O poder de morte como lei. Artigo de Raúl Zibechi

Fonte: Pixabay

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22 Setembro 2025

“Penso que neste período decadente de sistema-mundo centrado no Ocidente, fica evidente como o capitalismo se tornou um sistema que fez da violência sua razão de ser, porque é a maneira de estender seu domínio sobre os seres humanos e a natureza. Portanto, o problema é o sistema, independentemente de quem faça a sua gestão.”, escreve Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por La Jornada, 19-09-2025. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

“A lei não funciona”, afirma Rita Segato, em entrevista recente ao filósofo Martin Gak. Na interação social, diz a pensadora feminista, algumas coisas podem acontecer e outras não, mas “o caso de Gaza demonstra a absoluta obsolescência da lei. Este é um momento da história em que se registra um comportamento não regido pelo direito”.

Como em ocasiões anteriores, disse que não somos mais humanos e, diante daqueles que não concordam, responde que vivemos “uma ruptura da fé, porque hoje a regra é o poder de morte”. Hoje, superou-se o que é permitido ou não fazer, “nunca se tinha visto o poder letal se tornar lei”.

Segato argumenta que o que vemos em Gaza nos remete às barbáries genocidas da Conquista, do Holocausto e do tráfico de escravos, com suas milhares de vítimas.

Durante anos, Segato se dedicou a compreender a violência de gênero, sobretudo seu caráter expressivo: crimes horríveis para ser expostos como lição e advertência. “A diferença que vejo em relação aos casos anteriores de genocídio é a exibição do poder de morte. Perdeu-se todo o pudor, e a Comunidade Europeia não parece se incomodar em estar assistindo ao extermínio de um povo, essa aceitação do poder de morte como lei, contemplado mesmo por democracias que se orgulham do que são”.

“Este é um divisor de águas”, continua. “A história que conhecíamos acabou, e o esforço que fazemos é para entender que precisamos até mesmo cunhar um novo vocabulário, porque o que conhecíamos acaba de terminar. Portanto, a luta por uma sociedade melhor, os slogans, tudo isto perdeu significado diante do que acontece em Gaza, até mesmo os projetos históricos. Não há mais diferenciação entre o que vai bem e o que vai mal”.

Não é a primeira vez que Segato defende essas ideias, embora desta vez tenha ido mais longe, destacando o colapso das ideias e propostas emancipatórias, bem como “das regras que estabelecem limites e dão forma ao comportamento humano” nas relações entre as pessoas e as nações. “Onde isso vai parar?”, pergunta-se.

Certamente, estamos diante do fim de uma era. Cedo ou tarde, Gaza seremos todos e todas nós. “Qualquer povo pode ser atingido pelo extermínio, como os palestinos desde 1948. A Palestina é o eixo do mundo, o epicentro da história”. O genocídio é uma dor insuportável, a ponto de Segato afirmar: “Prefiro morrer a ver o que estou vendo”, porque talvez não seja mais possível sair deste buraco da história.

Como em muitos outros aspectos, simpatizo-me com a indignação de Rita Segato, particularmente com sua afirmação de que “o poder de morte agora é a lei”. Suas dúvidas sobre se vale a pena fazer parte desta humanidade, “o gozo perverso de exercer o poder de morte”, são inteiramente compatíveis. Em um ponto, no entanto, penso que devemos debater. Como acontece com tantos e tantas intelectuais, abre-se uma bifurcação quando abordamos os caminhos a seguir, o que fazer diante da barbárie capitalista. “O caminho é buscar um lugar onde se possa ser otimista”, diz Rita ao final da entrevista.

Esse lugar existe, Rita, esse lugar são os caracóis em Chiapas e a extensa rede de governos autônomos locais que o zapatismo estabeleceu. Não é o único, é claro, mas é o movimento que mais avançou na construção de uma outra sociedade, baseada nas autonomias de baixo, onde não se registra feminicídios.

Posso acrescentar alguns territórios do povo mapuche, dos garífunas de Honduras, nasa e misak do Cauca colombiano; os governos territoriais autônomos amazônicos no norte peruano, as dezenas de demarcações territoriais autônomas na Amazônia brasileira e muitas outras experiências, tanto no México quanto em toda a América Latina. Todas são muito diferentes entre si, mas a orientação autônoma as transforma em espaços de liberdade.

Por último, a necessária indignação diante do genocídio do povo palestino não pode nos fazer esquecer os 150.000 desaparecidos no México “democrático” e as centenas de milhares de assassinados no contexto da “guerra contra as drogas”. Em toda a região latino-americana, todos os anos, são registrados milhares de crimes do capitalismo, com governos conservadores e progressistas, sem que façam nada para evitá-los.

Penso que neste período decadente de sistema-mundo centrado no Ocidente, fica evidente como o capitalismo se tornou um sistema que fez da violência sua razão de ser, porque é a maneira de estender seu domínio sobre os seres humanos e a natureza. Portanto, o problema é o sistema, independentemente de quem faça a sua gestão. É claro que Netanyahu e Trump são os expoentes máximos da política genocida. Não podemos esquecer que não existe mais capitalismo “bom”, como alguns progressistas disseram. Somente as autonomias são capazes de resistir construindo vida.

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