27 Setembro 2025
Às vezes, até mesmo as certezas doutrinárias dos guardiões da fé podem e devem ser colocadas em discussão.
O artigo é de Massimo Battaglio, jornalista italiano, publicado por Progetto Gionata, e reproduzido por Vino Nuovo, 26-09-2025.
Eis o artigo.
As declarações do cardeal Müller, prefeito emérito do Dicastério da Doutrina da Fé, começam a testar severamente a minha paciência. Repetir que “a doutrina é muito clara” sobre qualquer assunto (e não apenas sobre a questão LGBT+) para dizer que não se quer ouvir falar de nenhuma atualização, revela uma fraqueza fundamental e uma total falta de visão do presente e do futuro.
De fato, parece-me inútil reafirmar as regras sedimentadas pela tradição – mesmo quando se baseiam em argumentos anticientíficos e numa leitura discutível das Escrituras – quando se sabe muito bem que são cada vez menos os católicos dispostos a levá-las a sério.
Há um descolamento cada vez maior entre o Magistério e o “sensus fidei fidelium”, elemento este indispensável justamente para transmitir a experiência da fé cristã. Há a chance de que os fiéis busquem outros caminhos, onde sua fé seja mais valorizada.
Mas o que disse desta vez o cardeal Müller?
Ele havia ido a Belmonte del Sannio, pequena cidade do Molise, que lhe conferiu a cidadania honorária. O Conselho Municipal da cidade reconhece, de fato, que “seu ministério pastoral e sua incansável ação e testemunho representaram um exemplo luminoso de fé e de dedicação à causa da Igreja. Sua proximidade aos valores da solidariedade, da paz e da acolhida constitui um patrimônio espiritual que transcende os limites locais, enriquecendo toda a sociedade”.
Palavras estranhas para uma deliberação de um ente público de um Estado laico, mas tomamos nota. Aproveitando a ocasião, o cardeal de setenta e oito anos respondeu aos jornalistas presentes, especialmente a uma pergunta sobre o “Jubileu LGBT+” promovido por La Tenda di Gionata. Eis sua intervenção:
“A Doutrina da Igreja é muito clara que… ehm… os atos homossexuais são pecado mortal. Por isso, deve-se rejeitar essa política que alguns promovem entrando pela Porta Santa para fazer propaganda de si mesmos e não para receber penitência, mas com mudança… ehm… de vida. Mas o Papa Francisco não aceitou essa ideologia LGBT. Eu penso também para corrigir esse mal-entendido de que a Igreja teria quase aceitado esse comportamento como algo a ser abençoado e invocar a bênção de Deus. Deus abençoou, segundo o livro do Gênesis, homem e mulher no casamento. Esta é a bênção de Deus. Paulo claramente explicou que o Antigo Testamento e Jesus sublinharam que apenas um homem e uma mulher podem contrair casamento. Esta é a bênção de Deus. Esta é a bênção sobre seus filhos, etc. Não se pode abençoar o pecado.”
No conteúdo desta intervenção estão presentes erros grotescos desde as primeiras afirmações: primeiramente, quando ele diz “entrar pela Porta Santa para fazer propaganda de si mesmo”. Se fosse assim, então seria propaganda também a das centenas de associações que realizam o mesmo gesto. O problema, porém, é que Sua Eminência não deveria se permitir duvidar do espírito de fé que acompanha os peregrinos em Roma, individualmente ou em grupo. Ele não tem nenhum mandato para isso e, sobretudo, não os conhece. Portanto, faria melhor em suspender o julgamento. Ou devemos lembrar, justamente a ele que ocupou cargos tão altos, o que São Paulo realmente diz sobre julgar? São as palavras exatas que seguem imediatamente aquelas que conservadores como Müller usam como ato de condenação das pessoas homossexuais: “Portanto, és inescusável, ó homem, todo aquele que julga; pois, ao julgar outro, condenas a ti mesmo; porque tu, que julgas, fazes as mesmas coisas” (Rm 2,1).
Voltando à frase anterior: a Igreja “deve rejeitar essa política”. E o que deveria fazer, então? Fechar as portas? Mas quão bonita é uma Igreja que se abre e se fecha ao gosto de algum cardeal e de seu “fã club”, ou que talvez deixe uma fresta entreaberta para que se possa entrar às escondidas sem incomodar ninguém? Não, cardeal Müller. A Igreja é movida pelo Espírito e, se o Espírito suscitar o movimento numa direção ou outra, só pode permanecer aberta, especialmente se isso significa abrir-se à novidade. Depois ajudará a caminhar, talvez até corrigindo, mas jamais rejeitando.
Ainda antes, lê-se: “A Doutrina da Igreja é muito clara que… ehm… os atos homossexuais são pecado mortal”. Constato que, embora não tenham ainda sido emendados os dois (de quase três mil) artigos do Catecismo que tratam da homossexualidade, o debate a respeito é bastante vivo. Recentemente, diversas vezes, os bispos discutiram documentos que propunham alguma reforma e, embora nunca tenham obtido a maioria de dois terços necessária para aprovação, sempre ultrapassaram cinquenta por cento. Portanto, a Igreja está ao menos dividida ao meio, com um leve mas significativo movimento em direção à nossa causa. Sinal de que a doutrina pode ser muito clara, mas é talvez justamente por sua clareza excessiva que necessita de atualização.
Passando à “penitência” e à “mudança de vida”. Aqui também Müller mostra que não entendeu. Sim, entrando em São Pedro, parecíamos o Quarto Estado de Pelizza da Volpedo. Caminhávamos de cabeça erguida, com semblante firme, olhando um pouco à frente e trocando sorrisos de incentivo. Afinal, éramos um dos grupos mais numerosos entre os já chegados à Basílica. E o número, junto aos olhares empáticos que colhemos pelo caminho – olhares de outros peregrinos muito católicos – nos fazia entender que era justo estarmos ali, não para nos arrepender de sabe-se lá o quê, mas para receber o que, no espírito autêntico do Jubileu, nos era devido: a libertação dos oprimidos.
“O Espírito do Senhor está sobre mim”, diz Jesus ao iniciar sua vida pública. “E me enviou para anunciar aos pobres uma boa notícia, para proclamar aos presos a libertação e aos cegos a vista; para pôr em liberdade os oprimidos e pregar um ano de graça do Senhor” (Lc 4,18 cf. Is 61,1-3). Falar em penitência ao se referir ao Jubileu me parece corresponder a um desejo incontrolável de manipular consciências. Quanto à mudança de vida: sim, queremos mudar, sair dos armários e nos amar à luz do sol.
Em seguida, à frase “Papa Francisco não aceitou essa ideologia LGBT”, não se pode deixar de notar que referir-se ao Papa é hoje um clássico dos tradicionalistas para expor suas ideias atribuindo-as a ele. Eles sabem que foi um Papa simpático, mas isso não representa o máximo da honestidade intelectual.
Entretanto, a respeito de “abençoar” e do Papa Francisco, lembraria ao cardeal Müller que “Fiducia Supplicans” continua em vigor e que, exceto pelas lamentações de bispos africanos e alguns prelados de outros países antidemocráticos, registrou apenas favoráveis. A ninguém passou pela mente que a bênção de um casal do mesmo sexo que se ama seja fruto da “ideologia LGBT”. Trata-se de um simples passo adiante na caridade.
O tema da bênção parece, porém, ser muito caro ao ex-prefeito do ex-Santo Ofício. Ele prossegue: “Deus abençoou, segundo o Gênesis, homem e mulher no casamento. Esta é a bênção de Deus”. Mas os vidros estão escorregadios. É difícil subir, e até o cardeal Müller tem dificuldade. Parece não perceber que abençoar a união entre homem e mulher não exclui de forma alguma a possibilidade de abençoar, nas formas particulares previstas por “Fiducia Supplicans”, também o casal entre homem e homem ou mulher e mulher.
O final, então, é estrondoso: “não se pode abençoar o pecado”. Na internet ainda circulam fotos em que ele próprio abençoa armas. A Igreja sempre abençoou tudo: casas, escolas, cavalos e, de fato, instrumentos de morte. Mas abençoar um casal que se ama é definido de forma categórica como “abençoar o pecado”.
Neste ponto, slogan por slogan, sugeriria a Sua Eminência também “Deus, Pátria e Família” ou “Vermelho à noite, bom tempo se espera”…
O artigo foi publicado no site Progetto Gionata.
Leia mais
- Müller se opõe à peregrinação LGBTIQ: "Eles estão se promovendo"
- Irmã Jeannine: O Papa Leão seguirá o Papa Francisco em questões LGBTQ?
- Passo “muito, muito positivo” da orientação transgênero do Vaticano, dizem padres irlandeses
- O silêncio ressonante do Papa Leão XIV sobre a peregrinação LGBTQ+. Artigo de Marco Grieco
- Padre James Martin defende a abordagem LGBTQ+ do Papa Francisco em entrevista com escritor católico conservador
- Não é brincadeira, Irmã Jeannine Gramick acabou de ter um encontro amigável com o papa
- Irmã Jeannine Gramick, cofundadora da New Ways Ministry, é nomeada “Personalidade do Ano de 2023”
- 50 Anos com os LGBTQ: irmã Jeannine Gramick
- A valentia de Jeannine Gramick no trabalho com pessoas LGBTI+
- Irmã Jeannine Gramick: O ensino da Igreja sobre questões LGBTQ+ irá “mudar inevitavelmente”
- Irmã Jeannine Gramick da New Ways vê um futuro para o casamento entre pessoas do mesmo sexo na Igreja Católica
- Ações vão confirmar as palavras do Papa Leão sobre as pessoas LGBTQ+? Artigo de Jeannine Gramick
- Opiniões prós, contras e intermediárias sobre o histórico LGBTQ+ do Papa Francisco
- Papa Francisco cumprimenta homens transgêneros, incluindo alguns chamados à vida religiosa
- Quanto o Papa Leão mudou em relação às questões LGBTQ+?
- Líderes do Ministério Católico LGBTQ+ reagem à eleição do Papa Leão XIV
- Papa Leão dará continuidade às boas-vindas de Francisco às pessoas LGBTQ+, relata padre James Martin
- Hollerich: Leão XIV não revogará bênção aos homossexuais
- Francisco foi um revolucionário pastoral aos católicos LGBTQIA+
- Católicos LGBTQ+ foram silenciados pelo Sínodo. E agora?
- Os jovens católicos LGBT precisam saber que pertencem à Igreja. Estou criando um currículo para dizer isso a eles. Artigo de Eve Tushnet
- Defensores refletem sobre o impacto amplamente negativo de Bento XVI na causa LGBTQIA+
- Francisco foi um revolucionário pastoral aos católicos LGBTQIA+
- A solidão de Leão XIV, poucos notaram o dia de oração pela paz
- Gaza, gesto inédito do Papa Leão: Herzog convocado ao Vaticano
- Leão XIV navega pelas tensões entre a Igreja, o judaísmo e a guerra em Gaza. Artigo de Tom Roberts
- A grande oportunidade do Papa Leão XIV: reformar os ensinamentos da Igreja sobre sexualidade. Artigo de Thomas C. Fox