“Precisamos de um novo retrato da humanidade”. Entrevista especial com Kate Raworth

Países não podem se desenvolver economicamente excedendo os limites planetários, diz a economista

Foto: Unsplash

06 Junho 2025

Qual é a finalidade da economia? As teorias econômicas formuladas para responder a esta e outras perguntas frustraram a economista Kate Raworth, autora de Doughnut Economics: Seven Ways to Think Like a 21st-Century Economist (Chelsea Green, 2018). Segundo ela, o objetivo da economia “nunca foi discutido explicitamente, mas está na fala de cada político e no conselho de cada economista: é o crescimento infinito, não importa quão rico seja um país”. Além disso, pontua, as teorias econômicas fundamentam-se em uma visão antropológica unilateral, que fomenta a acumulação e não a redistribuição do capital. “Um homem, sozinho, com dinheiro na mão, ego no coração, uma calculadora na sua cabeça e a natureza aos seus pés. Ele odeia trabalhar, mas adora luxo. Ele sabe o preço de tudo e nada é suficiente para ele. Essas são as características dadas à humanidade nas teorias econômicas. Mas se realmente pensarmos que somos assim, não teremos chances de prosperar juntos em oito bilhões de pessoas que vivem no planeta. Nós precisamos de um novo retrato da humanidade”, assegura.

Kate Raworth propõe um novo paradigma econômico para o século XXI, chamado de economia donut. O modelo visa atender as necessidades sociais da população, garantido a sobrevivência do planeta. “O objetivo não é o crescimento infinito medido em valor financeiro, mas, sim, ter equilíbrio entre a base social e a ecologia”, explica.

Para a economista, o modelo donut sustenta-se em outra visão antropológica, fundamentada nas teorias biológicas evolucionistas. “Os biólogos evolucionistas dirão que os humanos são os mais sociais de todos os mamíferos. Nós sabemos como cooperar e trocar. Nós nos unimos e castigamos e temos regras sociais muito sofisticadas. Por isso, podemos viver em cidades, em nações, e colaborar. (…) Nós podemos seguir um conjunto de princípios que nos permite trabalhar e cooperar juntos e nos certificar de que não somos enganados pelas pessoas que querem dominar os outros”.

Kate Raworth participou do Ciclo de estudos: Futuro Comum. Ideias para adiar o fim do mundo, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Na videoconferência “Economia Donut. Como superar paradigmas ultrapassados”, ministrada em 08-05-2025, a economista apresenta exemplos de iniciativas desenvolvidas em várias partes do mundo, nas quais a economia donut tem sido aplicada. Os projetos locais, menciona, ilustram a possibilidade de “deixar para trás a economia do século XX e substituí-la pela economia do século XXI, que começa com a economia inserida no mundo vivo”.

A seguir, publicamos a conferência de Kate Raworth e as perguntas formuladas pelos participantes do evento no formato de entrevista.

Kate Raworth (Foto: Bret Hartman | TED)

Kate Raworth leciona no Environmental Change Institute, da Universidade de Oxford, onde é pesquisadora visitante, e no programa Economics for Transition, no Schumacher College. É criadora do Doughnut of Social and Planetary Boundaries e cofundadora do Doughnut Economics Action Lab (DEAL), na Inglaterra.

Confira a entrevista.

IHU – Como surgiu a proposta da economia donut?

Kate Raworth – Eu era estudante de economia na década de 1990 e fiquei muito frustrada com as teorias que aprendi. Talvez vocês nunca tenham estudado economia, mas vou apresentar as ideias econômicas que mudaram nosso mundo a partir da imagem abaixo.

(Reprodução de gráfico da entrevistada apresentado durante a conferência)

A primeira figura nesta imagem é a da oferta e demanda. O mercado é o conceito central. A métrica em que focamos é o preço. A partir daí, quando falamos de economia, tudo é medido segundo o valor financeiro. Essa é uma abordagem muito limitante para medir, porque [na medição] tudo importa.

A segunda figura representa o autorretrato da humanidade, isto é, uma personagem que se chama homem racional. O retrato desse homem nunca é desenhado, mas ele deve parecer algo mais ou menos assim: um homem, sozinho, com dinheiro na mão, ego no coração, uma calculadora na sua cabeça e a natureza aos seus pés. Ele odeia trabalhar, mas adora luxo. Ele sabe o preço de tudo e nada é suficiente para ele. Essas são as características dadas à humanidade nas teorias econômicas. Mas se realmente pensarmos que somos assim, não teremos chances de prosperar juntos em oito bilhões de pessoas que vivem no planeta. Nós precisamos de um novo retrato da humanidade.

IHU – Quais são o objetivo e a meta da economia?

Kate Raworth – O objetivo nunca foi discutido explicitamente, mas está na fala de cada político e no conselho de cada economista: é o crescimento infinito, não importa quão rico seja um país. Eu estou no Reino Unido, um dos países mais ricos da história. Mas mesmo o nosso governo, assim como os governos dos EUA, do Canadá e de outros europeus, acredita que a solução para os problemas está no maior crescimento.

Esses conselhos nos colocaram numa armadilha e numa prática que realmente está destruindo o planeta. Precisamos substituí-lo rapidamente. Nós testemunhamos os desafios que surgiram dessas teorias nas crises pelas quais passamos neste século, como o colapso financeiro de 2007 e 2008, que quase acabou com o sistema financeiro mundial, ou o lockdown da covid-19, pelo qual todos nós passamos, ou ainda o colapso climático, como a experiência que vocês tiveram no Rio Grande do Sul, com a enchente de 2024, além de vários protestos feitos por comunidades que estão sendo confrontadas pela polícia e pelo Estado. Essas crises surgem dos sistemas econômicos que nós criamos, sistemas focados numa expansão e num crescimento infinitos, os quais estão minando as próprias fontes de vida e o nosso bem-estar. Com urgência precisamos fugir desses paradigmas ultrapassados.

É por isso que fui motivada a escrever o livro Doughnut Economics e estabelecer sete formas de pensar como um economista do século XXI. Depois, explicarei algumas delas, mas aqui eu gostaria de dizer que esse livro não contém respostas; não se trata de políticas, mas, sim, de um modo de pensar. É uma mentalidade. Creio que todos nós podemos utilizá-lo no futuro. Espero que essas ideias possam ressoar onde vocês estão.

IHU – Em que consiste a economia donut?

Kate Raworth – A economia donut parte do que as pessoas geralmente chamam de novo pensamento econômico. É uma abordagem, mas tem muitas outras, como bem-estar, economia circular, economia regenerativa... Muitos de nós achamos inspirador ser envolvidos num novo pensamento econômico, mas é importante lembrar que talvez isso não seja totalmente novidade. Muitas culturas indígenas de bem-viver e o Ubuntu, na África, têm práticas semelhantes. Precisamos entender que muitos de nós temos uma mentalidade ocidental e achamos que tudo isso diz respeito a uma nova economia, mas essas práticas já são, há tempos, conhecidas por outras comunidades.

Vocês podem pensar no donut como uma bússola para a humanidade. Imaginem a humanidade utilizando os recursos que veem do centro desse círculo. Significa que o furo no meio do donut é um lugar onde as pessoas têm carência dos elementos essenciais da vida. Ou seja, as pessoas não têm os recursos de que necessitam, como alimentos, água, saúde e educação. Os governos do mundo já concordaram que toda pessoa tem o direito de viver acima dessa base social. Porém, quando buscamos atender nossas necessidades e desejos, pressionamos os sistemas de sustentação de vida na terra e arriscamos ultrapassar os limites planetários reconhecidos pelos cientistas como sistemas de sustentação da vida, que permitem ter uma estabilidade no planeta.

Em termos simples, o objetivo do donut é não deixar ninguém naquele furo, mas também não superar os limites planetários. Queremos atender todas as pessoas dentro dos meios do planeta vivo. O objetivo em relação à economia e à vida social muda bastante. O objetivo não é o crescimento infinito medido em valor financeiro, mas ter equilíbrio entre a base social e a ecologia.

Quando desenhei esse diagrama pela primeira vez, percebi que o círculo ecoava muitas cosmovisões antigas de culturas em relação à prosperidade e ao bem-estar. Há um grande contraste com o conceito ocidental de prosperidade e sucesso, baseado no crescimento. Penso que o donut pode funcionar como uma ponte para todos nós que fomos criados com a mentalidade ocidental, focada no crescimento infinito. Ele pode fazer uma ponte para pensarmos outras formas de prosperidade. Se o objetivo é prosperar e equilibrar, estamos muito longe disso.

Carências

Na imagem abaixo, a parte em vermelho mostra milhões de pessoas que têm carência dos elementos essenciais. Queremos eliminar essa parte vermelha para que ninguém fique com carência. Mas também estamos excedendo os limites planetários. Então, temos um duplo desafio: eliminar a carência humana sem exceder os limites ambientais. Gerações anteriores não viram esses desafios, e as teorias econômicas não tentaram resolver esse problema. As políticas de governo não foram elaboradas para isso. Precisamos redesenhá-las para o nosso próprio tempo.

(Reprodução de gráfico da entrevistada apresentado durante a conferência)

Vamos ver alguns exemplos de redesenho no nível nacional. Pesquisadores fizeram 150 donuts nacionais. Aqui, apresento quatro deles: Malawi, Brasil, China e EUA. São países com enormes diferenças nos níveis de renda per capita. Malawi tem uma carência muito grande, mas não excede os limites planetários. O Brasil e a China têm carências e excedem os limites. Os EUA têm alta desigualdade e excedem os limites ecológicos. Da próxima vez que ouvirem alguém falar de um país desenvolvido, vocês podem questioná-lo. O que significa que um país deva se chamar desenvolvido? Não há desenvolvido quando se excedem os limites planetários. Os países que aparecem nessa imagem estão profundamente conectados por suas histórias de colonialismo – tenho que reconhecer isso como britânica do Reino Unido –, poder militar, regras comerciais e financeiras, extração de recursos, impactos de mudanças climáticas atuais e futuras. A história dos nossos países está interligada.

(Reprodução de gráfico da entrevistada apresentado durante a conferência)

Crescimento econômico

O crescimento econômico tende a levar as nações para longe do donut e não para perto dele. A imagem abaixo mostra dados de vários países de 1992 até 2015. Podemos ver que nesses gráficos há países que nem chegaram perto do donut.

Gosto de citar Donella Meadows, que sempre pergunta: crescimento do quê? Por quê? Para quem? Quem paga a conta? Quanto tempo pode durar [esse modelo de crescimento] e qual é o custo para o planeta? Quanto é suficiente? Podemos fazer essas perguntas em cada país, em cada contexto em que as pessoas estão querendo o crescimento econômico. Temos que poder responder a essas perguntas.

(Reprodução de gráfico da entrevistada apresentado durante a conferência)

IHU – Como mudar a mentalidade das nações em relação ao crescimento econômico?

Kate Raworth – Em vez de ir direto para o donut, precisamos transformar as jornadas das nações. Podemos ver países de renda baixa aumentar a renda e chegar no donut em vez de passar direto por ele. Os países de renda média poderiam atender às necessidades da sua população e os países de renda alta, de onde venho, finalmente poderiam reduzir a superação massiva dos limites ambientais. Isso, definitivamente, vai exigir um reequilíbrio entre as nações.

Reequilíbrio do poder financeiro mundial

O que quero dizer com isso? Muitas coisas: pode significar reparos, devolução de terra roubada, riqueza redistribuída, redistribuição de tecnologia, renegociação de regras comerciais e financeiras, ou seja, um reequilíbrio do poder financeiro mundial. Algumas dessas práticas parecem estar acontecendo hoje. Mas muitas outras coisas parecem não estar acontecendo.

Se quisermos seguir o donut, qual mentalidade precisaremos adotar? O que os alunos de hoje precisam aprender? O diagrama abaixo é o primeiro que eu ensinaria, nunca oferta e demanda.

(Reprodução de gráfico da entrevistada apresentado durante a conferência)

Este é o diagrama da economia inserida, que nos mostra que a economia é um subconjunto da sociedade humana. É um constructo humano. Nós a inventamos e podemos redesenhá-la. A economia está inserida no mundo vivo e, portanto, deve estar alinhada aos fluxos de recursos. A economia deve ser desenhada de modo que esteja alinhada e seja compatível dentro dos limites planetários, dentro do donut.

Quando olhamos para dentro da economia, obviamente, há o mercado e o Estado. Grande parte do debate econômico é como uma luta de boxe entre estes dois personagens. Porém, precisamos pensar também nas famílias, naquelas atividades de cuidado que não são pagas, como lavar a louça, fazer comida, varrer a casa, cuidar dos filhos. Esse trabalho, que não é pago nem valorizado, geralmente é feito por mulheres. Também necessitamos pensar nos bens comuns, como a comunidade, onde as pessoas se reúnem e cocriam coisas que valorizam. Esse é o ponto de partida para pensar no tipo de economia que desejamos criar. Se o donut for uma bússola, este é o mapa.

Mas também temos que nos importar com a dinâmica da economia. Nós herdamos economias que são degenerativas, que retiram recursos, que produzem objetos que utilizamos por um tempo e depois jogamos fora, numa lógica de pegar, fazer, usar e perder. Isso acaba destruindo o planeta e excedendo os limites planetários. A mineração, a construção, a indústria química, tudo é criado através dessa cadeia degenerativa. Urgentemente, nós precisamos passar do desenho degenerativo para o regenerativo, com utilização de materiais que possam ser reutilizados de modo coletivo, com mais cuidado, de forma mais criativa e mais lentamente. Isso nos permitirá trabalhar com e dentro dos ciclos do mundo vivo.

IHU – Na prática, como seria isso?

Kate Raworth – Por exemplo, na área urbana, com a construção ecológica de moradias, seja na Índia, seja nos EUA, usando materiais de construção que podem ser reutilizados, empregando materiais de construção natural, se possível. Ou como a cidade-esponja de Jinhua, na China. É uma cidade que sabe que terá enchentes, então ela foi construída dentro de corpos hídricos.

Ao mesmo tempo, passando do degenerativo para o regenerativo, também herdamos economias que tendem a ser divisivas, que concentram oportunidades e valores nas mãos de alguns poucos. Isso permite o surgimento dos bilionários, do 1% mais rico. A humanidade não vai entrar num donut de uma forma igual, como queremos hoje, se 1% das pessoas têm metade das riquezas do mundo. É preciso criar economias que possam ser mais distributivas por concepção, compartilhando oportunidades e valores com todos. Alguns exemplos são as moradias sociais, como as da cidade de Viena.

Em Viena, a maioria das pessoas vive em moradias sociais que pertencem à prefeitura. São acessíveis e centrais porque a prefeitura decidiu, há cerca de cem anos, que as moradias não devem ser um artigo de luxo para os ricos, mas um direito humano para todos. Outro exemplo são as casas no Chile desenhadas pelo arquiteto Alejandro Aravena, para as pessoas que não podem comprar uma casa, mas podem comprar meia casa, com eletricidade e encanamento. As pessoas podem economizar durante um tempo e completar a casa depois, dentro dos seus rendimentos. Esse modelo abre possibilidade para outras pessoas possuírem uma casa. Outro exemplo é o trânsito de Curitiba, no Brasil, que foi copiado em várias cidades do mundo, priorizando o transporte público.

(Reprodução de gráfico da entrevistada apresentado durante a conferência)

Precisamos passar de degenerativo para regenerativo. De fato, podemos ver que é possível deixar para trás a economia do século XX e substituí-la pela economia do século XXI, que começa com a economia inserida no mundo vivo.

IHU – Quais cidades já utilizam o modelo donut?

Kate Raworth – Em 2019, várias cidades do mundo inteiro começaram a trabalhar com o donut. Isso começou com Amsterdã, que queria colocar o conceito de economia donut no centro de sua estratégia para cidade circular. Os holandeses criaram seu próprio donut laranja e o colocaram no centro da política. Seis semanas depois, a cidade de Copenhague, ali perto, votou para explorar o que seria, para eles, o donut, assim como a cidade de Bruxelas, na Bélgica, e Barcelona, na Espanha. A proposta começou a se difundir e mais de 50 cidades, bairros e distritos em todo o mundo colocaram a economia donut em prática. São os governos locais que estão adotando e fazendo da economia donut parte da sua visão ou estratégia.

Em Barcelona, criaram uma versão própria do donut e a estão utilizando como parte de uma política ambiciosa para retirar os carros do centro da cidade e colocar mais verde. A Malásia quer ser o primeiro país que vive a partir da economia donut. O governo do Butão disse que de todas as propostas da economia ocidental a economia donut está muito conectado com o conceito nacional de felicidade deles.

No condado da Cornualha, na Inglaterra, elaboraram uma roda de discussão, como podem ver na imagem à esquerda. Todos os projetos são considerados pela comunidade. Para qualquer tomada de decisão, a comunidade se pergunta se o projeto vai melhorar ou minar a situação da cidade. Na mesma imagem, vemos a roda da direita, que representa a medição do progresso com o tempo. As cores indicam o que está melhorando, o que está piorando e o que mudou. Essa é uma leitura melhor da situação da comunidade, com muito mais informações do que simplesmente a comunicação do que está acontecendo com o PIB do país. Estamos começando a medir a vida em uma métrica humana e da natureza. Governos locais estão aprendendo uns com os outros, com inspirações par a par.

(Reprodução de gráfico da entrevistada apresentado durante a conferência)

Na imagem abaixo, temos um exemplo de Melbourne, na Austrália. A cidade sofreu incêndios terríveis e criou uma organização chamada Regen Melbourne, utilizando o donut como bússola. A população quer fazer um rio no meio da cidade e cultivar alimentos nas ruas. Estão utilizando o donut como parte de uma visão positiva, afastando-se da crise em que estavam.

(Reprodução de gráfico da entrevistada apresentado durante a conferência)

Então, cidades, distritos, escolas e estados estão visando encontrar seu caminho. Mas não é fácil. Algumas políticas e recomendações podem atrapalhar o processo, como políticas globais, finanças, a inércia, a pressão geopolítica, a falta de financiamento. As pessoas costumam perguntar quais lugares já estão vivendo segundo o modelo donut. Elas querem ver resultados e evidências ou querem provas de que essa nova economia dará certo. Outras questionam por que esse modelo não está sendo implementado mais rapidamente. As pessoas estão tentando mudar e sentem a pressão para mostrar resultados.

IHU – Como reage à pressão em torno da economia donut?

Kate Raworth – O importante é ter uma longa visão disso. Voltemos a 1947, quando os economistas Milton Friedman e Friedrich Hayek se reuniram num vilarejo suíço e criaram uma ideologia política, o liberalismo. O neoliberalismo foi o sonho deles. Milton Friedman sabia que poderia levar algum tempo para esse modelo ser implementado. Por isso, ele falou: “Apenas uma crise real ou percebida produz mudanças de verdade. Quando essa crise ocorre, as ações que são tomadas dependem das ideias que estão ao redor delas. Isso, creio eu, é a nossa função básica: desenvolver alternativas para as pessoas e políticas atuais para mantê-las vivas e disponíveis até que o politicamente impossível se torne politicamente inevitável”.

Em 1947, o neoliberalismo era impossível, mas eles esperaram e semearam essas ideias em muitos institutos que criaram em todo o mundo, financiados por interesses corporativos que se beneficiariam a longo prazo. Eles criaram postos em universidades e as ideias foram difundidas por pessoas de influência. Quando Ronald Reagan e Margaret Thatcher foram eleitos, as ideias do neoliberalismo realmente entraram em cena no mundo e dominaram desde então. Mas é valioso voltar a essa história para relembrar que nem sempre foi assim. Uma vez, Michael Friedman achava que aquela ideia era impossível, mas esperou 33 anos. Não queremos esperar 33 anos, mas sabemos que leva tempo para que essas ideias novas sejam adotadas.

Mudança de paradigma

Daniella Meadows é uma das autoras do pensamento sistêmico e ela perguntava como se mudam os paradigmas. A resposta: apontando as anomalias e as falhas do velho paradigma. Ou seja, muda-se falando alto e agindo com segurança a partir do novo. Inserem-se as pessoas num novo paradigma em lugares de visibilidade pública e poder, sem perder tempo com reacionários, trabalhando com agentes de mudança ativos e com um vasto grupo de pessoas que têm a mente aberta. É assim que estamos ajudando e influenciando a remodelar as mentes. Muitas pessoas querem pensar diferente e entrar para esse novo espaço da economia.

Agir “como se”

Howard Zinn, importante historiador americano, disse que os saltos que o homem deu na evolução social vieram daqueles que agiram “como se” eles fossem vencer, como se a visão que eles tinham já estava sendo realizada. No Reino Unido, exemplos disso são as sufragistas, mulheres que exigiam o direito de votar. Elas sempre eram arrastadas pela polícia e sempre diziam que estavam lá não para cumprir a lei, mas para fazer a lei. Elas tinham a convicção de que sabiam que estavam certas; queriam vencer. Gandhi fez a mesma coisa na Índia na década de 1930, quando enfrentou o império britânico e disse para o governo ir embora porque a Índia ainda seria um país. A dignidade estava lá; ele agiu “como se”. Estava claro que eles ganhariam e deu certo. Nos EUA, jovens lutaram contra a segregação racial.

Um lugar à mesa

Então, podemos nos perguntar o que significaria, para nós, nesta geração, hoje, agir “como se”. Ou seja, agir como se o paradigma e a visão que defendemos já estivessem claros ao nosso redor. Shirley Chisholm foi a primeira mulher negra a ser eleita para o Congresso americano e ela dizia: “Se eles não derem a vocês um lugar à mesa, tragam uma cadeira dobrável”. Eu adoro essa citação. Para que nossa voz seja ouvida, precisamos nos perguntar como podemos trazer uma cadeira dobrável e criar uma outra mesa ou realizar o nosso próprio festival ou criar um novo prêmio, criar a própria métrica para tornar o mundo visível. Começaremos a ver que teremos um lugar à mesa.

Conectar potencial

A última citação que eu gostaria de compartilhar é a do químico Ilya Prigogine. Ele dizia que quando um sistema complexo está longe do equilíbrio, pequenas ilhas de coerência no mar de caos têm a capacidade de mudar todo o sistema para uma ordem mais alta. Então, precisamos nos perguntar como podemos conectar potencial nas nossas pequenas ilhas. Quem são as ilhas ao nosso redor? No Doughnut Economics Action Lab (DEAL), costumamos dizer: não tentem ser um movimento, mas juntem-se ao movimento. É muito maior do que nós. Faz parte do nosso trabalho conectar essas ilhas.

IHU – Através da economia donut, como podemos alterar a visão antropológica que a economia construiu ao longo dos anos, do homem economicus, que é calculista, racional e egoísta? Como mudar uma imagem de homem tão simplificado frente a um mundo tão complexo como o que vivemos neste século?

Kate Raworth – Este é um ponto muito importante. A primeira maneira de se afastar dessa imagem é entender de onde veio esta imagem de homem racional e econômico. Ela não está baseada em nenhuma pesquisa ou evidência empírica. O homem econômico e racional evoluiu de economias a partir de 1870 que queriam criar uma visão hostilizada da humanidade, a qual se encaixaria convenientemente nos seus modelos. O homem econômico e racional é uma construção para se adaptar, convenientemente, aos modelos matemáticos implícitos, além de ser completamente contra as evidências que vemos na humanidade.

Os biólogos evolucionistas dirão que os humanos são os mais sociais de todos os mamíferos. Nós sabemos como cooperar e trocar. Nós nos unimos e castigamos e temos regras sociais muito sofisticadas. Por isso, podemos viver em cidades, em nações, e colaborar. Para mim, um dos princípios da teoria donut é nutrir a natureza humana, nutrir o lado humano operativo. Nós podemos seguir um conjunto de princípios que nos permite trabalhar e cooperar juntos e nos certificar de que não somos enganados pelas pessoas que querem dominar os outros. Tudo tem a ver com as relações. Os seres humanos não serão reduzidos a uma equação matemática fixa.

IHU – Como a economia donut dialoga com a agenda de 2030 da ONU?

Kate Raworth – Os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) fazem parte da agenda da ONU. A base social do donut se baseia nas bases sociais que foram estabelecidas nos ODS. Ela não inclui, por exemplo, o objetivo do crescimento econômico infinito, que é o item 8 dos ODS. Mas a economia donut também apresenta os limites porque no processo de criar um ODS os governos colocam uma pressão para conter as alegações climáticas e ambientais. A primeira versão do donut estava na mesa quando os ODS estavam sendo negociados. Se os governos perseguirem os ODS vão chegar próximo da economia donut.

O problema com a agenda 2030 é que ela foi escrita ao redor dos objetivos, por exemplo, como cuidar da pobreza e da saúde, mas o mundo está falhando muito em relação a esses objetivos. Acho que os ODS foram impedidos por um redesenho da economia. Ainda temos uma economia divisiva, linear, que não está nos levando aos ODS. Então, a economia donut busca estabelecer não apenas o formato do donut, mas pensar sobre a mudança de mentalidade que precisa acontecer na economia. Essa é a conexão entre os dois.

IHU – Como o modelo donut tem contribuído para a redução do consumo e dos resíduos sólidos urbanos?

Kate Raworth – Tem contribuído em lugares que o escolheram e o utilizaram como parte de sua estratégia, por exemplo, em Amsterdã. A população de Amsterdã colocou o donut no centro da estratégia de circularidade de três fontes: alimentos, moradias e vestuário. Ela virou uma cidade circular, começando com essas três áreas. Isso reduz o consumo porque utiliza materiais circulares. As pessoas acabam renovando suas roupas e reformando prédios em vez de construir novos.

Isto tudo tem a ver com reduzir a demanda de materiais, recirculando os que já estão sendo utilizados. Eles querem se livrar de todos os veículos de combustíveis fósseis até 2030. Toda vez que vou a Amsterdã, eu vejo mudanças acontecendo. Estão investindo cada vez mais no transporte elétrico e no uso massivo de bicicletas. Isso tem reduzido o consumo de combustíveis fósseis. As residências de Amsterdã usam digestores de biogás, reduzindo o desperdício de alimentos.

Suponho que a principal resposta à sua pergunta é que o donut não tem um conjunto de propostas. As pessoas estão utilizando-o como uma estrutura de paradigma para diferentes tipos de atividades e setores. Então, o donut pode ser utilizado no setor de resíduos sólidos, estabelecendo metas, mas também pode ser empregado com agricultura regenerativa ou para melhorar a assistência médica. É um paradigma dentro do qual muitas mudanças são possíveis.

IHU – A replicabilidade do método pode ser feita para diferentes lugares e setores? Como a replicabilidade trabalha com as escalas global e local?

Kate Raworth – Sim. A economia é melhor quando enriquecida por várias disciplinas. A economia donut é transdisciplinar ou interdisciplinar e se baseia em ciência política, em biologia evolutiva, pensamento complexo e ecologia. A partir da interdisciplinar, enriquecemos a forma como buscamos gerenciar as famílias.

Sobre a replicabilidade, nós fornecemos um modelo que cada lugar toma e faz da sua forma. Os retratos das cidades que foram criadas, as quais apresentei acima, não são comparáveis uns com os outros, porque são criados diferentemente. Primeiro, é importante que há muitos indicadores comparáveis no mundo e nós queremos criar algo que realmente faça sentido no lugar local. Então, cada local traz seus próprios indicadores baseados nos dados que tem ou nos dados que parecem mais relevantes para a comunidade. Cada população tem sua própria conversa sobre qual é o nível de base social em que se encontra. Como você disse, o donut pode ser feito em diferentes escalas. Pode ser feito na escala de um bairro, de um distrito ou de uma cidade, região, estado ou nação. Tem uma possibilidade de várias escalas. As pessoas costumam perguntar onde começa a transformação. Bem, começa onde começa. Às vezes, no nível do bairro, às vezes, no nível de uma nação. Queremos que essa ferramenta seja acessível e adaptável a muitas escalas diferentes.

IHU – Como a economia donut tem sido recebida nos cursos de economia? A economia donut é a construção de um paradigma transdisciplinar para a economia? Essa seria uma visão correta do método?

Kate Raworth – Quando escrevi o livro sobre economia donut, esta era minha intenção: influenciar os currículos universitários porque fiquei muito frustrada com eles. Criar o modelo donut era minha forma de devolver algo onde comecei. Mas, nas universidades, a economia donut realmente teve muita influência. Fiquei impressionada e muito honrada com o fato de a economia donut estar sendo aproveitada em muitas universidades em todo o mundo. Mas, frequentemente, isso não acontece nos departamentos de economia. Outros departamentos abraçaram a economia donut mais rapidamente, como estudos de desenvolvimento, projetos urbanos, economia política, estudos ambientais, economia ecológica e até mesmo no direito, estudos de medicina e engenharia civil.

Alguns cursos de economia adotaram, sim, a economia donut, principalmente aqueles que são ambiciosos para evoluir o currículo e realmente ser relevantes para seus alunos. Mas há resistências porque a economia tem o seu próprio idioma e seus conceitos e é resistente a mudanças porque é uma estrutura muito poderosa. Então, estamos trabalhando com pessoas que estão buscando outras formas de economia.

Quero mencionar duas iniciativas. Uma é um movimento estudantil chamado “Repensar a Economia”, com alunos que se uniram durante a crise financeira e estão pressionando as universidades para introduzir conceitos como a economia donut no currículo. Temos trabalhado em conjunto para disponibilizar matérias às universidades. Disponibilizamos todo o conteúdo da nossa plataforma para alunos e professores. Começamos a criar nosso próprio currículo. Também iniciamos iniciativas nas escolas para criar uma economia regenerativa. Trata-se de um curso para alunos de 16, 17 anos. Em lugar de esperar o sistema tradicional mudar, nós trabalhamos com educadores em diferentes departamentos e começamos a escrever alternativas de currículos, o que é importante, porque significa que se pode começar com um novo paradigma ao invés de tentar apenas utilizar o antigo.

IHU – Como vê o papel das coalizões do DEAL para influenciar os governos locais a adotarem o modelo donut na formulação de políticas públicas e urbanas? Existe uma metodologia avaliativa da maturidade e do desempenho dos agentes em relação à economia donut?

Kate Raworth – Os papéis da coalizão local com as organizações lideradas pela comunidade, que estão surgindo em todo o mundo, são muito diferentes. Algumas destas organizações têm o objetivo de reunir a comunidade. Outras têm a ambição de influenciar os governos locais e começar a criar um donut local, conectando-se com a câmara de vereadores. Em outros lugares, próximo às eleições, a comunidade organizou um evento para os candidatos locais falarem. Realizaram entrevistas e fizeram perguntas sobre como as políticas ajudariam a humanidade.

Com relação à avaliação, à maturidade e ao desempenho de empresas e cidades, passaram-se trinta anos para que o neoliberalismo fosse apresentado, então, isso leva tempo. O importante é não pressionar os lugares que começaram em 2020, durante a crise de covid. Eles precisam de tempo para se adaptar. Uma câmara de vereadores não é uma unidade; é composta de vários departamentos, com diferentes visões.

Algumas empresas dizem que estão interessadas na economia donut e nos contatam para perguntar o que podemos fazer para que se tornem empresas donuts. Eu digo que não há empresas donuts, mas elas podem participar a partir da economia donut. O importante não é o desenho do projeto, mas o desenho da empresa.

Temos cinco características de desenhos de empresas. Pense numa empresa que você adora, odeia ou já trabalhou. Pensa no desenho dessa empresa. Qual é o propósito dela? Por que ela existe? A empresa existe somente para dar dinheiro aos donos ou para melhorar a comunidade? Para devolver algo ao mundo vivo? Quais são suas relações de rede com os colaboradores e fornecedores? Ela segue seus valores nas relações ou tem relações estratégicas? Como é a governança da empresa? Quem tem voz na empresa? O setor financeiro estará na mesa, logicamente, mas os trabalhadores estarão lá? As gerações futuras estão lá? De quem é a empresa? É de uma família, tem um empreendedor, tem acionistas, tem colaboradores, comunidade ou é uma empresa estatal? Todos esses modelos existem e tem consequências futuras nas finanças. De onde vem a finança dessa empresa e o que se espera que ela extraia e o que ela reinveste?

A proposta e as finanças de uma empresa geralmente estão em forte tensão. Quando desenhamos uma empresa, pensamos se ela fará parte de um futuro regenerativo ou se ficará presa em função do desenho extrativo, onde os donos têm uma governança apenas para ganhar dinheiro. Centenas de empresas estão olhando para o seu desenho.

IHU – Quais ferramentas do DEAL foram utilizadas no processo de realização do donut em Amsterdã?

Kate Raworth – A ferramenta se chama Donut Unrolled e é aplicada a partir de algumas perguntas: Como as pessoas podem prosperar? Como esse lugar pode ser tão generoso quanto a floresta próxima? Tem moradias com biodiversidade, cidades limpas com resiliência ecológica? Como podemos reduzir o consumismo e os resíduos gerados que impactam todo o mundo? Como esse lugar pode respeitar o bem-estar de todas as pessoas?

O Donut Unrolled pode ser utilizado em todas as cidades e em todo mundo. Esse modelo cria um retrato da cidade, que é complexo e nos ajuda a ver os problemas que não vemos ou não olhamos. É importante reconhecer as conexões difíceis dos lugares e assumir responsabilidades para transformar essas relações, dizendo que não estamos vivendo bem ao custo de outras pessoas serem exploradas.

IHU – Como levar essas ideias para a educação? A economia donut saiu das universidades e visita escolas e a sociedade civil e tem se articulação com outros espaços?

Kate Raworth – Nós queremos que os jovens aprendam sobre visão de mundo numa idade muito mais tenra. Então, trabalhamos com professores de ensino básico (níveis fundamental e médio) para trazer esses conceitos às crianças de forma mais acessível.

Em Amsterdã, nas sextas-feiras em dada escola os pais vão lá para lecionar. Os alunos levam donuts veganos e todos exploram a cidade em termos de energia, alimentos, moradias ou mudanças climáticas. É um aprendizado baseado em ações, mas também produzimos ferramentas maravilhosas, como o Hello Doughnut, que introduz o conceito de donut para crianças com idade a partir de 5 anos até os 18.

IHU – Você participou de uma das etapas da Economia de Francisco. Como entende a possibilidade de integrar a visão da economia donut com a perspectiva do falecido pontífice?

Kate Raworth – Foi uma grande honra para mim ser convidada para contribuir com um seminário na Economia de Francisco. A proposta dele e a economia donut estão muito bem relacionadas por meio dos valores profundos de solidariedade social e respeito. É importante ter ideias diferentes que estejam relacionadas porque as pessoas pensam de forma diferente. Espero continuar trabalhando com aqueles que lideraram esse excelente trabalho para ver como a economia donut pode contribuir continuamente com esse movimento. É inspirador ver jovens participando da jornada da Economia de Francisco com muita inspiração. Isso me inspira.

É importante o trabalho de grupos de fé engajando-se com o novo pensamento econômico. Os valores sociais que sustentam a fé estão voltando a nutrir a natureza humana e são profundamente fundacionais para termos uma economia baseada na responsabilidade com os humanos e todas as formas de vida. O Papa Francisco era um grande defensor do mundo vivo. Grupos de fé podem proporcionar um ponto de encontro importante para esse pensamento e colocá-lo em prática.

IHU – Como as pessoas que concentram a renda mundial, como 10% da população que controla 70% da riqueza global, podem ser convencidas de que o modelo econômico precisa ser alterado? Um ambientalista brasileiro dizia que ecologia sem lutas de classes é jardinagem. A questão está na reforma ou na revolução? É possível reparar um sistema econômico perverso na raiz?

Kate Raworth – Adorei essa citação. Nunca ouvi esta expressão, “ecologia sem luta de classes é jardinagem”. É uma expressão muito forte. O donut ajuda a reunir diferentes movimentos e pessoas. O diagrama nos permite mostrar que nos importamos com os direitos sociais das pessoas, assim como com a integridade do planeta vivo. Ou seja, coloca essas duas questões juntas, num único diagrama. Os direitos fundamentais enfocam as pessoas que vivem na privação. Isso tem a ver com a luta de classes. As pessoas que vivem abaixo dessa base social são aquelas cujos direitos não foram atendidos ainda.

Nós também focamos na proteção do mundo vivo. Essas duas coisas estão profundamente conectadas. Não é um ou outro. Se minarmos a estabilidade do clima, a fertilidade do solo e a água dos rios, saberemos que quem vai sofrer primeiro e mais são as pessoas que vivem em privação. Portanto, há uma profunda ligação entre essas duas dimensões. Proteger o mundo vivo também faz parte da luta de classes.

A pergunta é: nós podemos reformar ou precisamos de revolução? Excelente pergunta. Pessoalmente, não acho que podemos reformar suficientemente a mentalidade econômica que visa o mercado em primeiro lugar e entende o homem como homem econômico e racional e deseja o crescimento infinito. Ou seja, o modelo econômico baseado nas finanças, com extração infinita. Pessoalmente, não sei como mudar esse modelo imediatamente, mas, se alguém souber, compartilhe conosco.

Para mim, esta é a raiz da pergunta: como podemos mudar isso? Isso tem a ver com a primeira parte da pergunta, ou seja, como persuadir os super-ricos de que precisamos de mudanças? É incrivelmente difícil. Pessoalmente, não começo com os super-ricos. Começo batendo na porta das pessoas para persuadi-las.

A estratégia que adotamos no laboratório é ir aonde as pessoas estão. No Reino Unido, a organização Milionários Patrióticos, composta por pessoas ricas que reconhecem que devem pagar mais impostos, está convidando os governos a taxarem os ricos. É uma pequena comunidade que está reconhecendo a extrema desigualdade da qual está se beneficiando. Isso tem a ver com política democrática e tem que ser feito a partir de uma narrativa e visão positiva do mundo que queremos criar.

Em muitos países que conhecemos, temos visto o surgimento de uma extrema-direita autoritária e populista, que agora mina o cenário. Para mim, é mais importante continuar seguindo a convicção pela qual lutamos. As pessoas vivem muito melhor numa sociedade igualitária. Agora, é importante levantar a voz da democracia e a visão de uma economia mais regenerativa e distributiva. A degradação ambiental está afetando a todos.

A nossa estratégia é começar trabalhando com os pioneiros que começaram a fazer uma mudança, mostrar o seu trabalho e construir um impulso em torno disso. Isso vai de mãos dadas com uma luta mais profunda e mais forte, uma luta política, democrática, anticorporativa e anticorrupção da qual outros atores estão participando. Temos que ser inteligentes e pensar como podemos fazer essas ideias ecoar. Para mim, a versão mais convincente é apontar as pessoas que já começaram a colocar essas ideias em prática localmente. Para mim, este é um início para uma revolução.

IHU – Como o modelo econômico donut pode inserir quem está inserido na economia do cuidado, que, por sua vez, está intimamente ligado à questão de gênero?

Kate Raworth – Para responder, volto ao diagrama da economia inserida. A economia está focada no mercado e no Estado. Tem o mercado livre, mais capitalista ou mais estatista, e as políticas no meio dos dois. O que está faltando ali são as famílias. Este é o lugar do cuidado, além do bem comum, que é outro lugar do cuidado. É onde as pessoas estão cuidando dos valores que não podem ser expressos em termos monetários.

Na família, podemos ser um pai, um filho, um tutor ou cuidador. Esses são os papéis de cuidado. Às vezes, o mercado pode prover esse papel de cuidado, mas, geralmente, isso não é remunerado. Precisamos nos certificar de que as economias sejam concebidas para dar espaço para o cuidado acontecer. Os papéis que podemos desempenhar como cocriador, compartilhador, aquele que vai reparar e gerenciar, são espaços de cuidado, cuidado da terra, cuidado da herança cultural, cuidado das comunidades. Tornar isso visível num diagrama de base social e dar nomes aos papéis é o primeiro passo.

Eu gostaria que todo aluno de economia pudesse ver que o cuidado e o trabalho de cuidado não remunerado são visíveis desde o início. Não é algo que se aprende após três anos de curso. Essa é uma dimensão fundamental para as nossas vidas. Muitas pessoas falam não apenas em economia do cuidado, mas economia central, que é central para o nosso bem-estar. Obrigada por essa pergunta porque ela destaca a importância de tornar mais visíveis coisas invisíveis e importantes.

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