02 Novembro 2022
Poucos se lembram que o jovem Montini estava certo, em 1926, de que “o fascismo morrerá de indigestão ... e será vencido por sua própria arrogância"; em 1929, que os Pactos de Latrão teriam entravado a "liberdade concordata" da Igreja; e, em 1947, que as "pretensões" de Franco na Espanha deviam ser questionadas. Sua história desde a ação com a Fuci (Federação Universitária Católica da Itália) na década de 1930 até a encíclica de 1968 pelo controle "natural" dos nascimentos foi uma reafirmação crescente das liberdades religiosas e civis. Para reconstruir este itinerário com uma nova e extraordinária documentação, dois volumes de mais de 1.200 páginas acabam de ser publicados pelos Arquivos Apostólicos Vaticanos, com milhares de "folhas de audiência" de Montini, substituto da Secretaria de Estado, em diálogos diária com Pio XII desde 1945 a 1954, editados, com o rigor habitual e inteligente, por Sergio Pagano, prefeito do Arquivo e guardião ativo da história da Santa Sé ("In quotidiana conversazione". G.B. Montini ala scuola di Pio XII).
O texto é de Francesco Margiotta Broglio, um dos maiores historiadores das relações entre Estado e Igreja, publicado por Corriere della Sera, 29-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
São 1.850 pequenas folhas, manuscritas a lápis, que o futuro Paulo VI compilou brevemente de julho de 1945 a novembro de 1954, tanto durante as chamadas Audiências de tabela, quanto por ocasião dos encontros do Papa Pacelli com políticos, diplomatas, prelados e personalidades, ordenados por ele mesmo e arrumados antes de sua saída de Roma para Milão como novo arcebispo (1 de novembro de 1954). Uma saída que levou o embaixador francês a escrever ao seu governo: "Perdemos um interlocutor de excepcional qualidade... mas também um amigo" e que Montini comentou assim com um antigo colega da Fuci: "Também me tiraram a assinatura". O cardeal Siri, arcebispo de Gênova, considerou que a transferência se devia ao "juízo negativo de uma comissão secreta", instituída por Pio XII, "que examinou seu comportamento", mas que deveria ser considerada "a última etapa para se tornar Papa” (Benny Lai), enquanto seu amigo Dom Giuseppe De Luca o considerou um “exílio”.
As folhas serviram "para deter de maneira segura" a chamada "mente do Pontífice", ou seja, sua vontade em relação às inúmeras questões tratadas com Montini, uma vontade que era seguida com "absoluta fidelidade". Com a morte de Pacelli, Montini o definirá como "o último estadista sobrevivente que enfrentou duas guerras de nossa época". Não parece, no entanto, que possam ser encontradas as "folhas" referentes aos anos 1939-1944.
Montini, em 1959, dirá: “Fiquei próximo ao Papa por 17 anos. Eu testemunhei seu trabalho dia a dia. Seus papéis passaram por minhas mãos, seus segredos foram compartilhados comigo..., nós gozamos de muita confidências e confiança... testemunhas de sua mansidão de espírito. De sua impecável piedade religiosa... de seu intrépido senso de responsabilidade”. Escrevendo, em 1921, ao seu pai espiritual, Paolo Caresana, da Chiesa Nuova de Roma, Montini comentara seu ingresso na diplomacia da Santa Sé: “O senhor só recolherá o soluço de minha vida rompida” enquanto, porém, o padre Giorgio, em 1924, animou-o: "Você verá que mais tarde sentirá uma maior satisfação", embora obviamente não imaginando o papado ao qual subirá em junho de 1963. Foi então que falou da "surpreendente novidade do tempo moderno" e decidiu que não faria mais uso da antiga tiara papal, que doou aos pobres, e eliminaria as excomunhões de 1054 contra a Igreja de Constantinopla.
Após o Concílio Vaticano II, acelerou o diálogo ecumênico, aboliu o tribunal pontifício e reformou o sistema de eleição dos pontífices romanos, desenvolvendo extraordinariamente a política internacional que acompanhava pontualmente desde o tempo de Pio XII, como confirmam os documentos publicados. Recorde-se que viveu pessoalmente o dramático caso de Aldo Moro, de quem era muito próximo, e fez um apelo às Brigadas Vermelhas na esperança de o salvar: poucos meses depois morreria.
Muitos políticos italianos e estrangeiros, alguns dos quais conheceu diretamente, foram objeto de conversas com o Papa.
Entre os primeiros, desde Ciano e Badoglio a De Gasperi, Scalfari, Fanfani, Andreotti, Terracini e Togliatti, com frequentes e precisas referências aos partidos políticos: muito interessantes são as "notas" sobre os "católicos comunistas" que, sem que ele soubesse, foram excomungados em 1949 e as referências, não muito preocupadas, à maçonaria. As folhas mencionam também, com algumas informações específicas, Wilma
Montesi, Ugo Montagna e Piero Piccioni, também com referência a um artigo da “Unita” de 28 de março de 1954 e a uma suposta relação entre Montagna e Gedda. No entanto, é evidente a sua ação constante de ligação entre Pio XII e Alcide De Gasperi que, no entanto, em janeiro de 1948, o Papa, referindo-se ao Conselho Nacional da DC, define "exasperante". Entre os temas principais também os padres operários, as relações com os EUA, o famoso caso de Monsenhor Cippico, as canonizações e beatificações, a imprensa diária, os jesuítas e a nobreza.
Alguns atritos: em dezembro de 1946 o Papa convida a "manter firme" a referência na Constituição aos Pactos de Latrão; em 20 de junho de 1954 cita o semanário de Guareschi, "Candido", onde se fazia referência ao "excomungado" Pajetta ("líder de um partido ateu") que havia falado por duas horas, convidado pelo jesuíta Insolera, na Sala Borromini da Chiesa Nuova e diz a Montini, muito próximo, como já disse, ao pároco Caresana: "Que não se repita mais", enquanto L'Osservatore Romano do mesmo dia define "perigoso" um discurso de Enrico Berlinguer em Perugia sobre “como desenvolver e traduzir em ação o diálogo entre jovens comunistas e católicos”. Além disso, em abril de 1950, comentou sobre a presença de Togliatti na Livorno vermelha, dizendo: "infelizmente na Semana Santa". Em janeiro de 1952, porém, Montini comunicou ao Papa que Humberto II de Saboia, exilado em Portugal, falando com o conselheiro da Nunciatura, Mozzoni, havia dito: "Do Papa ao último fiel somos todos socialistas... Seria bom que o medo da Rússia desaparecesse... entre os povos todos os entendimentos são possíveis”, um pensamento “baseado nas declarações do Pontífice nos últimos anos”.
São muitos os documentos que confirmam a forte ligação com o filósofo francês Maritain, que será embaixador da França no Vaticano, que é mencionado em cerca de 20 folhas, assim como, muitas vezes, Paul Claudel. Com referência ao cardeal Borgongini Duca, primeiro núncio na Itália de 1939 a 1953 (cujos relatórios foram publicados em 2020), Pacelli, em junho de 1954, observa: "fez muito pouco", porém atenuando o juízo em carta dirigida a ele.
Para concluir, um episódio divertido. Em abril de 1953, Pio XII pede a Montini para responder ao embaixador francês, que havia insistido em uma audiência com a famosa e bela dançarina crioula Joséphine Baker, que "infelizmente" não pode recebê-la. Baker, cantora e dançarina, também havia sido agente secreta da contraespionagem francesa e depois da France libre, tanto que De Gaulle a condecorou com a Legião de Honra e que será, ao morrer em Paris, enterrada no Panthéon com as glórias nacionais. O mais que confiável curador, Sergio Pagano, levanta a hipótese, no entanto, que teria sido recebida, mas que a notícia não teria sido divulgada, como de costume. Certamente não se apresentou, nos solenes aposentos pontifícios, com a famosa saia de banana de 1927.
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Montini sob as ordens de Pio XII - Instituto Humanitas Unisinos - IHU