17 Julho 2025
"Que o Parlamento do Brasil de 2025 se comprometa com as atuais e futuras gerações e abandone – não chegue sequer à votação! – o PL 2159/2021, PL da Devastação"
O artigo é de Ana Paula Daltoé Inglêz Barbalho e José Geraldo de Sousa Junior, publicado por Jornal Brasil Popular/DF, 16-07-2025.
Ana Paula Daltoé Inglêz Barbalho é ouvidora Pública do Serviço Florestal Brasileiro, advogada e bióloga pela Universidade de Brasília, Presidente da Comissão Justiça e Paz de Brasília.
José Geraldo de Sousa Junior é jurista, Professor Emérito da Universidade de Brasília (UnB), fundador e coordenador do grupo de pesquisa “O Direito Achado na Rua”. Foi reitor da UnB (2008/2012), membro da Comissão Justiça e Paz de Brasília.
“O único Deus criou todas as coisas com amor infinito e deu-nos a vida: por esta razão, São Francisco de Assis chama as criaturas de irmão, irmã e mãe. Somente um olhar contemplativo pode mudar a nossa relação com as coisas criadas e tirar-nos da crise ecológica que, devido ao pecado, tem como causa a ruptura das relações com Deus, com o próximo e com a terra” (cf. Papa Francisco, Carta Enc. Laudato si’, 66). [1;2]
Na quarta-feira, 9 de julho de 2025, o Papa Leão XIV, em sua homília durante a missa pelo cuidado da criação celebrada no Burgo Laudato si’ do Castel Gandolfo, citou a Laudato si e acrescentou que é urgente cuidar da casa comum. O Papa Leão XIV se referiu ao espaço aberto como catedral simbólica, da própria natureza, comparando o Burgo às antigas igrejas dos primeiros séculos. O Santo Padre fez um apelo à conversão:
“Devemos rezar pela conversão de muitas pessoas, dentro e fora da Igreja, que ainda não reconhecem a urgência de cuidar da casa comum.”
“Inúmeros desastres naturais que ainda vemos no mundo quase todos os dias em muitos lugares e em muitos países, são em parte causados pelos excessos do ser humano, com o seu estilo de vida. Por isso, devemos perguntar-nos se nós mesmos estamos a viver ou não essa conversão: quanto ela é necessária!” [3]
Duas semanas antes, o Senado Federal aprovava um projeto que representa um dos maiores desafios do Brasil na trajetória de proteção ao meio ambiente. O Projeto de Lei 2159/2021, que trata da flexibilização do licenciamento ambiental, está na pauta dessa semana no Plenário da Câmara dos Deputados. O Projeto de Lei 2159/2021 originalmente buscava criar uma Lei Geral do Licenciamento Ambiental que uniformizasse e atualizasse as normas para o licenciamento de empreendimentos que utilizam recursos naturais ou podem causar impacto ambiental. Popularmente, o PL 2159/2021 ficou conhecido como PL da Devastação.
O Projeto de Lei 2159/2021, em 21 de maio de 2025, teve sua trajetória legislativa encerrada no Senado Federal recebendo 54 votos a favor e 13 contrários à aprovação, com destaque para atuação expressiva do Partido dos Trabalhadores que unificou os votos da bancada na tentativa de impedir o retrocesso ambiental. Antes, tramitou por Comissões com votações simbólicas – sem que houvesse o necessário debate na casa revisora.
O PL da Devastação foi enviado pela Câmara dos Deputados ao Senado Federal após conturbado processo legislativo. O texto recebido pelo Senado Federal já era considerado ruim, pois propunha o enfraquecimento de instrumentos essenciais da política nacional do meio ambiente, especialmente os mecanismos de controle e prevenção de danos ambientais pela flexibilização das regras de licenciamento ambiental, incluindo a possibilidade de autolicenciamento por parte das empresas, sem qualquer tipo de análise técnica de órgãos competentes. O projeto contou com forte apoio do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), e teve como relatora a senadora Tereza Cristina (PP-MS), conhecida por sua ligação com o agronegócio. Saiu do Senado Federal com 93 emendas que tornaram o texto ainda pior – um verdadeiro desastre para a população brasileira [4;5].
É interessante observar que parlamentares que sistematicamente se opõem aos preceitos do Ensino Social da Igreja são parte da Frente Parlamentar Católica Apostólica Romana. A Senadora Tereza Cristina (PP-MS) e o Deputado Ricardo Salles (Novo-SP) são membros da Frente [6].
Antes da primeira aprovação na Câmara dos Deputados, o relatório do PL 2159/2021 havia sido construído em consenso da negociação política após intensos debates. Em sua 3ª versão do relatório na Câmara dos Deputados, havia relativa acomodação das demandas e um acordo político para aprovação. O texto do 3º Relatório do Deputado Kim Kataguiri (União-SP) foi modificado após reuniões com a Confederação Nacional das Indústrias (CNI) tornando-se atentatório ao próprio federalismo brasileiro [7].
No texto em discussão do PL 2159/2021, os municípios não têm qualquer tipo de competência para restringir empreendimentos e sequer opinam sobre o local de implementação do empreendimento. Para sermos mais concretos, um posto de gasolina não precisará mais de licenciamento ambiental prévio nem consulta à sociedade. Bastará um cadastro do empreendedor e a garantia dele mesmo de que segue as regras. Inclusive o próprio empreendedor vai garantir que o posto de combustíveis não está próximo de uma escola. Se for uma exploração de mineração a situação é absurda: o PL da Devastação é tão grave que pode legalizar o “jeitinho brasileiro” para forçar a regularização de empreendimentos poluidores, sujeitando a população a situações de desastres ambientais. Empreendimentos de mineração de vários tipos estarão isentos de licenciamento. A raposa declarando que é vegetariana [8].
O estabelecimento da Licença por Adesão e Compromisso (LAC), que dissemina o autolicenciamento, inclusive para empreendimentos de médio impacto, e a Licença Ambiental Especial (LAE), que dá tratamento político a projetos escolhidos como “prioritários” por um conselho sem a devida qualificação técnica do projeto, concedendo a licença de maneira acelerada e a despeito de potenciais danos ao meio ambiente. A consulta prévia a povos indígenas e comunidades tradicionais também é excluída. Pior: retira a proteção de territórios indígenas e quilombolas ainda em processo de demarcação [9].
O PL da Devastação recebeu críticas veementes de especialistas, ambientalistas e do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima [10;11;12;13;14;15;16;17;18].
A própria Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) emitiu nota pública denunciando o Projeto de Lei 2159/2021 como um “grave retrocesso” e “desmonte” do sistema de licenciamento no Brasil. A nota afirma que a proposta legislativa fragiliza os instrumentos de controle e de prevenção de danos socioambientais, atacando a Constituição, os territórios indígenas e o meio ambiente. A CNBB criticou a possível mercantilização dos territórios e seus bens, defendendo uma liderança em favor da proteção do futuro.
“O que se aprova, na prática, é a institucionalização da flexibilização dos mecanismos de proteção da vida, das águas, das florestas e dos povos originários”, afirma a nota assinada pela presidência da CNBB [19].
O Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima divulgou nota, em 21 de maio, condenando o PL por representar “um risco à segurança ambiental e social no país”. “O texto também viola o princípio da proibição do retrocesso ambiental, que vem sendo consolidado na jurisprudência brasileira, segundo o qual o Estado não pode adotar medidas que enfraqueçam direitos”, afirma a nota [20].
O Observatório do Clima definiu que este é “o maior ataque à legislação ambiental das últimas quatro décadas”, a menos de seis meses da COP30, a Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, marcada para novembro, em Belém (PA) [21].
Estudo do Instituto Socioambiental (ISA) indica que áreas protegidas da Amazônia Legal serão diretamente impactadas, desprotegendo cerca de 18 milhões de hectares de floresta” [22].
Após a aprovação pelo Senado, muitos atos públicos aconteceram em todo território nacional no dia 01 de junho, domingo [23; 24].
A Nota Pública dos Franciscanos Capuchinhos do Brasil sobre a gravidade do Projeto de Lei nº2159/2021, publicada em 20 de junho de 2025, denuncia o PL e exorta “reiteramos o nosso compromisso no cuidado com a Casa Comum, expressão de nosso carisma franciscano-capuchinho, que se reflete também na garantia de leis justas, que preservem o meio ambiente e a integridade da criação e, assim, que este Projeto de Lei não seja aprovado.” [25].
Em 07 de julho de 2025, nosso tradicional Diálogos de Justiça e Paz, promovido pela Comissão Justiça e Paz de Brasília em parceria com a Comissão Brasileira de Justiça e Paz, com o Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida – OLMA, com o Centro Cultural de Brasília, com os Jesuítas do Brasil, com o Capítulo Brasileiro do Comitê Pan-Americano de Juízes e Juízas para os Direitos Sociais e a Doutrina Franciscana – COPAJU Brasil, e com o Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados (SJMR), teve como tema “Ecologia Integral e o PL da Devastação: como o cristão deve se posicionar?”. Inspirado pela Encíclica Laudato Si’, que completou 10 anos em 2025 e fundamenta a Campanha da Fraternidade 2025, o encontro teve como convidados o Pe. Jean Poul Hansen, Secretário Executivo de Campanhas da CNBB e coordenador da CF 2025, o Deputado Federal Nilto Tatto (PT-SP), Coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista no Congresso Nacional e referência na defesa das políticas socioambientais; com mediação da Dra. Ananda Tostes Isoni, Juíza do Trabalho, pesquisadora em direitos sociais e ambientais, coordenadora do COPAJU Brasil e gestora do Programa Trabalho Seguro no Tribunal Superior do Trabalho.
O encontro nos convocou a refletir profundamente sobre nosso papel diante da crise ambiental e foi um verdadeiro chamado à consciência e à ação contra o PL 2.159/2021 – “PL da Devastação”. O Pe. Jean Poul Hansen lembrou que a crise ambiental não é apenas técnica ou política, mas um drama ético, humano e espiritual. Nos relembrando o chamado à conversão ecológica e à vivência de uma espiritualidade que defenda os biomas, os pobres e as futuras gerações. O Deputado Nilto Tatto relatou o histórico do projeto e denunciou os perigos reais do PL da Devastação, que desmonta os mecanismos de proteção ambiental, favorecendo interesses econômicos imediatistas e silenciando comunidades impactadas. “Precisamos de mobilização e pressão social para barrar esse retrocesso!”, afirmou. A Dra. Ananda Tostes Isoni fez um alerta importante lembrando que não há justiça social sem justiça ambiental. Ela destacou os impactos diretos do desmonte ambiental sobre povos indígenas, trabalhadores rurais e populações vulnerabilizadas. O Diálogos de Justiça e Paz pode ser acessado na íntegra [26].
A Associação Nacional de Municípios e Meio Ambiente – ANAMMA manifestou formalmente que o PL precisa reduzir insegurança jurídica, atrair investimentos com critérios claros, respeitar o federalismo cooperativo e a gestão democrática das cidades durante a participação da Assessora Jurídica Andréa Struchel na Audiência Pública ocorrida em 10 de julho de 2025 na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, sobre impactos e riscos do projeto de licenciamento ambiental (PL 2159/21). Afirmam que o PL 2.159/2021, na forma atual, pode trazer prejuízos ao Sistema Nacional de Meio Ambiente e aos municípios. O projeto visa estabelecer normas gerais para o licenciamento ambiental, mas precisa de cerca de 40 ajustes, segundo o governo federal e entidades ambientalistas [27].
São pontos defendidos pela ANAMMA: o fortalecimento do Licenciamento Ambiental, com respeito à autonomia municipal e clareza nas competências dos 5.570 municípios; a preservação da Participação Social, o licenciamento deve garantir voz aos conselhos ambientais, especialmente os municipais, a competência federativa deve ser respeitada e um risco iminente, proposto pelo art. 16 do PL, que elimina a certidão de uso do solo municipal, que fere a Constituição de 1988 e a LC 140/2011. A Audiência pode ser assistida na íntegra [27].
Em 12 de julho, na Prelazia de Tefé/AM, aproximadamente mil pessoas que participavam da VI Assembleia das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) aprovaram carta pública de denúncia e apelo ao povo brasileiro e aos parlamentares contra o Projeto de Lei 2.159/2021 – PL da Devastação. Intitulada “Carta do povo de Deus na Amazônia para todos os brasileiros: Apelo pela Vida, pela Casa Comum e contra o PL da Devastação”, a carta denuncia o PL da Devastação e sua grave ameaça à Amazônia, à biodiversidade e aos direitos dos povos originários e comunidades tradicionais.
“Aceitar o PL da Devastação é trair o sonho de Deus para a humanidade e legitimar um modelo de desenvolvimento que expulsa povos, envenena rios e devasta a Casa Comum.”
Para Dom Altevir, Bispo da Prelazia de Tefé, a carta “tem um sentido muito profético; ela deve ser, realmente, uma voz profética desse povo que chegue aos ouvidos e, quem sabe, aos corações de pessoas de boa vontade, que possam realmente unir-se a nós nesta luta pela defesa do ser humano e da nossa Casa Comum”. O texto reafirma a espiritualidade ecológica inspirada pelo Papa Francisco, pela encíclica Laudato Si’, e pela recente mensagem do Papa Leão XIV para o Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação, que alerta para os impactos da crise climática sobre os mais vulneráveis [28].
No dia 13 de julho, domingo, atos contra o PL da Devastação ocorreram em 20 capitais e em outras cidades brasileiras. As mobilizações são orgânicas, lideradas por pessoas da sociedade civil organizada, suprapartidárias e financiadas com recursos próprios [29; 30; 31; 32].
O site https://pldadevastacao.org/ concentra esforços de pressão especialmente sobre o presidente da Câmara, Deputado Hugo Motta (Republicanos-PB) na forma de formulário que envia um e-mail direto pleiteando que o PL da Devastação não seja votado. Até 16 de julho de 2025, 162.630 pessoas já haviam pressionado contra o PL da Devastação e segue aberto para pressão [33].
Na Carta Apostólica de 17 de agosto de 2016, em forma de "Motu Proprio", o Papa Francisco instituiu o Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, confluindo as competências do Pontifício Conselho Justiça e Paz, do Pontifício Conselho “Cor unum”, o Pontifício Conselho para Pastoral dos Migrantes e Itinerantes e o Pontifício Conselho para Pastoral no Campo da Saúde [34].
O Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral atua nas áreas relacionadas com as migrações, com os necessitados, os enfermos e excluídos, os marginalizados e as vítimas dos conflitos armados e desastres naturais, os encarcerados, os desempregados e as vítimas de qualquer forma de escravidão e de tortura. Essas competências se traduzem essencialmente em garantia dos direitos humanos, justiça e paz, defesa do meio ambiente e saúde.
O Papa Francisco, depois de experienciar os naufragados de Lampedusa, os refugiados dos conflitos, os exilados da crise climática, une, de maneira profética os esforços da justiça, da paz e da proteção da criação e nos conclama a entender o desenvolvimento sustentável na perspectiva do desenvolvimento humano integral:
“Em todo o seu ser e obrar, a Igreja está chamada a promover o desenvolvimento integral do homem à luz do Evangelho. Este desenvolvimento tem lugar mediante o cuidado dos bens incomensuráveis da justiça, da paz e da proteção da criação.”
Para o advogado e professor Melillo Dinis, na condição exclusiva de assessor da Rede Eclesial Pan-Amazônica – Repam Brasil, e também como membro do Grupo de Análise de Conjuntura Social Padre Thierry Linard da CNBB:
“O PL que muda a forma do licenciamento ambiental é um grave ataque aos direitos humanos e socioambientais, em especial dos povos e dos territórios amazônicos. Representa uma tentativa de retrocesso ambiental, tanto no campo das políticas públicas de proteção e conservação do meio ambiente, do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, na forma da Constituição Federal. O quadro, em caso de aprovação do PL, é indicativo de cenário grave de judicialização das medidas, tanto no STF como em todo o poder Judiciário”.
O texto do PL da Devastação retornou do Senado Federal e, como teve emendas, necessariamente tem de ser apreciado novamente na Câmara, para votação das emendas. Caso aprovado, pode ainda ser vetado pelo presidente Lula. O projeto está pautado para votação na Câmara dos Deputados nesta quarta-feira, 16 de julho de 2025, na última semana de atividade parlamentar antes do recesso, quando muitos deputados já estão em seus estados. A discussão tende a ser esvaziada em uma votação híbrida e a decisão de pautar a votação do PL 2159/2021 nesta semana é uma iniciativa de passar a “boiada das boiadas”: o Brasil precisa de coragem para enfrentar uma ameaça que afeta toda a sociedade! [35]
Que o Parlamento do Brasil de 2025 se comprometa com as atuais e futuras gerações e abandone – não chegue sequer à votação! – o PL 2159/2021, PL da Devastação.
[7] https://legis.senado.leg.br/atividade/comissoes/comissao/2696/composicao
[8]https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2508543; https://www.congressoemfoco.com.br/noticia/104863/especialistas-criticam-relatorio-ao-projeto-de-licenciamento-ambiental
[12] https://apublica.org/2025/07/pl-do-licenciamento-quer-levar-brasil-para-1960-diz-feldmann/
[14] https://radis.ensp.fiocruz.br/reportagem/meio-ambiente/entenda-o-chamado-pl-da-devastacao/
[16] https://www.oc.eco.br/nota-tecnica-detalha-desmonte-do-licenciamento-ambiental-no-senado/
[21] https://www.oc.eco.br/nota-tecnica-detalha-desmonte-do-licenciamento-ambiental-no-senado/
[24] https://climainfo.org.br/2025/06/02/mobilizacao-contra-pl-da-devastacao-preve-novos-protestos/
[26] https://www.youtube.com/live/44jm_T9xSfU?si=v2MS3FRzMcYTrDjr
[27] https://www.camara.leg.br/evento-legislativo/76778
[33] https://pldadevastacao.org/