“Devemos valorizar e apreciar a cautela tradicional da Igreja sobre os processos de canonização. Há quase quatro séculos, entre 1628 e 1634, o Papa Urbano VIII decidiu que deveria transcorrer um período de 50 anos após a morte do candidato antes de sua canonização. Foi a reação de Urbano contra uma época em que muitas novas devoções a novos santos estavam surgindo continuamente. É preciso redescobrir a sabedoria daquela antiga norma, principalmente quando se trata da beatificação e canonização dos papas. Isso é necessário para reduzir a mística do papado no catolicismo contemporâneo”, escreve o historiador italiano Massimo Faggioli, professor na Villanova University, Filadélfia, EUA, em artigo publicado por La Croix International, 12-01-2023. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Mesmo antes de sua missa fúnebre começar em 5 de janeiro, já havia apelos para declarar Joseph Ratzinger-Bento XVI santo súbito, em uma repetição do que aconteceu com a morte de João Paulo II. O papa polonês, que ocupou a Cátedra de Pedro de 1978 a 2005, acabou sendo canonizado em abril de 2014 ao lado de João XXIII (papa de 1958 a 1963). Isso pode ser simplesmente um déjà vu, repetindo o que aconteceu há quase 18 anos. Mas olhar para o contexto histórico mais amplo nos ajuda a entender a importância dessa questão, em suas semelhanças com os precedentes e em suas características únicas para a Igreja Católica e o papado de hoje.
Antes de tudo, devemos lembrar que proclamar a santidade dos homens que são eleitos Bispos de Roma por um conclave de cardeais é ao mesmo tempo antigo e recente. Dos primeiros 48 papas que morreram antes do ano 500, 47 são santos; metade deles eram mártires. A canonização de papas que reinaram nos quinze séculos seguintes foi rara, mas se acelerou com velocidade vertiginosa nas últimas décadas.
A verdadeira mudança começou no século XIX com o que historiadores e teólogos chamam de “romanização” ou “papalização” do catolicismo, especialmente com o Concílio Vaticano I (1869-1870) e sua proclamação da primazia e infalibilidade papal. Isso produziu uma maneira mais centrada no papa de governar a Igreja, mas também novas formas de devoção à pessoa do Romano Pontífice.
A crescente inclinação para canonizar papas acelerou sob João Paulo II, que canonizou um enorme número de santos (incluindo – para seu crédito – muitos leigos, inclusive mulheres e pessoas casadas). Ele também encurtou o período de espera necessário antes de abrir a “causa” (ou processo) de beatificação/canonização de 50 anos após a morte do candidato para apenas cinco anos. Ele renunciou completamente a esse período reduzido para Madre Teresa de Calcutá. E quando João Paulo morreu em abril de 2005, Bento XVI renunciou ao período de espera também para ele.
Nos anos de 2000 a 2022, três dos seis papas da era pós-Vaticano II – João XXIII, Paulo VI e João Paulo II – foram todos canonizados. E em setembro de 2022, o Papa Francisco beatificou o quarto – João Paulo I, que foi papa por apenas 33 dias. Desde a eleição de Pio X em 1909, houve 10 papas. Quatro deles já são santos. Excluindo Francisco e o recentemente falecido Bento, isso significa que metade dos oito restantes estão canonizados e outro (João Paulo I) está a caminho. A última causa dos últimos quatro papas imediatamente anteriores a Bento foram feitos santos quase que naturalmente.
Agora tornou-se quase automático que os papas sejam declarados santos logo após sua morte. Isso foi feito em grande velocidade especialmente para João Paulo II, e o mesmo poderia ser feito ou tentado para Bento XVI. Mas é minha opinião que esta tendência, inaugurada no século XX, deve ser travada. Eu ofereço três razões para isso.
Primeiro, canonizar papas significa canonizar o papado – pelos papas no Vaticano. O Vaticano costumava ter menos controle sobre o processo de canonização (tecnicamente, um julgamento). Mas na Igreja da Contrarreforma do século XVII, a Cúria Romana tornou-se muito mais responsável. Foi uma época em que canonizar papas era uma exceção. Agora, o papado está canonizando a si mesmo sem qualquer período de discernimento em toda a Igreja e estendido no tempo sobre a sabedoria de canonizar um papa em particular. Pode ser visto como uma forma de proteger o papado do julgamento moral e histórico, algo como reforçar as afirmações feitas pelo Vaticano I sobre o papado. Ao mesmo tempo, parece responder a uma lógica mais midiática do que eclesial: ou seja, a necessidade de confirmar a mediunidade do papado contemporâneo através da elevação à santidade da pessoa que é eleita papa.
A segunda razão para uma moratória na canonização do papa diz respeito à política da Igreja. A história do período pós-Vaticano II é instrutiva. João XXIII morreu em junho de 1963 entre a primeira e a segunda sessões do Concílio Vaticano II, e muitos padres conciliares foram pressionados a seguir uma antiga tradição conciliar de torná-lo santo por proclamação. Isso desencadeou uma série de contramedidas por parte dos católicos conservadores, o que levou à adoção de contrapesos. Juntamente com a beatificação do “progressista” João XXIII em 2000, foi beatificado o “conservador” Pio IX. E na cerimônia de 2014, quando João foi canonizado, João Paulo II também foi feito santo.
No século XIX, a elevação dos papas com primazia e infalibilidade foi também um ato político – em parte contra a modernidade secular, em parte uma apropriação de mecanismos típicos da modernidade política e do Estado moderno. A diferença com o século XIX é que agora o próprio ato de os papas canonizarem os papas anteriores tornou-se parte da política eclesial interna e não está ajudando a unidade da Igreja.
A terceira razão para uma moratória na canonização de papas está relacionada à crise de abuso sexual do clero. A maneira como o papado lida com os abusos é uma questão controversa na Igreja hoje e permanecerá controversa no futuro previsível. Se a Igreja Católica quiser crescer no discernimento que o Papa Francisco pediu em resposta à crise dos abusos, a instituição deve parar de canonizar papas. Isso é importante para a “purificação da memória” que agora está em ordem. Na última fase desta crise em andamento, houve um foco maior em como a Cúria Romana – e, portanto, o papa – lidou com casos particulares de abuso e a questão como um todo. Quando um papa canoniza seus predecessores, a Igreja institucional parece mais uma vez ser réu, juiz e júri ao mesmo tempo.
Mas aqueles dias já se foram faz tempo. A própria reputação de João Paulo II ficou manchada por sua maneira de lidar com casos de abuso, tanto como bispo na Polônia quanto como papa. Recentemente, houve apelos para descanonizá-lo por causa de seus casos de abuso do clero e sua teologia sobre mulheres e sexualidade humana. Embora eu tenha achado imprudente canonizar João Paulo II, sou contra a ideia de descanonizá-lo (mesmo que isso fosse possível com uma única decisão ou ato). Parece ser tão político quanto sua canonização imediata.
Com a recente morte de Bento XVI, há também dois elementos claramente novos a considerar. Primeiro, os apelos para que João Paulo II fosse imediatamente santificado após sua morte em 2005 vieram do Movimento dos Focolares. Seus integrantes fizeram inúmeros cartazes escritos “Santo Súbito!”, erguidos durante os cantos no seu funeral na Praça São Pedro. Esta erupção de devoção ao papa falecido pretendia ser vista como uma expressão da vox populi – embora um movimento muito bem integrado nas fileiras da instituição. Este apelo a uma canonização rápida foi mais tarde bem recebido e acolhido por outros movimentos e vozes institucionais, especialmente os cardeais, mas sobretudo o sucessor de João Paulo II, Bento XVI.
O movimento atual para declarar Bento “santo súbito” é mais contido em comparação com 2005. Mesmo antes do funeral do falecido papa alemão em 5 de janeiro, seu secretário pessoal – o arcebispo Georg Gänswein – fez parte de uma blitz da mídia que criou um clima peculiar e humor incomum nas primeiras horas após sua morte. Embora no livro revelador publicado em conjunto com o jornalista italiano Saverio Gaeta, e disponibilizado em 12 de janeiro, Gänswein escreva que “não tomará nenhuma medida para acelerar um processo de canonização”, seria instrutivo e uma fonte de sabedoria comparar o comportamento de Gänswein – por exemplo – ao do secretário pessoal de João XXIII, monsenhor Loris Capovilla, que exerceu discrição e prudência desde a morte do Papa João até à sua beatificação.
Isso é importante porque apelos para canonizar Bento XVI foram feitos ao mesmo tempo em que uma agenda específica de política doutrinária (especialmente sobre a reforma litúrgica do Vaticano II e a teologia do concílio como um todo) foi avançada pela mesma voz, aumentando assim a relevância político-eclesiástica de uma rápida canonização. Deve ser mencionado aqui que os lamentos sobre a reforma litúrgica do Vaticano II fizeram do Papa Francisco e seu motu proprio Traditionis Custodes um alvo de polêmicas particularmente amargas e divisivas (especialmente nos Estados Unidos, onde moro, trabalho e vou à missa). Essa rixa intraeclesial ainda não se manifestava quando os apelos do “santo súbito” irromperam no funeral de João Paulo II em 2005.
O segundo novo elemento que torna hoje diferente de antigamente é a nova onda na história da crise dos abusos da Igreja. Durante o Grande Jubileu de 2000, o papa pediu perdão pelas falhas da Igreja. Ele não pediu perdão pelo abuso sexual clerical e ninguém percebeu ou reclamou. Isso porque o escândalo global estourou em 2002 com as investigações “Spotlight”, do jornal Boston Globe. No momento da morte de João Paulo II, não houve pedidos da Igreja ou das jurisdições seculares para obter informações sobre como ele agiu em casos específicos. As coisas já eram diferentes quando ele foi beatificado em 2011, quando havia vozes contestando sua santidade, especialmente à luz da crise dos abusos. Desde então, a sombra dessa crise estendeu-se sobre a instituição do papado.
Os esforços do Vaticano para ser mais transparente começaram muito recentemente. Devemos lembrar que o relatório sobre o caso do ex-cardeal Theodore McCarrick foi publicado pela Santa Sé apenas em novembro de 2020. Até o pontificado de Bento XVI, nenhum papa (vivo ou morto) havia acabado nos holofotes. Isso mudou drasticamente nos últimos anos. Em vez disso, a administração da crise agora faz parte da história do pontificado de Bento XVI (especialmente desde 2010) e de sua vida após sua renúncia (o relatório sobre o tratamento de casos de abuso na arquidiocese alemã de Munique e Freising, da qual foi arcebispo entre 1977 e 1981, publicado em janeiro de 2022).
Bento XVI elevou a luta contra o abuso na Igreja a um novo nível, introduzindo procedimentos mais rígidos e novas leis. Ele foi o primeiro papa a se encontrar com sobreviventes de abuso e a tomar medidas contra os agressores. Mas antes de ser eleito papa, ele havia sido arcebispo e também cardeal-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé – CDF do Vaticano por mais de 20 anos. Foi também um período muito difícil para os teólogos e religiosas católicos, muitos dos quais a CDF investigou e até silenciou.
Tudo isso sugere extrema cautela ao abordar a questão da canonização dos papas, também para quem não quer prejudicar o legado e a memória de Joseph Ratzinger-Bento XVI e não quer dar a impressão de encobrimento. Digo isso também como alguém que em 2008 editou a versão italiana de um volume dos ensaios de Bento XVI. Também ministro cursos de teologia onde alguns dos textos de Ratzinger são leitura obrigatória. Este não é um julgamento sobre a santidade de Ratzinger-Bento XVI; é uma questão de oportunidade e necessidade de entender melhor a questão da canonização dos papas (não apenas Bento XVI) na atual situação da Igreja.
Em última análise, devemos valorizar e apreciar a cautela tradicional da Igreja sobre os processos de canonização. Há quase quatro séculos, entre 1628 e 1634, o Papa Urbano VIII decidiu que deveria transcorrer um período de 50 anos após a morte do candidato antes de sua canonização. Foi a reação de Urbano contra uma época em que muitas novas devoções a novos santos estavam surgindo continuamente. É preciso redescobrir a sabedoria daquela antiga norma, principalmente quando se trata da beatificação e canonização dos papas.
Isso é necessário para reduzir a mística do papado no catolicismo contemporâneo. Mas tem a ver também com o fato de que a Igreja precisa de um longo processo de descoberta de fatos sobre o papel do papado e da Cúria Romana na crise dos abusos sexuais, que é o maior escândalo da história moderna da Igreja e a crise mais profunda desde época da Reforma Protestante.