22 Setembro 2025
Francisco não precisa de títulos para brilhar. Mas a pergunta ressoa forte no coração de crentes e não crentes: se João Paulo II foi "santo subito", que injustiça mantém hoje Francisco em silêncio?
O artigo é de José Carlos Enríquez Díaz, publicado por Ataque al poder, 20-09-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Passaram-se apenas cinco meses da morte do Papa Francisco, e o mundo inteiro continua a reconhecer a marca luminosa do seu pontificado. Na Praça São Pedro, em 13 de setembro, drones pintaram o seu rosto no céu durante o concerto "Graça para o Mundo", e milhares de pessoas o aclamaram com lágrimas e aplausos. Sentimos falta do seu sorriso, da sua voz firme, da sua ternura e da sua corajosa denúncia dos males que nos consomem: violência, exclusão, egoísmo, clericalismo e destruição da nossa casa comum. Foi um papa próximo e profundamente humano, um irmão e um pai que encarnou o Evangelho em gestos concretos, não em vazias cerimônias.
No entanto, hoje, seu nome ainda não é pronunciado com o título "santo subito" (santo já). Por quê?
Francisco, como o poverello de Assis, despojou-se de vaidade, ornamentos e privilégios. Desde sua primeira aparição na Loggia das Bênçãos, sem mozeta nem mocassins vermelhos, até sua bênção final "Urbi et Orbi" na Páscoa do Ano Santo de 2025, ele demonstrou que a santidade não reside na pompa, mas na proximidade com o povo. Viveu em Santa Marta como um vizinho qualquer, compartilhando a mesa com os trabalhadores. Ajoelhou-se para beijar os pés dos líderes africanos em busca de paz. Doou um palácio aos pobres sem-teto em vez de reservá-lo para os hierarcas. Telefonava diariamente para o pároco de Gaza e enviava emissários à Ucrânia para levar ajuda. Defendeu imigrantes, prisioneiros, doentes, idosos e jovens. Reconheceu a dignidade das mulheres na Cúria e deu real valor ao laicato. Acolheu pessoas de diferentes orientações sexuais, derrubando preconceitos enraizados em séculos de exclusão.
E também estendeu a mão a teólogos e pastores censurados e marginalizados pela própria Igreja, reconhecendo publicamente seu valor e o dano injusto que lhes foi infligido. Basta lembrar o caso de José María Castillo, um teólogo espanhol afastado do ensinamento oficial pela Congregação para a Doutrina da Fé na época do Cardeal Ratzinger, em plena sintonia com a política restritiva de João Paulo II. Francisco encontrou-se com ele pessoalmente e disse-lhe para continuar escrevendo, que seus artigos eram muito importantes e faziam muito bem. Esse gesto simples e fraterno foi uma demonstração clara de que a misericórdia também pode ser aplicada àqueles que pensam e imaginam a fé a partir de diferentes horizontes. Justamente como fez com Castillo, o atual papa bem poderia fazer um gesto semelhante com Xabier Pikaza, outro grande teólogo espanhol cuja voz crítica e lúcida foi igualmente silenciada em tempos de censura.
O contraste se torna ainda mais gritante se lembrarmos o que aconteceu com Jacques Gaillot, bispo francês de Évreux. Por ter defendido imigrantes, sem-teto, pessoas com AIDS e por ter iniciado debates sobre questões como celibato, contracepção e homossexualidade, foi demitido em 1995 por ordem de João Paulo II e confinado a uma diocese fictícia no deserto argelino: Partenia. Foi uma condenação simbólica e humilhante, uma punição para um pastor que havia escolhido se colocar ao lado dos marginalizados.
Esse havia sido o estilo de uma Igreja que silenciava seus profetas. Francisco, ao contrário, optou por acolhê-los. Pois então, esse testemunho contrasta com aquele do Papa João Paulo II, canonizado em tempo recorde. Por que tamanha pressa? Por que o fervor de um "santo subito" que ignorou as feridas abertas por seu próprio pontificado? É impossível silenciar fatos que ficaram gravados na memória da Igreja e do mundo: o encobrimento dos abusos de Marcial Maciel, fundador dos Legionários de Cristo, cujas vítimas foram silenciadas por décadas; sua repressão a teólogos e pastores latino-americanos que, em plena efervescência da Teologia da Libertação, se posicionaram ao lado do povo faminto e oprimido.
Na Nicarágua, humilhou publicamente Ernesto Cardenal, ajoelhado diante dele, chamando-o de desobediente, enquanto o povo gritava: "Temos fome!". A resposta de João Paulo II foi: "Fechem a boca!". A isso se soma sua aliança com os regimes conservadores e sua intransigência diante de debates internos da Igreja que clamavam por maior abertura e justiça. Nada disso o impediu de ser elevado aos altares com toda a pressa. A máquina eclesiástica se moveu com rapidez e complacência, ignorando as sombras e amplificando apenas a narrativa de seu papel na queda do comunismo.
Aqui emerge a contradição mais dolorosa. Francisco, que trouxe o Evangelho de volta ao coração das pessoas, é hoje questionado por setores que o rotulam como populista, herético ou ingênuo. As mesmas pessoas que veneram João Paulo II como "santo subito" são aqueles que olham com desconfiança ao legado de um papa que preferiu o abraço ao dogma frio, o gesto concreto à retórica vazia. A hipocrisia é evidente: para um papa que encobriu abusos e silenciou os pobres, a canonização imediata; para um papa que denunciou os abusos, abraçou os pobres e deu voz aos excluídos, silêncio e resistência. O que incomoda em Francisco? Que não tenha usado os mocassins vermelhos? Que tenha doado prédios aos indigentes? Que tenha falado sobre poluição e "casa comum" quando muitos preferiam ficar em silêncio para não perturbar interesses econômicos? Que ele tenha posto mulheres e leigos em cargos de decisão? Que não tenha tido medo de acolher as pessoas LGBT+ com respeito e carinho? Ou talvez que ele tenha reconhecido teólogos censurados e pastores castigados como Gaillot, devolvendo a eles dignidade diante da humilhação? A verdade é incômoda: Francisco abalou um sistema eclesiástico confortável demais em seu poder e em seus privilégios. E a santidade, nesse contexto, não depende da coerência evangélica, mas da conveniência institucional.
O povo, no entanto, já o reconheceu. As multidões que lamentaram sua morte, que percorreram quilômetros para venerar seu corpo, que aplaudiram seu caixão em reverente silêncio, sabem que Francisco já é um santo na consciência dos simples. Negar-lhe o título de "santo subito" é negar a evidência: que ele viveu e morreu como um homem de Deus, acessível, transparente, pobre e corajoso. Que seu pontificado foi um testemunho vivo do Evangelho de Jesus, sem enfeites, sem máscaras, sem privilégios. A Igreja deve se perguntar o que entende por santidade. Canonizar rapidamente um papa que encobriu os abusos, silenciou os famintos e castigou profetas incômodos. Ou reconhecer, sem medo ou hesitação, um papa que se despojou de tudo para estar com o povo, que abraçou os esquecidos, que denunciou as injustiças e que, com gestos simples, mostrou um Cristo vivo e próximo.
Francisco não precisa de títulos para brilhar. Mas a pergunta ressoa forte no coração de crentes e não crentes: se João Paulo II foi "santo subito", que injustiça mantém hoje Francisco em silêncio? Não se trata de política vaticana. Trata-se da verdade. E a verdade é que, se existe um papa que encarnou o Evangelho em nosso tempo, foi Francisco. "Santo subito", por direito, por testemunho e por amor ao povo de Deus.
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