30 Mai 2025
"Na era da pós-verdade, a saúde pública e o jornalismo compartilham um mesmo destino: ou se fortalecem mutuamente como instrumentos de promoção da vida e da cidadania, ou seguirão vulneráveis aos fluxos líquidos de incerteza, medo e desinformação", escreve Elstor Hanzen, jornalista e mestre em Ensino na Saúde.
Nas últimas décadas, a credibilidade da mídia de massa – jornal, rádio, TV – sofreu um forte abalo, assim como o consolidado Programa Nacional de Imunizações (PNI) brasileiro, especialmente entre 2011 e 2021, período marcado por uma queda progressiva na cobertura vacinal. O fenômeno que fragiliza o funcionamento dessas estruturas se entrelaça, de forma complexa, com as transformações sociais e o avanço das chamadas fake news, que corroem a confiança pública tanto na comunicação quanto na medicina e na ciência, gerando uma crise sanitária e informacional.
Para que esse quadro fique mais claro, é relevante destacar alguns dos elementos que compõem esse "caldo". A pós-verdade, por exemplo, é o ambiente onde ele ferve. Esse conceito ganhou protagonismo a partir de 2016, descrevendo um cenário em que emoções e crenças pessoais exercem maior influência sobre a opinião pública do que fatos objetivos. No campo da saúde, essa configuração é particularmente crítica: a circulação de desinformações sobre vacinas – desde boatos sobre efeitos colaterais graves até a negação da própria necessidade da imunização – contribui diretamente para a hesitação vacinal e a redução das coberturas mínimas, impactando a segurança sanitária de toda a população, especialmente a saúde infantil.
Nesse contexto, em que tudo parece relativo, ganham força as fake news e o negacionismo científico, atingindo em cheio tanto o jornalismo quanto a saúde pública. Para compreender como e por que chegamos até aqui, foi necessário buscar explicações na evolução da própria história e da filosofia ao longo do tempo. Esse percurso investigativo sobre verdade e pós-verdade, aplicado à cobertura vacinal no Brasil, constituiu o objeto da minha pesquisa de mestrado em Saúde, realizada na UFRGS e concluída em 2023. O resultado está agora disponível no e-book “Da verdade à pós-verdade: cobertura vacinal no Brasil”, publicado na Amazon.
A obra evidencia como o enfraquecimento da comunicação institucional e o declínio dos investimentos em campanhas públicas de vacinação colaboraram para a expansão de zonas de incerteza e desinformação. Entre as quatro principais vacinas infantis – BCG, meningocócica C, poliomielite e tetraviral – todas apresentaram quedas expressivas nas taxas de cobertura, retrocedendo a níveis alarmantes e reabrindo portas para o ressurgimento de doenças antes controladas ou erradicadas.
Esse quadro também se insere na lógica da fluidez e fragmentação característica da chamada “modernidade líquida”, conceito de Zygmunt Bauman, em que os vínculos sociais e as instituições tradicionais perdem força frente a relações mais voláteis e instantâneas, mediadas por redes sociais e plataformas digitais. Nesse ambiente, a comunicação perde solidez e se pulveriza em fluxos caóticos de informações e desinformações, onde a autoridade científica passa a ser apenas mais uma voz, competindo com narrativas conspiratórias, influenciadores e grupos ideológicos que rejeitam consensos técnicos.
O jornalismo, enquanto prática social orientada pela busca da verdade factual, enfrenta desafios inéditos. Se, por um lado, ele tem a responsabilidade de mediar a informação científica ao público, por outro, encontra-se tensionado pela velocidade da informação em rede, pela sobreposição entre discurso informativo e opinativo, e pela desvalorização do método rigoroso de apuração, frequentemente preterido pela instantaneidade. A melhor prática jornalística, no entanto, exige comprometimento com a honestidade intelectual, a checagem de dados e o cruzamento de fontes, constituindo um pilar imprescindível no combate à desinformação em saúde.
Contudo, é preciso reconhecer que o jornalismo não opera isoladamente. A eficácia das campanhas de vacinação depende da articulação entre políticas públicas robustas, estratégias comunicacionais claras e acessíveis e práticas educativas permanentes. O estudo destaca que, entre 2010 e 2020, as oscilações e reduções nos investimentos em comunicação por parte do Ministério da Saúde comprometeram a capilaridade e o impacto das campanhas, favorecendo o avanço da infodemia – a epidemia de informações falsas, termo cunhado e amplamente difundido durante a pandemia de Covid-19.
Nesse sentido, pode-se evocar a teoria do agir comunicativo, de Jürgen Habermas, como uma chave interpretativa: promover a vacinação não é apenas informar, mas construir consensos sociais intersubjetivos, a partir do diálogo e da confiança. Assim, a comunicação em saúde não pode ser apenas vertical e instrumental, mas precisa ser horizontal e emancipadora, criando espaços de escuta e interlocução com a sociedade.
Um exemplo emblemático dessa relação foi a pandemia: apesar da desorganização e da politização no enfrentamento à crise, a ampla cobertura vacinal no Brasil conseguiu reduzir significativamente a letalidade do vírus. Dados indicam que, mesmo com explosões de casos em 2022, as mortes não cresceram na mesma proporção, graças à proteção conferida pela vacinação em massa. Por outro lado, o avanço da desinformação e do negacionismo científico – estimulados por lideranças políticas e governantes de plantão – deixou um rastro de mortes evitáveis e uma profunda crise de confiança nas instituições sanitárias.
Diante desse panorama, é urgente repensar a interface entre jornalismo, comunicação pública e saúde. A formação na área da saúde deve incorporar competências comunicacionais, capacitando profissionais para dialogar com a sociedade na era da pós-verdade. Paralelamente, o jornalismo precisa aprofundar sua função social, defendendo o interesse público não apenas pela veiculação de informações corretas, mas também pela capacidade de traduzir, com clareza e concisão, a complexidade das questões sanitárias e sociais da atualidade.
O enfrentamento à desinformação vacinal não é tarefa de um único campo, mas um esforço intersetorial que demanda políticas públicas estáveis, investimentos contínuos, formação profissional, fortalecimento das instituições científicas e um jornalismo ético e comprometido. Na era da pós-verdade, a saúde pública e o jornalismo compartilham um mesmo destino: ou se fortalecem mutuamente como instrumentos de promoção da vida e da cidadania, ou seguirão vulneráveis aos fluxos líquidos de incerteza, medo e desinformação.