"A ausência notável da Laudato Si' consiste no silêncio a respeito das mulheres, que em todo o mundo são as grandes cuidadoras da Terra. Observa-se ainda que a encíclica poderia ter avançado também na questão ecumênica e inter-religiosa. Malgrado tais limites, cremos que a Laudato Si' não perdeu vigência após 10 anos. Assumindo a causa socioambiental, ela descortina um horizonte inovador para a fé cristã, impulsiona ações coletivas em parceria com a sociedade civil e nutre nossa esperança".
O artigo é de Afonso Murad, professor de teologia na FAJE. Escritor e ambientalista.
Afonso Murad (Foto: Arquivo Pessoal)
O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que conta com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto e ter acesso a todos os artigos da coluna, verifique o leia mais, no fim do texto. Para saber mais sobre o projeto, clique aqui.
Os dez anos de publicação da Encíclica Laudato Si' ensejou uma série de escritos, e eventos, como Simpósios, Congressos e Seminários. No intuito de dar minha colaboração como ecoteólogo e ambientalista, apresentarei brevemente minha percepção sobre o significado atual da Laudato Si'.
Ao atuar junto a grupos de educadores, agentes socioambientais e agentes de pastoral, constato que três capítulos da Laudato Si' são mais relevantes para pessoas e grupos. Na introdução há uma afirmação preciosa e impactante: a Terra é apresentada não somente como Casa Comum, como também analogicamente uma irmã com a qual partilhamos a existência e a Mãe bondosa que nos acolhe nos seus braços. Mais ainda: nós mesmo somos Terra (LS 1-2). Essa é a clave para entoar a melodia que nos sintoniza com a comunidade de Vida do planeta, a biosfera.
O capítulo II, intitulado “O Evangelho da criação” é decisivo para uma compreensão ecológica da bíblia e da própria fé cristã. Ali se declara que as narrações de Gênesis 1-2, acerca do início do mundo, são poéticas e simbólicas, apontando que há uma reciprocidade responsável entre a natureza e a humanidade (LS 67). Então, corrige-se a visão do pretenso “mandato divino” de dominar e submeter, com aquela de “cultivar e proteger” (Gn 2,15). Francisco reitera que os outros seres vivos tem valor próprio diante de Deus, e não pela utilidade a serviço dos humanos (LS 69, 82). Cada criatura é objeto da ternura do Pai (LS 77). Tal visão do valor de cada vivente e do conjunto dos seres em interdependência converge com convicção da “ecologia profunda” (Deep ecology) de que o florescimento da humanidade e o de todos os outros seres são interdependentes.
Sem abandonar a terminologia das ciências ou da linguagem comum (natureza, ecossistemas, comunidade de Vida, Planeta, Terra) a Laudato Si' justifica o uso do termo “criação”, como “um dom que vem das mãos abertas do Pai de todos, uma realidade iluminada pelo amor que nos chama a uma comunhão universal” (LS 76). O cosmos, composto por sistemas abertos, está em evolução, pela força do Espírito Santo que nele atua (LS 79-80). Cristo assumiu em Si mesmo este mundo material e agora, ressuscitado, habita no íntimo de cada ser, envolvendo-o com o seu carinho e penetrando-o com a sua luz (LS 221).
Tal visão de fé traduz-se em uma concepção planetária. Pois “o meio ambiente é um bem coletivo, patrimônio de toda a humanidade e responsabilidade de todos” (LS 95). Os humanos não são donos do Planeta e por isso cultiva-se o respeito pela Terra e mistérios.
Quando trabalhamos o capítulo II com grupos, fazemos a experiência sensível de ver, ouvir, degustar, tocar e ser tocado e respirar... Quando possível, até mergulhar na água. Pois assim nos sentimos em sintonia com a natureza, seja ela preservada ou já modificada pelo ser humano. Sentir-se parte, deixar-se encantar e silenciar, suscita a reverência e o desejo de cuidar. A isso associamos a atitude de louvar a Deus junto com os outros seres, como se apresenta nos Salmos e no Cântico das Criaturas de Francisco de Assis.
Se o capítulo II abre a mente e os corações para uma “espiritualidade da Terra”, o capítulo IV fornece uma visão geral sobre a ecologia e suas dimensões. Semelhante à luz lançada sobre um prisma, a ecologia se manifesta em várias cores que constituem um único e complexo fenômeno humano e da natureza. Francisco elenca: ecologia ambiental, econômica, social, cultural, e da vida cotidiana (LS 138-155). As pessoas se dão na conta que ecologia vai bem além de “preservar o verde”.
No entanto, a tarefa educativa mais difícil consiste em ajudá-las a compreender que a ecologia integral exige uma nova configuração econômico-social, um modelo de desenvolvimento, marcado por um ciclo sustentável e justo de extração, produção, logística, serviços, consumo, descarte e reciclagem (cf. LS 138-140). Nas palavras de Francisco: “tudo está interligado”. É difícil fazer esse salto na consciência: evoluir para a visão crítica sobre o sistema que impacta negativamente nos ecossistemas, privilegia o capital financeiro e explora os mais pobres. A isso se liga a impregnada concepção individualista da existência, a competição desenfreada e uma visão de desenvolvimento e progresso que ignora o componente socioambiental.
Há vários termos técnicos, desconhecidos pelo católico comum, tais como: modelos de desenvolvimento, produção e consumo; impacto ambiental, ecossistemas, uso sustentável, capacidade regenerativa, culturas homogeneizadas, ecologia humana, grandes projetos extrativistas, paisagem urbana. Esse pequeno arcabouço teórico permite dialogar com ambientalistas e pesquisadores. Dois conceitos são fundamentais para a formação de uma consciência planetária: Bem Comum e Justiça intergeracional. O primeiro alude a uma palavra clássica no Ensino Social da Igreja Católica, que remonta à ética de Tomás de Aquino. A essa se liga um termo contemporâneo: os bens comuns. Falamos aqui da água, da biodiversidade, dos saberes ancestrais, das políticas públicas, dos conhecimentos gerados comunitariamente etc. O bem comum (categoria abrangente) e os bens comuns (concretos) precisam ser defendidos, para enfrentar a voracidade do capitalismo neoliberal. A justiça intergeracional, outra bandeira defendida pelos movimentos socioambientais, diz respeito a empenhar-se para que as futuras gerações de humanos, plantas e animais continuem a viver.
O cap.VI versa sobre “Educação e Espiritualidade ecológica”. Na nossa prática pedagógica e pastoral a partir da Laudato Si', percebemos algumas descobertas e apelos nos nossos interlocutores. A primeira, é a ‘conversão ecológica”, que liberta os cristãos de uma concepção subjetivista e intimista da mudança da mente e do coração à luz da fé. Ela implica adotar um estilo de vida que Francisco denomina “sobriedade feliz”, semelhante à “simplicidade voluntária” proposta por ambientalistas. Vale a pena ler e saborear os itens 222 a 227.
Frequentemente se repete nas igrejas o discurso que atravanca práticas sociais transformadoras: “primeiro vem a conversão do coração. Depois, a ação”. Ao contrário, a Laudato Si' propõe uma simultaneidade. O cultivo da Ecologia Integral se efetiva com “simples gestos quotidianos, pelos quais quebramos a lógica da violência, da exploração, do egoísmo, do mundo que maltrata a vida em todas as suas formas” (LS 230). No entanto, para se resolver uma situação tão complexa como a atual, não basta que cada um seja melhor. “Aos problemas sociais responde-se, não com a mera soma de bens individuais, mas com redes comunitárias: A conversão ecológica, que se requer para criar um dinamismo de mudança duradoura, é também uma conversão comunitária” (LS 230). Então, “o amor, cheio de pequenos gestos de cuidado mútuo, é também civil e político (LS 231).
A ausência notável da Laudato Si' consiste no silêncio a respeito das mulheres, que em todo o mundo são as grandes cuidadoras da Terra. Observa-se ainda que a encíclica poderia ter avançado também na questão ecumênica e inter-religiosa. Malgrado tais limites, cremos que a Laudato Si' não perdeu vigência após 10 anos. Assumindo a causa socioambiental, ela descortina um horizonte inovador para a fé cristã, impulsiona ações coletivas em parceria com a sociedade civil e nutre nossa esperança.