28 Julho 2025
“Diante de uma civilização que persiste em caminhar para um colapso induzido por sua própria lógica de expansão ilimitada, o Sul Global não apenas denuncia a desapropriação, mas também articula alternativas civilizacionais. O desafio não é como tornar o capitalismo mais verde, mas como desmantelar o modelo que pôs em risco a continuidade da vida”. A reflexão é de Alfonso Insuasty Rodríguez, em artigo publicado por Desinformémonos, 24-07-2025. A tradução é do Cepat.
Alfonso Insuasty Rodríguez é professor pesquisador da Universidade de San Buenaventura, Medellín, Colômbia, mestre em Ciência, Tecnologia, Sociedade e Inovação (ITM). Integra a equipe de coordenação da REDIPAZ (Rede Interuniversitária pela Paz) e é membro do grupo autônomo Kavilando.
A crise climática forçou as potências globais a redesenhar seu modelo energético sob o pretexto da sustentabilidade. No entanto, essa transição para fontes de energia mais limpas não significou uma ruptura com a lógica predatória do capitalismo global, mas acima de tudo sua reconfiguração.
Em nome do combate às mudanças climáticas, uma nova onda de extrativismo se expande, marcada pela demanda exponencial por minerais considerados críticos para o desenvolvimento de tecnologias renováveis, como painéis solares, turbinas eólicas e baterias. Essa ofensiva, impulsionada por instituições financeiras internacionais como o Banco Mundial e legitimada por uma narrativa tecnocrática e ambientalista, transformou os territórios do Sul Global em epicentros de uma nova febre extrativista.
O dia 24 de julho de 2025 representou um marco alarmante: o Dia da Sobrecarga da Terra. Desde então, a humanidade começou a consumir recursos naturais além da capacidade regenerativa do planeta para o ano em curso. Esse indicador, calculado pela Global Footprint Network, ilustra de forma contundente o fracasso de um modelo civilizacional que separou o crescimento econômico da sustentabilidade ecológica. Estamos consumindo a tal ritmo que hoje precisamos de 1,8 planeta Terra para sustentar esse apetite, e estamos operando “no vermelho”. Essa realidade está causando uma perda massiva de biodiversidade, o colapso dos ecossistemas, a intensificação de eventos climáticos extremos e o agravamento das crises sociais e econômicas.
Longe de ser um efeito colateral do progresso, é uma expressão da racionalidade ocidental moderna, sustentada pela exploração ilimitada dos bens comuns globais e pela negação de quaisquer limites naturais ou sociais à sua expansão. É também a consequência de uma estrutura econômica global que externaliza os custos ambientais para os países do Sul Global, deslocando a degradação ecológica e o sacrifício de populações inteiras para as margens do sistema.
O relatório Minerais para a ação climática: a intensidade mineral da transição para a energia limpa (Banco Mundial, 2020), por sua vez, reconhece explicitamente que a transição energética implica um aumento significativo na demanda por minerais como cobre, alumínio, lítio, níquel e cobalto. Embora essas tecnologias reduzam as emissões do consumo de energia, sua produção gera uma nova forma de extrativismo intensivo, com impactos ecológicos e sociais nada desprezíveis, especialmente nos países produtores do Sul Global.
Embora o Banco Mundial promova uma “mineração inteligente em termos climáticos” baseada na eficiência, inovação e mitigação ambiental, o modelo de extração dominante continua a servir aos interesses corporativos e a responder a um padrão de acumulação por desapropriação. A extração de lítio na Argentina, Bolívia e Chile – o chamado “triângulo do lítio” – deixou em seu rastro a destruição de áreas úmidas, a superexploração de aquíferos e a expropriação sistemática de comunidades indígenas. Essa forma de “progresso” esconde um paradoxo: a transição ecológica do Norte baseia-se no sacrifício ambiental do Sul.
A pesquisa publicada pelo Centro Delàs de Estudos para a Paz (2025), Informe 73: Da mina ao campo de batalha, examina a crescente preocupação das potências do Norte global com a dificuldade de acesso a matérias-primas críticas para a transição energética e o desenvolvimento de tecnologias emergentes. À tradicional dependência do petróleo soma-se agora uma nova vulnerabilidade estratégica: o acesso a recursos minerais considerados essenciais não apenas para a economia, mas também para a segurança e a defesa militar.
O informe observa que países como China e Rússia controlam reservas importantes e boa parte do suprimento global de minerais como grafite, terras raras, alumínio, níquel e titânio. Este cenário tem despertado o alarme entre as potências ocidentais, que percebem isso como uma ameaça à sua autonomia tecnológica e militar, desencadeando uma disputa silenciosa, porém intensa, pelo controle de regiões ricas nesses recursos. As consequências são múltiplas: riscos de rupturas nas cadeias de suprimentos, aumento da concorrência geoeconômica e potencial escalada de conflitos armados, visto que o suprimento desses materiais se tornou uma questão de segurança nacional.
Em resposta, os Estados Unidos e a União Europeia começaram a implementar uma série de estratégias voltadas para a diversificação de suas fontes de suprimento e o fomento da produção nacional. Essas estratégias incluem políticas públicas, investimentos diretos, alianças com países terceiros e um aumento descontrolado da militarização de territórios estratégicos para o transporte de minerais, com o objetivo de garantir o acesso a esses minerais estratégicos.
Essa corrida por recursos críticos tem intensificado a pressão sobre territórios localizados principalmente no Sul Global, muitos dos quais caracterizados por alta vulnerabilidade política e social, como é o caso da República Democrática do Congo. A extração desses minerais frequentemente acarreta sérios impactos ambientais, bem como violações sistemáticas de direitos humanos, agravamento das desigualdades, deslocamento forçado e degradação dos ecossistemas.
A urgência em assegurar o controle desses recursos levou a práticas extrativas agressivas e mal regulamentadas, que perpetuam padrões coloniais de dependência e minam os esforços para alcançar o desenvolvimento sustentável e autônomo nessas regiões.
Nesse contexto, a crescente privatização e o controle transnacional dessas matérias-primas reforçam a lógica da subordinação, consolidando estruturas de poder assimétricas que impedem a autodeterminação dos povos sobre seus territórios e recursos.
A disputa por minerais estratégicos, longe de ser meramente uma questão econômica ou tecnológica, revela uma profunda luta geopolítica por hegemonia e o controle sobre futuros possíveis.
O recente relatório do Oakland Institute (Climatewash. The World Bank’s Fresh Offensive on Land Rights, 2025) mostra como o Banco Mundial intensificou seu envolvimento em projetos de formalização de terras, supostamente para fortalecer a resiliência climática e promover investimentos sustentáveis. No entanto, na prática, essa política serviu para legalizar a apropriação de terras comunais e ancestrais, facilitando sua transferência para empresas transnacionais em setores como a mineração, o agronegócio e as energias renováveis.
Na Argentina, o relatório documenta como projetos de mineração de lítio, financiados multilateralmente, operam em territórios habitados por povos indígenas sem consulta livre, prévia e informada. A recente reforma constitucional em Jujuy restringiu direitos fundamentais como protestos e reivindicações de terras, enfraquecendo ainda mais os direitos das comunidades afetadas.
Esta lógica de desapropriação não é nova. Já com o programa Enabling the Business of Agriculture (EBA), o Banco Mundial promovia indicadores que incentivavam a privatização de terras públicas e comunais em nome da “eficiência produtiva”. Conforme documentado pelo Observatório Kavilando (2022), essa política permitiu que terras habitadas por comunidades camponesas e indígenas fossem classificadas como “baldias” ou “subutilizadas”, abrindo caminho para a sua incorporação ao mercado global de alimentos e, agora, à indústria da energia verde.
Assim, organizações como o Banco Mundial atuam como braços técnicos e financeiros dessa lógica, criando condições jurídicas, políticas e econômicas para facilitar o avanço de interesses corporativos e geoestratégicos em nome do desenvolvimento.
Não se trata de uma transição pós-extrativista, mas de uma reconfiguração da economia global que aprofunda as desigualdades coloniais. As soluções tecnológicas propostas pelos países do Norte baseiam-se na expansão extrativista realizada sobre corpos, territórios e ecossistemas do Sul.
O acesso a lítio, cobre e outros minerais críticos tornou-se uma prioridade geoestratégica para os países industrializados. Como indica a Agência Internacional de Energia (AIE, 2023), a demanda por lítio deverá aumentar em mais de 4.000% até 2040. Esse ritmo de extração é incompatível com a regeneração natural dos ecossistemas e com o respeito aos direitos das comunidades afetadas.
Diante disso, a crítica não deve ser dirigida apenas aos efeitos da transição energética, à ascensão da militarização e ao controle extrativista de regiões estratégicas, mas também à racionalidade que os sustenta: um paradigma tecnocrático, centrado no crescimento ilimitado, que reproduz a ideia de que a crise climática pode ser resolvida com mais tecnologia, mais mercados e mais consumo verde. Trata-se de um modelo que busca evitar qualquer questionamento ao padrão civilizacional ocidental que nos levou ao colapso.
Esta convergência entre o agronegócio, a apropriação de terras e a exploração de minerais estratégicos coloca a América Latina, a África e a Ásia no epicentro de uma nova onda de recolonização. Em jogo estão a segurança alimentar e energética, a soberania dos povos, o equilíbrio ecológico planetário e, em última análise, a própria possibilidade de construir modos de vida e sociedades que se desviem do modelo civilizacional dominante.
Diante desse cenário de acumulação por desapropriação, é urgente repensar criticamente os marcos do desenvolvimento, desmantelar a narrativa tecnocrática da “neutralidade financeira” e denunciar o papel das instituições multilaterais como mecanismos funcionais ao controle neocolonial. Os povos do Sul Global não podem mais ser concebidos como meros reservatórios de recursos para sustentar o consumo e a segurança das potências do Norte, mas como territórios vivos, históricos, culturais e políticos, com seus próprios projetos de futuro.
Desses territórios emergem vozes, resistências e propostas que não só desafiam o modelo extrativista, como também abrem caminhos para outras formas de habitar o mundo. As cosmovisões indígenas, camponesas e afrodescendentes oferecem bases sólidas para uma transição verdadeiramente justa: o respeito à Mãe Terra, a reciprocidade, a defesa dos bens comuns, a regeneração do tecido comunitário e a soberania alimentar e energética como pilares de um novo horizonte ético-político.
Essas propostas não se baseiam na lógica da dominação, da acumulação ou da extração, mas em princípios de interdependência, cuidado e equilíbrio. Uma transição energética não é viável sem uma transição epistêmica: isto é, o reconhecimento e a valorização de saberes, práticas e ontologias historicamente invisibilizadas pela modernidade capitalista e colonial.
Diante de uma civilização que persiste em caminhar para um colapso induzido por sua própria lógica de expansão ilimitada, o Sul Global não apenas denuncia a desapropriação, mas também articula alternativas civilizacionais. O desafio não é como tornar o capitalismo mais verde, mas como desmantelar o modelo que pôs em risco a continuidade da vida.
Nesse sentido, o direito a uma Paz Rebelde – não domesticada nem subordinada – implica frear o avanço de conglomerados que saqueiam e destroem territórios e fortalecer projetos de vida baseados na autodeterminação, na justiça ecológica e na soberania epistêmica. É a partir daí, da dignidade insurgente dos povos, que um mundo verdadeiramente habitável pode começar a tomar forma.