuais decorrem do declínio do modelo familiar tradicional e considero o que realmente pode significar defender a família em nossa época. Concluo oferecendo algumas reflexões sobre o que podemos esperar daqui para frente.
Sexualidade, uma obsessão ocidental?
Na entrevista com Elise Allen, do Crux, o papa lembrou que um bispo do sul global lhe disse, em relação às questões LGBTQ+, que "o Ocidente é obcecado pela sexualidade". Gostaria de levantar duas ressalvas a essa ideia.
Em primeiro lugar, pessoas LGBTQ+ no Sul global existem e, muitas vezes, permanecem invisíveis, silenciadas e ameaçadas. Suas vidas não podem ser descartadas como "uma questão ocidental". Solidariedade e fidelidade à verdade exigem que nos lembremos delas e rejeitemos narrativas que buscam torná-las invisíveis.
Em segundo lugar, muitas vezes é a própria Igreja que parece obcecada por sexo em seu tratamento da vida LGBTQ+. Muitos casais LGBTQ+ testemunham que o que os define não é o sexo, por mais importante que seja, mas o amor, a fidelidade, a liberdade, a generosidade e o serviço — ecos do eros, da philia e do ágape que a tradição cristã há muito reconhece como o fundamento do casamento cristão (por mais mal que esse ideal tenha sido às vezes vivido, especialmente em contextos patriarcais).
Defendendo a família: para quê e a que custo?
Por fim, o Papa Leão repetiu um padrão familiar: identificar a família como pai, mãe e filhos, e sugerir uma ligação entre o declínio das normas familiares tradicionais e uma crise social mais ampla:
“Eu me pergunto em voz alta se a questão da polarização e de como as pessoas se tratam também não vem de situações em que as pessoas não cresceram no contexto de uma família onde aprendemos – esse é o primeiro lugar onde aprendemos a amar uns aos outros, a conviver uns com os outros, a tolerar uns aos outros e a formar laços de comunhão. Essa é a família. Se removermos esse bloco de construção básico, torna-se muito difícil aprender isso de outras maneiras.”
Apoiar as famílias é de fato essencial. Mas a história nos lembra que a vida familiar heterossexual por si só nunca protegeu as sociedades do colapso ou de pecados graves. Com muita frequência, ela até santificou sistemas patriarcais nos quais as mulheres eram objetificadas, despojadas de autonomia, liberdade, dignidade e aspirações, enquanto os homens eram aprisionados em papéis rígidos que equiparavam força à dominação e à repressão das emoções. Essas aberrações eram frequentemente idealizadas como a "família cristã".
Neste exato momento, o modelo de família heterossexual não está impedindo os horrores em Gaza, no Sudão do Sul, no Haiti ou na Ucrânia. Nesses lugares, são a guerra, a pobreza, o deslocamento, a limpeza étnica, a fome e a corrupção que estão minando a família — e não os desafios à forma da unidade familiar tradicional.
Também não devemos negligenciar o fato incômodo de que o próprio Jesus frequentemente desprezava a família como unidade social. Ele alertou que a lealdade a Ele dividiria pais e filhos (Mt 10,34-37), declarou que sua verdadeira família são aqueles que fazem a vontade de seu Pai (Mc 3,31-35; Mt 12,46-50; Lc 8,19-21) e até mesmo disse que segui-lo exige "odiar" pai e mãe (Lc 14,26). Embora Paulo dê alguns conselhos sobre o lar, raramente enfatiza a família, concentrando-se, em vez disso, na nova comunidade em Cristo, onde "não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher" (Gl 3,28).
Ao mesmo tempo, a linguagem da “defesa dos valores familiares” é frequentemente usada como arma contra pessoas LGBTQ+. Teologicamente, isso contradiz a própria vocação da família, conforme descrita pelo Papa Leão XIV na entrevista. Além disso, Francisco, em Amoris Laetitia (por exemplo, §274) e João Paulo II, em Familiaris Consortio (por exemplo, §18 e §21), disseram que a família deve ser uma escola de amor, paciência, respeito e comunhão. Uma família, no sentido cristão, não se define, antes de tudo, pela forma externa, mas pelo seu testemunho de amor de aliança, serviço mútuo e transmissão da vida em suas múltiplas formas — biológica, adotiva, espiritual. Usar a palavra “família” como um marco de fronteira ou uma arma contra certas pessoas é perverter seu significado, transformando o que deveria ser um sinal de comunhão em um instrumento de exclusão e violência.
Apoiar as famílias hoje deve significar mais do que (re)afirmar formas tradicionais em detrimento de outras. Apoiar significa proporcionar acesso a cuidados de saúde, alimentação e educação. Significa compaixão autêntica e ativa por famílias e casamentos desfeitos, com palavras e ações eclesiais que apoiem e curem, em vez de condenar, sobrecarregar e excluir (cf. Mt 23,4). Requer também reconhecer e celebrar aqueles que se comprometem uns com os outros em fidelidade e amor, mesmo diante do estigma religioso e social, às vezes com profundo custo pessoal.
A aliança de um casal do mesmo sexo que persevera no amor apesar das adversidades e que abre seu lar a uma criança já profundamente ferida pelo mundo personifica algo profundamente bíblico. De fato, ecoa a própria definição de família do Papa Leão como "o primeiro lugar onde se aprende a amar uns aos outros, a viver uns com os outros, a tolerar-se mutuamente e a formar os laços de comunhão".
Um longo caminho a percorrer
A primeira entrevista do Papa Leão XIV oferece esperança de que a abordagem pastoral de acolhimento do Papa Francisco seja mantida, ainda que de forma mais discreta. Ela também reflete a jornada que o papado (e a Igreja) percorreram na última década, mas também mostra o longo caminho a percorrer. Para que a Igreja seja verdadeiramente um lugar de acolhimento, cura e testemunho profético, as pessoas LGBTQ+ devem ser reconhecidas não como um "problema" a ser enfrentado, ovelhas desorientadas em necessidade ou em busca de uma nova direção, uma ameaça a ser neutralizada ou uma anomalia a ser tratada com cautela, mas como dádivas ao Corpo de Cristo, cujas vidas dão um testemunho autêntico para toda a Igreja.
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