21 Mai 2013
O dia 3 de dezembro de 2013 marca o 50º aniversário da Constituição sobre a Sagrada Liturgia do Concílio Vaticano II (Sacrosanctum Concilium). Como o culto da Igreja tem se saído nesses últimos 50 anos? Os resultados desde o Concílio têm sido bastante mistos.
A análise é do jesuíta norte-americano John F. Baldovin, professor de teologia litúrgica e histórica no Boston College. Seu livro mais recente é a Reforming the Liturgy: A Response to the Critics (Liturgical Press, 2008). O artigo foi publicado na revista dos jesuítas dos EUA, America, 27-04-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O dia 3 de dezembro de 2013 marca o 50º aniversário da Constituição sobre a Sagrada Liturgia do Concílio Vaticano II (Sacrosanctum Concilium). Sendo provavelmente o resultado mais prático desse extraordinário acontecimento na vida da Igreja, a reforma e a renovação da liturgia católica é algo cujo significado ainda está em discussão, como diversos estudos recentes têm mostrado. Como o culto da Igreja tem se saído nesses últimos 50 anos? Os resultados desde o Concílio têm sido bastante mistos.
As muitas disposições da Constituição sobre a liturgia são direcionados para três objetivos principais: 1) a participação plena, consciente e ativa por parte de todos os envolvidos na celebração da liturgia (n. 14); 2) a revisão estrutural dos ritos litúrgicos (nn. 21 e 23); 3) o mais importante, o reconhecimento de que a liturgia é a obra do próprio Cristo e que a própria Igreja é mais plenamente realizada quando se celebra a Eucaristia (nn. 5 a 10).
O primeiro e o terceiro objetivos pertencem um ao outro, já que o documento afirma que a participação plena é parte integrante da liturgia, porque todos os fiéis participam em virtude do seu batismo. Uma profunda teologia da Igreja baseada no batismo e no sacerdócio comum dos fiéis sustenta todo o documento, que o historiador Massimo Faggioli argumentou que não foi adequadamente incorporada nas demais constituições e decretos do Concílio.
A visão teológica do Vaticano II, que por si só foi fruto de mais de um século de retomada histórica (ressourcement) e estudo crítico das liturgias do passado, está muito no centro dos debates sobre a liturgia hoje. Uma das questões urgentes que essa teologia levanta é uma melhor compreensão da relação entre o sacerdócio batismal e o sacerdócio do ordenado.
O segundo objetivo, a revisão estrutural dos ritos litúrgicos, está relacionado com os outros dois. Os autores da Constituição perceberam que os próprios ritos precisavam de revisão, para que o seu significado teológico pudesse ser apreciado novamente. Esse processo tinha sido inspirado pela primeira encíclica litúrgica da era moderna, a Mediator Dei (1947), do Papa Pio XII, e pelo estabelecimento de uma comissão para a reforma litúrgica do ano seguinte.
Alguns resultados já haviam sido percebidos na época do Concílio: a revisão das cerimônias da Semana Santa, o relaxamento das regulações do jejum, a permissão para a missa vespertina e o aumento nas chamadas missas dialogadas, em que as pessoas respondem ao sacerdote (em latim) e cantam partes da missa.
Mas o Concílio tinha em mente uma reforma ainda mais radical que varreria a maior parte dos entulhos que (inevitavelmente) haviam se acumulado ao longo dos séculos e buscaria adaptar a liturgia à cultura contemporânea – contanto que a continuidade orgânica com o passado fosse respeitado (n. 23). A forma real da reforma subsequente e a compreensão da modernidade por parte dos reformadores litúrgicos estavam prestes a se tornar polêmicas.
As reformas: uma análise
Alguns documentos conciliares, como a Sacrosanctum Concilium, precisavam ser complementados por uma maior legislação e aplicação pastoral. A tarefa de dar corpo à estrutura prevista pela Constituição foi dada ao Consilium, um grupo de bispos e consultores especialistas que começou a trabalhar imediatamente. O grande alcance do seu trabalho, concluído em apenas 10 anos, é incrível. Aqui podemos destacar quatro áreas significativas de mudança: o uso da língua vernácula, a reorientação da construção de igrejas, a expansão da participação ministerial e a reestruturação do ano litúrgico.
A consequência mais óbvia da Constituição foi a permissão para usar o vernáculo em certas partes da liturgia eucarística. O Consilium e o próprio Papa Paulo VI rapidamente descobriram que traduzir a totalidade da liturgia em língua vernácula era desejável. Se a participação consciente devia acontecer, essa medida era inevitável. Uma parte integrante da tradução da liturgia era o desejo de abrir o tesouro das Escrituras. O movimento litúrgico e a nova apreciação católica da Bíblia passaram de mão em mão.
Nos últimos anos, temos visto uma luta para encontrar uma linguagem apropriada para a celebração litúrgica. Em inglês, parece que passamos de uma tradução bastante solta e um pouco não inspiradora para um texto que é empolado e cheio de arcaísmos desajeitados (consubstantial, chalice). Podemos esperar que uma tradução futura irá encontrar um meio termo feliz e irá ampliar o corpo das orações com composições originais, como os bispos dos Estados Unidos e outras conferências episcopais haviam proposto com a tradução de 1997 pela Comissão Internacional sobre o Inglês na Liturgia.
Se o uso da linguagem do povo foi a reforma mais significativa inspirada pelo Concílio, o rearranjo do espaço da igreja foi a segunda. Mesmo antes de o Concílio terminar, uma primeira instrução que implementava a reforma determinou que o altar principal de qualquer igreja em que se celebrasse a Eucaristia precisava ser sem encostos, de modo que o padre presidente pudesse ficar do lado voltado para o povo.
O resultado foi uma mudança notável no entendimento popular da liturgia. Agora tornava-se claro que a celebração era comunitária e chamava a uma participação ativa. A mudança, no entanto, trouxe consigo um perigo, por causa do possível foco na personalidade do padre, em vez da própria liturgia.
Um debate vigoroso, estimulado por um movimento muitas vezes referido como a "reforma da reforma", continua. Assim como com a linguagem, é preciso buscar o equilíbrio na arquitetura e nos arranjo da igreja. Algumas das construções de igrejas mais recentes claramente não têm a beleza e a elegância necessárias para o louvor de um Deus que transcende o nosso mundo e que, ao mesmo tempo, habita entre nós.
Outras construções de igrejas que foram projetadas com uma liturgia muito diferente em mente sofreram com renovações fracas e às vezes equivocadas. As comunidades católicas merecem espaços que inspirem a participação consciente plena e ativa, e nos convidem a uma relação mais profunda com o Deus que sempre está além do nosso alcance.
Uma terceira área de reforma é a notável expansão dos ministérios litúrgicos. Devidamente celebrada, a liturgia pós-Vaticano II exige uma série de ministros: diáconos, leitores, acólitos, músicos, servidores e ministros extraordinários da Comunhão. Havia diáconos na antiga missa solene alta antes do Concílio, mas geralmente eram padres que simplesmente vestiam-se como tais.
O Concílio reinstituiu o diaconato permanente, o que tornou possível que homens casados fossem ordenados no rito latino e, mesmo que involuntariamente, abriu a porta para o que agora são chamados de ministros eclesiais leigos, que podem não ministrar no altar, mas se tornaram um parte significativa da paisagem eclesial. A falta de padres assim como a oferta regularmente da Comunhão no cálice levou à necessidade de mais ministros e à instituição de ministros leigos da Comunhão.
O que a legislação oficial ainda considera como extraordinário – os ministros leigos apenas são convocados quando não há padres suficientes disponíveis para distribuir a Comunhão – agora parece normal na maioria das celebrações paroquiais. Os ministros leigos da Comunhão são um elemento simbólico importante no arranjo coordenado dos ministros que a liturgia exige.
Outro aspecto da liturgia que foi mudado significativamente depois do Concílio Vaticano II é o rearranjo do ano litúrgico. O domingo foi restaurado ao seu lugar de honra na celebração cristã, já que é a nossa principal celebração da paixão, morte e ressurreição do Senhor (o mistério pascal). A integridade dos 50 dias da Páscoa foi enfatizada. O número e a classificação dos dias dos santos foram drasticamente reduzidos. A Quaresma agora tem um foco duplo: a iniciação cristã e a renovação dessa iniciação através da penitência.
Junto com a reforma do calendário litúrgico, veio uma abordagem muito mais rica do Lecionário, com um ciclo de três anos de leituras para os domingos e para as grandes festas (incluindo muito mais partes do Antigo Testamento que jamais haviam sido lidas no rito romano) e leituras apropriadas para os dias de semana. Anteriormente, apenas a Quaresma tinha uma série de leituras durante a semana. É claro, na sociedade contemporânea, o calendário litúrgico compete com todos os tipos de outros calendários (educacional, cívico, sazonal), mas ele parece estar trabalhando, mesmo que sutilmente, para formar uma geração de católicos. Só o tempo dirá.
Críticos e desafios
A reforma litúrgica pós-Vaticano II não ocorreu sem seus críticos e seus desafios. O movimento de "reforma da reforma" teve o Papa Emérito Bento XVI como um dos seus paladinos. O Papa Bento XVI encorajou tanto o repensamento da disposição dos espaços da igreja (virando a posição do padre mais uma vez para o "Oriente" – ou seja, de costas para o povo) e um renascimento da liturgia latina pré-Vaticano II, que ele chamou de "forma extraordinária".
O que a princípio parecia ser uma acomodação para uma minoria que desejava celebrar a velha forma parece agora ter se tornado uma tendência crescente, com alguns seminários treinando ativamente os futuros padres para celebrar o rito antigo, e com alguns grupos incentivando ativamente a sua difusão. É muito difícil não considerar esse desdobramento como uma espécie de divisão. Sem dúvida, algumas das raízes do movimento jazem em uma implementação inferior e negligente da reforma litúrgica, uma reforma externa que não foi acompanhada por uma renovação interior.
Por outro lado, a liturgia mais velha é claramente simbólica de uma visão de Igreja, de uma teologia e do mundo dos quais o Concílio Vaticano II conscientemente se afastou em alguns aspectos muito importantes. Não é à toa que os seguidores mais recalcitrantes do arcebispo Marcel Lefebvre, fundador da Fraternidade São Pio X, unem o seu amor à liturgia em latim a uma profunda suspeita, senão negação, da declaração do Concílio sobre a liberdade religiosa e da sua disposição geral de acolher a conversa com o mundo moderno.
Em outras palavras, optar pela liturgia mais velha muitas vezes indica uma rejeição do Concílio Vaticano II e a tudo o que o Concílio trouxe consigo. Como Massimo Faggioli indicou de forma convincente, rejeitar a liturgia que resultou da constituição do Vaticano II é rejeitar o próprio Concílio.
A eleição do Papa Francisco pode muito bem abrir um novo capítulo nos debates pós-conciliares sobre a liturgia. Se as primeiras celebrações litúrgicas do seu pontificado são uma indicação, ele pode, ao menos, temperar o fervor daqueles que têm sido mais críticos às reformas. Suas ações parecem mostrar que ele é favorável à nova liturgia e à sua maior simplicidade.
Assim, a reforma do pós-Vaticano II, provavelmente, vai continuar em ritmo acelerado. Mas, no que diz respeito aos principais objetivos da Sacrosanctum Concilium, a reforma está longe de terminar. Certamente, há um bom número de comunidades católicas em que a visão renovada da liturgia do Concílio tem sido assimilada e celebrada, mas há inúmeras em que a mensagem foi digerida apenas pela metade ou sem uma apreciação profundamente interiorizada das implicações dessa visão.
A tarefa daqui para frente é dupla. Em primeiro lugar, todos os esforços devem ser feitos para assegurar que as nossas celebrações litúrgicas sejam verdadeiramente reverentes. Isso não requer que as liturgias sejam celebradas com coreografias medievais e muita renda; isso significa que elas devam ser cuidadosamente preparadas e celebradas de forma orante. O estilo da liturgia não é de importância primordial. A liturgia pós-Vaticano II pode ser celebrada em qualquer número de contextos culturais, mas o seu denominador comum precisa ser a reverência.
A segunda tarefa é consideravelmente mais desafiadora. Os católicos precisam ser ajudados a compreender mais profundamente e mais explicitamente as conexões entre as suas vidas e o que eles celebram na igreja. Como disse o grande historiador litúrgico contemporânea Robert Taft, SJ, "a liturgia é a vida cristã em poucas palavras". Nada mais, mas também nada menos.
As nossas próprias liturgias, ainda que de uma forma ritualizada, exibem o jeito que somos chamados a viver. Elas são o ápice da vida cristã, assim como a sua fonte. Quando essa realidade entra mais profundamente na consciência católica, alcançaremos, pela graça de Deus, a participação plena, consciente e ativa que o Concílio pediu e estaremos no caminho certo para celebrar mais plenamente o sacerdócio batismal que somos chamados a viver.
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A visão litúrgica do Vaticano II, 50 anos depois. Artigo de John F. Baldovin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU