23 Setembro 2025
"É de se perguntar se o Cardeal Müller se dirigiu a algum dos participantes da peregrinação. Se ele sequer falou com eles, reconhecendo-os como indivíduos capazes de dizer uma palavra sobre si mesmos"
O artigo é de Zeno Carra, teólogo, padre da Diocese de Verona e professor do Studio Teologico San Zeno, na Itália, é publicado por Come se non, o blog de Andrea Grillo, 20-09-2025.
Eis o artigo.
Desde ontem, está disponível no conhecido blog MIL a primeira parte da entrevista de Diane Montagna com o Cardeal L. Müller [1].
Entre outros tópicos, o cardeal falou sobre a recente peregrinação jubilar dos cristãos homossexuais.
Referindo-se especificamente àqueles que participaram desta peregrinação, ele diz:
"Eles abusaram da fé e da graça católicas, e do símbolo da Porta Santa — que é Jesus Cristo — para fins de propaganda, vivendo em aberta contradição com a vontade do Criador. Denegriram a Igreja de Deus com gestos obscenos e com seu estilo de vida. Como disse São Paulo: "Por isso, Deus os entregou às concupiscências de seus corações, à impureza, para desonrarem seus corpos entre si, pois trocaram a verdade de Deus pela mentira" (Rm 1,24-25)".
Na próxima pergunta, Müller também falou sobre os ministros ordenados e os religiosos e religiosas que acompanharam esta peregrinação:
“Eles participam de procissões eucarísticas na festa de Corpus Christi ? Isso não os interessa, mas eles exploram e abusam de símbolos religiosos para promover uma ideologia anticristã.”
Poderíamos aprofundar a questão substantiva levantada pelas palavras do Cardeal e perguntar se ele, como teólogo renomado, poderia levar um pouco mais em conta, em seus julgamentos claros, o debate que vem se formando na teologia moral há alguns anos. E não apenas entre acadêmicos, mas também entre conferências episcopais, como a alemã, no sínodo do qual participa. Poderíamos esperar que ele, embora mantendo sua posição, reconhecesse que a questão é complexa; que aqueles que pensam diferente dele não são um bando de idiotas ou renegados, e que a questão não pode ser resolvida com algumas citações bíblicas fora de contexto.
O que eu gostaria de destacar, no entanto, é a perspectiva formal das palavras do Cardeal Müller. Esta, creio eu, é a principal falha em sua posição. O que chama a atenção é que o cardeal não está falando da homossexualidade como uma questão moral, mas que ele se refere, nesse tom depreciativo, a pessoas reais, de carne e osso, historicamente identificáveis.
O Papa Francisco, em seu ensinamento, nos pediu para abraçar a objetividade complexa e real da vida das pessoas, a singularidade inescapável da história de cada um, e para usar normas e categorias morais como um dos critérios internos para essa aceitação. A posição de Müller, no entanto, é a daqueles que consideram as categorias morais um absoluto a priori que se situa acima da complexidade real e se impõe como um fator de simplificação, de acordo com a lógica do aprovado/reprovado. A vida não tem voz ativa na questão: é meramente o objeto sobre o qual a norma deve fazer um discernimento binário. Portanto, nem é necessário ouvir as vidas. Basta catalogá-las dentro das duas grandes caixas fornecidas pelas normas: sim/não; certo/errado.
Como a peregrinação dos cristãos homossexuais era abertamente composta por pessoas que não queriam reconhecer sua inclinação emocional como desviante, isso é suficiente para definir todas essas pessoas com os termos depreciativos usados por Sua Eminência.
O desconforto do Cardeal Müller com os ensinamentos morais do falecido Papa é bem conhecido. Nesse ponto, porém, o Papa Francisco — distanciando-se de costumes eclesiásticos seculares (costumes, não tradições!) — é evidentemente receptivo não tanto às modas mundanas (como afirmam seus detratores), mas ao estilo de Cristo. Ele coloca a pessoa, seu rosto e sua história diante d'Ele, e não filtra a realidade de uma vida a priori com base em uma definição normativa.
Daquele que preferiu sentar-se à mesa com cobradores de impostos e prostitutas em vez de sentar-se com os fariseus e chamar seus convidados de “pecadores” com base na norma religiosa existente.
Portanto, deve-se perguntar ao Cardeal Müller se seu julgamento final vem de ter compartilhado com aquelas pessoas o caminho que as levou a Roma e à Porta Santa, como fizeram os ministros ordenados e religiosos a quem ele acusa de explorar a religião.
É de se perguntar se o Cardeal Müller se dirigiu a algum dos participantes da peregrinação. Se ele sequer falou com eles, reconhecendo-os como indivíduos capazes de dizer uma palavra sobre si mesmos. Se o fez, seu julgamento pelo menos carece de contato com seus rostos humanos. E suas palavras de condenação assumem responsabilidade diante de interlocutores reais.
Mas se ele não o fez, então suas palavras são denunciadas como estando em forte desacordo com o estilo daquele de quem ele é ministro. E ele se alinha, e quer alinhar muitos outros a si, com o estilo daqueles que, de fora, estigmatizaram os companheiros de jantar de Jesus com um rótulo tirado da lei religiosa, enquanto o próprio Jesus se aproximava deles e se sentava à mesa com eles.
Estou convencido de que Sua Eminência é movido por zelo sincero pela causa da fé e que ele acredita que palavras duras de condenação podem despertar aqueles que ele considera pecadores endurecidos de sua condição.
Estou também convencido de que se, como ministros da Igreja, não nos apressarmos em adotar a abordagem metodológica do Senhor, a sua maneira de lidar com a realidade, não deveríamos ficar muito surpresos se a realidade das coisas preferir ficar longe de nós e dos nossos ambientes.
E com isso não teremos prestado um bom serviço Àquele que nos designou para guardar esses ambientes.
Nota
Disponível aqui.
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