Andrea Riccardi: “O que mais me abalou foi o silêncio de Pio XII depois da Guerra”

Papa Pio VI (Foto: Reprodução | Vatican News)

05 Junho 2023

O atraso na abertura dos arquivos do Vaticano relativos ao pontificado do Papa Pio XII e da Segunda Guerra Mundial “prejudicou o conhecimento da realidade”, diz o historiador Andrea Riccardi, fundador da Comunidade de Santo Egídio, de Roma, e ministro da Cooperação Internacional entre 2011 e 2013, no Governo italiano liderado por Mario Monti. Para o historiador, os silêncios do Papa Pacelli foram uma escolha para evitar males maiores, mas o que ele não compreende é o silêncio de Pio XII depois da Guerra, sobre o antissemitismo ou a perseguição aos judeus que se tinha verificado durante o conflito.

Riccardi, autor de uma vasta bibliografia sobre Pio XII e a Igreja Católica do século XX, concedeu uma entrevista sobre o papel de Pio XII em relação aos judeus, durante a Segunda Guerra Mundial, que a seguir se reproduz na íntegra. Amanhã publicaremos, também na integra, a entrevista de Silvia Haia Antonucci, responsável do Arquivo da Sinagoga de Roma.

A entrevista é de António Marujo, publicada por 7MARGENS, 31-05-2023.

Eis a entrevista.

Fala-se muitas vezes dos silêncios do Papa Pio XII. O que podemos dizer do seu papel durante a guerra?

Antes de mais, temos de pensar no que era o Vaticano daquela época: uma pequena realidade isolada, primeiro num país fascista e, depois, numa Roma ocupada pelos nazis. Pio XII viveu isto tragicamente. Tinha a noção do que os nazis teriam feito à Igreja em caso de vitória. Sabia que não haveria espaço para a Igreja numa Europa nazi. E ao mesmo tempo sabia que no mundo comunista [também] não haveria espaço, já havia grandes perseguições.

Pio XII assume a posição da Igreja Católica, a da imparcialidade, tentando favorecer uma certa paz. Por outro lado, teve muito cedo conhecimento da perseguição dos judeus. Eu trabalhei nos arquivos do Vaticano e vi os relatórios: o Vaticano sabia, primeiro das perseguições e, depois, do extermínio dos judeus. Há relatórios impressionantes: o Governo polaco no exílio, até mesmo os Aliados, pressionavam Pio XII para que interviesse contra Hitler.

Cópia de um documento de Pio XII conservado nos Arquivos Vaticanos (Foto: Reprodução | Vatican News)

Mas o Papa não falou muito…

Temos de dizer que foram raras as palavras de condenação da parte de Pio XII. Condenou as perseguições por causa da estirpe, que queria dizer raça, mas concentrou-se sobretudo em ajudar. O momento mais alto da ajuda da Igreja de Pio XII aos judeus foi durante a ocupação de Roma. De 8 de Setembro de 1943 até ao início de Junho de 1944 esta cidade foi ocupada por nazis, que a controlaram, e a 16 de Outubro de 1943 os alemães desencadearam uma razia aos judeus romanos: mais de mil judeus romanos foram deportados para Auschwitz.

Nessa ocasião, o Papa interveio por vias diplomáticas, mas não protestou. Multiplicou-se a ajuda da Igreja. Estamos em Santo Egídio, num antigo mosteiro carmelita e também aqui estiveram escondidos alguns judeus. Nos meios religiosos escondiam os judeus e à porta dos edifícios religiosos havia um cartaz em italiano e alemão que dizia, assinado pela autoridade alemã: “Este edifício pertence à Santa Sé. Estão interditas perseguições.”

E isso repetiu-se em muitos sítios…

Houve uma grande hospitalidade clandestina, não só aos judeus, mas também a outros procurados, até mesmo a um líder comunista, Roveda, no Seminário Lombardo; em Latrão, [basílica] extraterritorial [da Santa Sé], estava todo o Comitê de Libertação Nacional e o general [Roberto] Bencivenga, chefe militar das forças de libertação em Roma, dos partisans.

A hospitalidade da Igreja foi uma das escolhas principais de Pio XII. Como se sabe, Pio XII a partir da famosa [peça de teatro] do alemão [Rolf] Hochhuth, foi acusado de silêncio. Os silêncios de Pio XII foram uma escolha, não só sobre os judeus: ele também não teve discursos críticos sobre a Polônia, país católico que estava a ser dividido pelos alemães, exatamente por estar convencido que uma tomada de posição pública teria aniquilado a Santa Sé.

Mas como entender então o acolhimento nos mosteiros e casas religiosas?

Podemos dizer que fizeram isto espontaneamente? Os religiosos que abriram os conventos de Roma, os seminários, fizeram-no espontaneamente ou fizeram-no por ordem do Papa? É óbvio que, sem o consentimento do Papa, um mosteiro de clausura não teria podido acolher refugiados ou perseguidos. Houve um consentimento do Papa, mas houve também uma iniciativa de base, sobretudo porque o risco era muito grande para os superiores: a condenação à morte, o fuzilamento.

Foi então um favor do Papa, que num seu discurso falou de errantes, ou seja, pessoas em fuga, e houve uma grande sensibilidade no mundo católico [da qual] nasceram convivências inéditas com os judeus? Os católicos nunca tinham vivido com os judeus dessa forma. Em Roma não faltaram episódios deploráveis: quando os fascistas entraram no Colégio Lombardo, encontraram alguns judeus escondidos; [ou quando] entraram na Basílica de São Paulo de noite, [que motivou] um protesto por parte da Santa Sé.

O que significavam esses ataques?

Naturalmente que estes ataques dos fascistas eram favorecidos pelos nazis para pressionarem o mundo eclesiástico. Os nazis sabiam [do que se passava]? Penso que sabiam, mas no fundo não quiseram criar problemas demasiado grandes com a Santa Sé e fechavam os olhos. É certo que não sabiam tudo, mas quando num mosteiro estão escondidas 30-40 pessoas, é fácil perceber-se e é fácil ver que precisam de comer.

Naturalmente Hitler tomaria medidas mais duras e falou-se de uma deportação do Papa. Aliás, está documentado que Hitler deu ordem ao comandante das SS, [Karl] Wolff, que interviesse no Vaticano, que estudasse uma deportação do Papa. Wolff explicou a Hitler, e parece que o conseguiu convencer, que uma tal deportação seria prejudicial, que na Itália a situação era tranquila, que no fundo a Igreja não demonstrava uma grande hostilidade com a ocupação alemã e que era conveniente evitar [esse confronto]. Mas o Vaticano teve receio, tanto que o secretário de Estado [do Vaticano, cardeal Luigi] Maglione disse aos diplomatas para queimarem as suas próprias cartas. E encontramos nas cartas vaticanas um plano de defesa do Papa, caso os alemães entrassem.

Quando o bairro de San Lorenzo foi bombardeado pelos Aliados, Pio XII foi lá, mas sobre a deportação dos judeus só fez declarações diplomáticas. Há anos disse-me, em entrevista, que Pio XII era um prisioneiro de luxo no Vaticano. Entre essa imagem e as críticas que lhe foram feitas está sempre essa ambiguidade?

Pio XII saiu sozinho para ir a San Lorenzo, entre os bombardeados, um episódio épico que ficou na consciência e na memória dos romanos. Com a ocupação da cidade, o Papa nunca mais saíra do Vaticano. Apareceu uma só vez à varanda da Praça de São Pedro para uma grande manifestação. Uma só vez. Nunca mais falou nem à janela, nem para Itália, justamente porque não reconhecia a situação de Roma, o governo da República Social e a ocupação alemã.

Mas esta não é a única razão pela qual o Papa não saiu. Pio XII não queria cortar completamente com a Alemanha, até para evitar um agravamento das perseguições aos católicos, aos polacos e aos judeus. A sua linha foi uma escolha diplomática, outros poderiam ter escolhido outra via, mas Pio XII não quis pagar o preço da destruição da Igreja e do fim do asilo.

Esse é o grande argumento da sua defesa?

Não defendo Pio XII, como sabe, mas não o acuso, porque a função do historiador não é como a do juiz, a função do historiador é a de entender e não julgar. Se calhar outro Papa teria feito de outra maneira, mas os silêncios de Pio XII durante a guerra têm explicação, percebem-se e compensam-se com o compromisso humanitário.

O que mais me abalou – falo disso no meu último livro La Guerra del Silenzio – foi o silêncio depois da guerra. Porque Pio XII não falou da Shoah depois da guerra? Da tragédia dos judeus? Esta é uma dúvida muito importante. Porque não falou contra o antissemitismo? Há um silêncio de Pio XII depois da guerra. E aqui há algumas explicações.

O livro de Andre Riccardi, La guerra del silenzio (Foto: Divulgação)

Quais?

A primeira é a sensação de que a Leste os judeus tinham ido para o poder com os comunistas, havendo alguns dirigentes, por exemplo na Polônia e na Romênia, de origem hebraica. Na Polônia criou-se a ideia, entre os católicos, que os judeus tinham vencido depois da guerra, quando tinham sido exterminados. E também, na Palestina, o nascimento do Estado de Israel e consequentemente um novo problema com os judeus, entre judeus e palestinos e palestinos cristãos.

Além disso, depois da guerra Pio XII sentiu-se perseguido, vítima da perseguição comunista e sentia que já não valia a pena falar sobre o que aconteceu na guerra. No fundo, os católicos começaram a reflectir sobre a Shoah – alguns fizeram-no antes – com o Concílio Vaticano II [1962-65] e depois, como todos, com o processo [de Adolf] Eichmann. Porque é necessário dizer que, por exemplo, o livro de Primo Levi sobre a sua terrível experiência num campo de extermínio [Se Isto é Um Homem] ao princípio não encontrou editor, tão pouca era a sensibilidade em relação à tragédia judaica.

Também a Alemanha e toda a Europa só falaram da guerra e do que aconteceu muito mais tarde.

Falou-se da Shoah mais tarde. E os alemães, tendo um país destruído, também se sentiram vítimas e não só carrascos.

Falámos do bombardeamento de San Lorenzo pelos Aliados e disse que foi um acontecimento importante para os romanos. Mas também o atentado da via Rasella e depois o massacre das Fossas Ardeatinas, foram importantes.

O terrível massacre das Fossas Ardeatinas

O atentado e o massacre ficaram na consciência do povo de Roma?

Permanece a memória das Fossas Ardeatinas que são um sacrário muito comovente, terrível: esta cova onde foram mortos tantos judeus e não judeus. Pio XII não queria que se combatesse por Roma e portanto, na minha opinião, era contra o atentado da via Rasella. Mas todo o empenho vaticano foi para que os alemães saíssem de Roma sem combater na cidade, sem destruir as pontes.

Agora, às Fossas Ardeatinas vão os jovens, há uma memória… Foi a minha avó que me contou que Pio XII foi a San Lorenzo, com a roupa manchada de sangue – mito ou realidade, não se sabe. O Papa foi sozinho de carro com mons. [Giovanni Battista] Montini [futuro Papa Paulo VI], sem escolta. Em Julho de 1943 o Papa já era o ponto de referência em Roma, como continuará a sê-lo, mesmo estando fechado no Vaticano, durante os meses todos da ocupação, algo a que chamei o mais longo Inverno.

Na minha opinião este é um ponto muito importante. Um historiador italiano liberal, [Federico] Chabod, dizia: há uma grande autoridade em Roma, o Papa. De fato, quer pelas ajudas alimentares, das paróquias, quer pela autoridade moral, a defesa de Roma cidade aberta, [foi o Papa que a fez]. Quando Roma foi libertada, o Papa assomou várias vezes à janela e a Praça de São Pedro estava cheia com bandeiras vermelhas, bandeiras italianas, bandeiras brancas e o Papa foi saudado como protagonista da libertação de Roma.

Giovanni Battista Montini, posteriormente Paulo VI, atuou no acolhimento de perseguidos pelo fascismo (Foto: Reprodução | Vatican News)

A historiadora Grazia Loparco estudou o acolhimento de judeus em mosteiros, conventos e casas religiosas. E encontrou, em 200 casas religiosas, registos de cerca de 4000 pessoas acolhidas. Este é o número final?

Não se pode dizer isso, porque descobrem-se sempre novos casos. Eu concordo com os números da irmã Grazia Loparco. Renzo de Felice já tinha falado de um número parecido. Eu comecei a estudar o acolhimento aos judeus em 1975 – publiquei um ensaio e depois um livro, Roma città sacra? – e à época tive ocasião de falar com muitos religiosos que ainda estavam vivos e que eram testemunhas disso. Mas a esses 4000 judeus é preciso juntar outros que foram acolhidos por famílias, às vezes espontaneamente por amizade ou solidariedade, outras vezes porque essas famílias faziam parte de uma rede das paróquias: o problema das famílias não era só esconder, mas também dar de comer e as paróquias ajudavam.

O número pode ser maior. Falo das famílias escondidas no meu livro “O mais longo Inverno”: falei com algumas, tenho alguns testemunhos, mas pouco. Por exemplo no bairro Testaccio há o caso de uma família judia escondida numa loja, que era visitada por uma velhota chamada Luísa, que lhes levava comida e dizia “acolhia-vos em minha casa, mas não posso, porque o meu genro é fascista”.

A abertura do arquivo de Pio XII, que o Papa Francisco ordenou, já mudou algo no modo de perceber o papel de Pio XII? Ainda pode mudar mais?

O atraso da abertura dos arquivos vaticanos prejudicou o conhecimento da realidade. No debate sobre os silêncios de Pio XII, os historiadores trabalharam sobre fontes não vaticanas, ou seja, arquivos civis ou arquivos pessoais. A abertura é muito importante e estou convencido de que nos fará perceber melhor esta história, a partir do interior. Mas não devemos esperar encontrar sabe-se lá que segredos: encontraremos passagens de uma história que com paciência vamos ter de reconstruir.

O Papa Francisco fez bem em tirar o nome de “Arquivo Secreto Vaticano”, porque as pessoas pensavam que é o arquivo dos segredos. Eu vi muitas coisas e podem existir mais e muito interessantes. Mas estou convencido de que há muito trabalho, muitas coisas a perceber, e até perceber as diferentes posições das personagens no Vaticano. Não são todos iguais. Havia quem estivesse contra: o cardeal [Nicola] Canali era absolutamente contra o acolhimento [de refugiados], até chegou a mandar alguns embora do Seminário Lombardo. Havia monsenhor [Angelo] dell’Acqua que era um pouco cético. Havia um Montini muito empenhado – aliás Montini era o homem de Pio XII que trabalhava com o acolhimento. Montini tornou-se Paulo VI, que defendeu sempre Pio XII.

Como olha para o papel do padre Joaquim Carreira?

A história do padre Carreira insere-se naquele esforço de religiosos e religiosas, conventos, seminários, mosteiros, paróquias, de acolher os romanos ou os italianos em dificuldade. Não só judeus, mas também políticos, familiares de políticos que teriam sido perseguidos.

O caso do padre Carreira é muito interessante, porque é um português, fora do ambiente italiano. Poderia ter dito como algumas vezes dizem os eclesiásticos em Roma: “Eu não percebo a política na Itália.” Porque se empenhou este homem? Poderia ter dito: “Eu sou estrangeiro.” Não o disse, porquê? É necessário investigar, no meu entender, os motivos religiosos, pessoais, evangélicos deste padre.

Não foram muitos os religiosos estrangeiros que cuidaram dos judeus ou dos perseguidos em Roma e o padre Carreira foi um deles; outro é o geral dos jesuítas, [o austríaco Wlodimir] Lodokowsky, que até tinha mostrado um tom antissemita, ou um superior franciscano que até era alemão. Mas o caso do Padre Carreira não é interessante só para os portugueses, é interessante pela catolicidade. Ele expressa um pensamento católico, não um pensamento português, numa altura em que Portugal tinha uma forte identidade nacionalista. E coloca-se em risco e poderia ter tido problemas muito sérios com os alemães, havia a pena de morte. Poderia ter comprometido o Colégio Português, poderia ter tido até problemas com a Igreja portuguesa e com o Governo. Por isso é bom estudar este caso, que é muito interessante.

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