22 Julho 2024
"As questões que todos esses documentos levantam é se existem relatórios guardados em outros arquivos, como os da Secretaria de Estado ou do Santo Ofício; se alguém conhece seu conteúdo e se todos foram transferidos para o Arquivo Apostólico; ou se estejam faltando na lista documentos comprometedores e se foram manipulados ou escondidos, ou até mesmo destruídos nos anos em que o escândalo Maciel ameaçou envolver figuras importantes da Igreja Católica", escreve Massimo Franco, estudioso do papa emérito, jornalista vaticanista e autor de "Il Monasterio", publicado por La lettura, 21-07-2024. Tradução de Luisa Rabolini.
A intimação que veio por decisão de Pio XII aparece no final de uma folha datilografada conservada no Arquivo Apostólico do Vaticano. Começa assim: "Às 17h10, o Ex.mo Cardeal Pizzardo me telefonou para dizer que o Padre Maciel havia chegado a Roma, acompanhado por um bispo. Ele me pergunta o que tem de dizer a ele. O RP Maciel é o Superior e fundador dos chamados Legionários de Cristo. Por razões conhecidas pelo Santo Padre, ele foi suspenso do cargo de Superior, que agora foi assumido pelo Vigário. A ordem é transmitida por telegrama codificado à Delegação Apostólica do México. De acordo com o RP Larraona, o abaixo-assinado havia informado o Ex.mo o Cardeal Pizzardo, no mais estrito sigilo, que no passado havia demonstrado simpatia pela obra de Maciel, para que ele pudesse saber de tudo.
O escrevente respondeu ao Ex.mo Cardeal que ele podia dizer a Maciel que ele deveria saber o motivo da medida e que a intenção era obrigá-lo a se tratar. Se Maciel se apresentar na Sagrada Congregação, o abaixo-assinado ordenará que ele vá se tratar e abandone todo contato com seus alunos (religiosos) até que a Sagrada Congregação ordene o contrário. Se ele não se apresentar, dentro de dois dias, será oportuno comunicar a Maciel uma ordem peremptória: ou ele vai se tratar, ou ficará suspenso a divinis. Tudo isso digo, em vista da decisão tomada pelos Superiores, pelas graves razões acima mencionadas". Assinado "Scap.". Data: 1º de outubro de 1956.
A abreviação é do nome de Giovanni Battista Scapinelli, número três da Congregação para os Religiosos. E a nota, com sua linguagem curial, emerge de uma pasta fininha nos Arquivos da Secretaria de Estado com o número de registro 1748, na categoria de "Ordens Religiosas Masculinas". Tem como indicação genérica Pe. Maciel, "Localidade: México". E como assunto: "1956 Informações sobre o mesmo, fundador dos ‘Legionários de Cristo’". Os "graves motivos" não são especificados. Consiste de apenas algumas folhas, mas seu conteúdo revela como, já na fase final do pontificado de Pio XII, que morreu em 1958, Marcial Maciel Degollado, o sacerdote que nos anos sucessivos desfrutaria das mais altas proteções no Vaticano, fosse conhecido como uma pessoa a ser "tratada". Mais: a ser mantida distante de seus alunos seminaristas.
E com a perspectiva da suspensão a divinis (proibição de celebrar o rito e administrar os sacramentos, ndr). Cerca de meio século depois, estourou o escândalo, mas, nesse meio tempo, ele havia abusado de dezenas de seminaristas e tinha levado uma vida dupla e tripla com amantes, esposas e filhos secretos. Já na década de 1950, havia rumores também do uso de drogas e dos primeiros abusos sexuais. A pergunta é como isso tenha podido acontecer. O estranho é que o mesmo documento foi colocado on-line por algumas das vítimas de Maciel, juntamente com outros 211, datados de 1944 a 2002. O título em espanhol é: La voluntad de no saber, a vontade de não saber.
Subtítulo, também em espanhol: O que já se sabia sobre Maciel nos arquivos do Vaticano. Mas a comparação mostra uma correção desconcertante no texto de 1º de outubro: no documento em sua posse, o ponto 5 está truncado após a ordem para "ser tratado". O restante, ou seja, a proibição de se aproximar de seus alunos e a obrigação de sair, caso contrário será suspenso a divinis, no texto datilografado foi apagado com pena e substituído por algumas frases na caligrafia do próprio Scapinelli. O monsenhor relata uma reunião com Maciel e o Cardeal Giuseppe Pizzardo, seu grande protetor, que ocorreu em 2 de outubro, ao final da qual desapareceram as ordens contidas no original guardado nos antigos Arquivos Secretos do Vaticano. A questão é saber quem corrigiu o texto inicial, acompanhado de uma nota no canto superior direito que diz: "Se houver algo contrário, estou às ordens".
Talvez o original fosse apenas um rascunho, embora vindo dos "Superiores". E as versões posteriores parecem ser o primeiro indício de uma contraofensiva para abrandar as acusações e as sanções contra Maciel. Essa não é a única singularidade. Nos documentos on-line, na data de 3 de outubro aparece uma carta de Maciel, na qual "humildemente" obedece ao pedido de se tratar e descreve suas condições de saúde como "satisfatórias", anexando um atestado médico. Reitera estar sendo vítima de uma "acusação caluniosa" e conclui se orgulhando das propriedades adquiridas por seus Legionários de Cristo.
No Arquivo Apostólico do Vaticano, no entanto, em 3 de outubro de 1956, há algo a mais e diferente: um documento de uma página intitulado Caso Maciel (suplemento de informações), também de Scapinelli. E naquelas linhas aflora um clima de cumplicidade. O Cardeal Pizzardo "disse que o Arcebispo do México é hostil a Maciel, porque este último se opôs à sua nomeação como Arcebispo da Capital". Houve uma reunião com os Legionários, na qual Scapinelli tinha reiterado a necessidade de seu chefe se tratar e obedecer. “O próprio cardeal sugeriu um retiro", consta, "na clínica Salvator Mundi", não muito longe do Vaticano.
Mas o caso contra Maciel foi adiante, a pedido de Pio XII. "Ontem, um rascunho cifrado foi enviado à Secretaria de Estado por SUA SANTIDADE, um projeto em código, a fim de evitar que... Dominguez, indicado como o ‘factotum’, a ‘alma negra’ da conspiração contra Maciel, venha a Roma": Dominguez era o secretário pessoal de Maciel e, portanto, também conhecia seus segredos inconfessáveis. Tratava-se de manobras altamente confidenciais, confiadas a um alfabeto secreto. Mas em meio a crescentes resistências, informam os documentos dos arquivos. Por quê? Maciel fundou sua organização em 1941, mas foi somente em 2006 que foi condenado por muitos casos de pedofilia. E foi preciso esperar até 2010, por iniciativa de Bento XVI, dois anos após a morte do fundador, para que os Legionários de Cristo sofressem uma intervenção. De 1956 a 2006, há um buraco temporal de meio século, durante o qual Maciel pôde continuar agindo sem ser perturbado: com a cobertura de uma parte da hierarquia eclesiástica. No entanto, a nota de 1956 falava claramente. E se entendia que vinha do círculo de Pio XII.
Mas, já naquela época, intuía-se que Maciel desfrutava de altas proteções. O cardeal Giuseppe Pizzardo, conhecido na década de 1950 por seus ataques aos padres operários que, em sua opinião, corriam o risco de serem contaminados pelo socialismo do ponto de vista "intelectual e moral", tinha uma atitude indulgente e paternal em relação ao padre mexicano. Pizzardo defendeu a sua causa. Acusou de preconceitos e má-fé os bispos mexicanos que alertaram o Vaticano sobre a personalidade de Maciel. Diante das súplicas para "salvá-lo" da suspensão, até poucos dias antes de sua morte, o Papa Eugenio Pacelli sugeriu prudência e para ouvir o parecer da Congregação dos Religiosos. Ele havia intuído que aquele sacerdote mexicano hiperativo e deferente escondia algo. No entanto, o apoio de algumas figuras poderosas lançava as bases para o encobrimento do dossiê sobre o chefe dos Legionários de Cristo após a morte de Pio XII. Na linha da frente Pizzardo e, com ele, Angelo Dell'Acqua, na época o poderoso número dois da Secretaria de Estado, que fez com que um desavisado João XXIII aprovasse a súplica em favor de Maciel. Mas havia muitos que o admiravam. Basta folhear as cartas e os discursos de cardeais e bispos, embora misturados com críticas e perplexidade sobre as maneiras desenvoltas com as quais obtinha financiamentos. É por isso que a lista dos encobrimentos que emerge dos documentos do Vaticano provavelmente está incompleta. Lança sombras sobre algumas personagens-chave dos pontificados de Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI. E dá a entender como é difícil para Francisco concluir suas tentativas de introduzir mais transparência.
Por que tanta indulgência? Duas razões principais emergem das cartas do Arquivo Apostólico do Vaticano, que "la Lettura" pôde ver depois que a Ansa as mencionou. A primeira é que Maciel se apresentava como um grande recrutador de seminaristas e sacerdotes: além disso, naquele México anticlerical dos anos 1950, a Igreja estava faminta por seminários e padres para radicar-se e combater um clima de hostilidade generalizada. As recomendações às hierarquias que se seguiram depois de 1941, ano em que a congregação foi fundada, enfatizam a "escassez de sacerdotes" a que Maciel remediava com os seus seminários. Um relatório em espanhol, datado de 5 de outubro de 1945, é enviado ao "Reverendíssimo Francisco Gonzales Arias", bispo de Cuernavaca. São duas páginas e meia que se descreve a vida no seminário em Tlalplan, na periferia da Cidade do México. Sobre o fundador Maciel, escreve-se que "era de família cristã e muito distinta, de profunda piedade e sólida virtude". E que, aos 25 anos de idade, já havia se mostrado maduro depois de "muitos anos de duras provações e contradições" - palavras que, relidas hoje, podem significar tudo.
O outro argumento usado por Maciel Degollado era apresentar os Legionários de Cristo como perseguidos pelos comunistas. Que as esquerdas mexicanas fossem profundamente anticatólicas e anticlericais era um fato. Mas quando a perseguição não acontecia, como resulta de uma carta em espanhol do arquivo, Maciel "construía" ameaças contra seus seguidores. Mas, acima de tudo, ele rapidamente construiu uma rede financeira que ia da Espanha à América Latina e a Roma: dinheiro que Maciel angariava e também utilizava para fins estreitamente pessoais. Não apenas afluíam fundos para a construção de uma sede após a outra a partir da Universidade de Comillas, a Salamanca. O líder dos Legionários de Cristo também começou a distribuir dinheiro no Vaticano, expandindo uma rede de proteções que lhe permitiam continuar sem perturbações sua existência dupla e tripla como servidor da Igreja e, ao mesmo tempo, pedófilo e bígamo.
As questões que todos esses documentos levantam é se existem relatórios guardados em outros arquivos, como os da Secretaria de Estado ou do Santo Ofício; se alguém conhece seu conteúdo e se todos foram transferidos para o Arquivo Apostólico; ou se estejam faltando na lista documentos comprometedores e se foram manipulados ou escondidos, ou até mesmo destruídos nos anos em que o escândalo Maciel ameaçou envolver figuras importantes da Igreja Católica. Várias fotografias também estão incluídas nas três grossas pastas que "la Lettura" consultou. Uma delas, um recorte de jornal, imortaliza trinta e três jovens seminaristas mexicanos de pé nos degraus de um avião da Compania Mexicana de Aviación que os levaria para estudar na Espanha, na Universidade de Comillas, depois de uma escala em Cuba. Atrás deles, paterno, destaca-se um sacerdote que parece ser justamente o Padre Maciel. Vista novamente hoje, aquela foto amarelada causa arrepios.
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Os Legionários de Cristo. O Vaticano sabia. Artigo de Massimo Franco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU