29 Mai 2025
“Um país que realiza uma ocupação há décadas e submete as populações sob ocupação a um regime de apartheid dificilmente pode ser considerado um país com uma democracia completa”. “Impressionante é a agressão de cidadãos árabes em Jerusalém”. O horror em Gaza “é sem fim e sem limites. É terrível a fome usada como instrumento político”.
Defini-la como intelectual corajosa é pecar por defeito. Porque não é todo mundo, especialmente nestes tristes tempos em que “reina” uma espécie de pensamento único e uma informação mainstream, que se atreve a ir contracorrente, especialmente em questões candentes e divisivas. A coragem de tomar posição, argumentando com a força das ideias. O que Anna Foa faz com grande competência em seu último livro Il suicidio di Israele (Editori Laterza), agora em sua segunda edição, com vendas surpreendentes para um ensaio. Uma premissa é imprescindível. Sem dúvida, o conteúdo é importante, mas também o momento em que se tem a coragem de assumir uma posição. Hoje, diante da matança sem fim em Gaza, há quem reveja suas posições na defesa absoluta de Israel. Antes tarde do que nunca. Mas melhor ainda teria sido fazer isso com algumas dezenas de milhares de mortos a menos na consciência. Anna Foa fez isso.
A entrevista com Anna Foa, historiadora, escritora, intelectual da religião judaica, é de Umberto De Giovannangeli, publicada por L'Unità, 28-05-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Professora Foa, a tragédia na Terra Santa também vai além do campo de extermínio de Gaza e invade Jerusalém, a cidade santa para três grandes religiões monoteístas.
Infelizmente, é isso mesmo. As imagens de jovens colonos, muitos deles pouco mais do que adolescentes, atacando cidadãos árabes na Cidade Velha no Dia de Jerusalém com uma violência física e verbal alucinante, falam de uma situação que chamar de alarmante é pecar por defeito.
Os colonos apoiadores do governo e de seus horríveis ministros decidiram que no Dia de Jerusalém, em memória à tomada de Yerushalayim na Guerra dos Seis Dias de 1967, provocariam os palestinos na cidade velha.
Isso já havia acontecido antes, mas em um contexto menos perigoso e com menos violência. Dessa vez, cuspiram em cidadãos indefesos, tentaram arrombar as portas das lojas, agrediram e ameaçaram de morte. Algo realmente impressionante. A arrogância deles, eram rapazes e moças, é impressionante.
Tudo isso enquanto em Gaza o horror é algo sem fim.
Sem fim e sem limites. A tragédia das nove crianças assassinadas, filhos de dois médicos, é alucinante. Quando você fala isso, imediatamente respondem, e o que dizer dos dois jovens namorados da embaixada israelense mortos em Washington... É claro que o ataque terrorista contra esses dois jovens foi algo terrível, o que comporta uma condenação sem desculpas, mas também é preciso ver o que está acontecendo em Gaza. E o que está acontecendo é a morte de tantas crianças, é a fome sendo usada como meio de pressão para retirar os habitantes de Gaza de suas terras.
O projeto, que já está sendo implementado, dos contratados e da redução dos pontos de distribuição de ajudas, é muito grave, alucinante. Isso significa deslocar a população à força. E depois a exigência de reconhecimento facial para receber um pouco de pão ou leite em pó. Uma coisa terrível. A fome usada como instrumento político. É algo pesado e doloroso, em primeiro lugar para eles, mas também para aqueles que não a compartilham.
Tudo isso torna seu último livro ainda mais atual, “profético”, com seu título emblemático: O suicídio de Israel. Professora Foa, esse suicídio já foi realizado?
Não sei se já foi realizado, mas espero de todo o coração que não. Nesse terrível desastre, há alguns sinais que alimentam alguma esperança.
A que se refere?
As manifestações das últimas semanas, pela primeira vez, colocaram no centro não apenas as questões relativas aos judeus israelenses, a começar pela libertação dos reféns ainda em cativeiro em Gaza, mas também as questões relativas aos habitantes de Gaza. As fotos de crianças palestinas assassinadas, as vozes contra a ocupação. Isso é algo novo, importante. Outro fato a ser observado é o aumento do número de refusniks (judeus israelenses que se recusam a prestar serviço militar ou a realizar ações bélicas contra os árabes porque são contra a ocupação dos territórios palestinos).
Isso é muito importante para Israel. Há sinais de que essa revolta moral, além de política, está se tornando importante. O aumento dos refusniks é algo que pode mudar a situação. Não importa a narrativa do Tsahal, como o exército mais ético do mundo. Não é e talvez nunca tenha sido. Mas é um exército popular, no sentido de que é formado por filhos de cidadãos israelenses, que são chamados em diferentes épocas de suas vidas, até os 45 anos, para se juntarem a ele. São os reservistas. Há poucos dias, um reservista foi condenado a algumas semanas de prisão porque se recusou a servir em Gaza. E esse é outro sinal importante.
Mas esses sinais agitam ainda mais a direita israelense. Cada vez mais violenta, nos comportamentos e nas mensagens que envia. No Dia de Jerusalém, Ben-Gvir, que além de ser um extremista messiânico fanático é Ministro da Segurança Nacional, foi à Esplanada do Templo. E isso é algo ilegal. Pelos acordos com a Jordânia, os judeus não podem ir rezar no Monte do Templo.
Recentemente, a senadora vitalícia Liliana Segre proferiu palavras fortes condenando a política adotada por Netanyahu. Tachou-a de repugnante.
Só posso apreciar o que a senadora Segre disse. A senadora Segre disse coisas que correspondem absolutamente ao que eu e muitos dos oponentes de Netanyahu pensamos. Ela também falou de crimes de guerra e crimes contra a humanidade. E é importante que as coisas ditas pela senadora Segre tenham sido retomadas e repercutidas por Edit Bruck, que falou sobre a desobediência.
A desobediência é importante. Escrevi isso há alguns dias em um artigo no La Stampa: a desobediência é algo que era levado em consideração em Israel décadas atrás. Em 1956, quando houve um terrível massacre de palestinos, o governo, Ben Gurion e outros reagiram pedindo desculpas.
Houve um julgamento que terminou com a condenação dos responsáveis do exército, algo que jamais iria acontecer hoje. Os condenados foram libertados pouco tempo depois, mas isso não é o mais importante. O importante é o princípio da condenação. O juiz falou de uma faixa preta balançando sobre uma ordem e declarou que aquela ordem era ilegal, proibida. Agora não há mais ordens proibidas, mas talvez a desobediência seja outra maneira de colocar em crise o governo da política repugnante.
Israel ainda é uma democracia?
Talvez nunca tenha sido. No sentido de que certamente é uma democracia no que diz respeito ao fato de ter eleições regulares. Mas nunca teve uma atitude paritária em relação a seus cidadãos judeus e palestinos. Até 1966, os cidadãos palestinos de Israel estavam sujeitos às leis militares e os judeus não. Embora não haja apartheid dentro de Israel com relação aos palestinos, há, sem dúvida, uma situação de deterioração progressiva de seus direitos, enquanto há apartheid nos Territórios Ocupados. Um país que leva adiante uma ocupação há décadas e submete as populações sob ocupação a um regime de apartheid dificilmente pode ser considerado um país com uma democracia completa.
Em um momento em que a única linguagem praticada é a da força, pensar em uma solução política parece fora de hora. Vamos tentar ir contracorrente. No campo do possível, você considera uma solução de dois Estados mais realista ou desejável, ou, como os líderes palestinos estão sugerindo nestes últimos dias, o desafio é o de um Estado binacional?
O desafio definitivo, na minha opinião, é o de um Estado binacional. Fiquei muito satisfeita com a sugestão aventada por alguns líderes da ANP. No entanto, duvido que possa ser aplicada neste momento. Chegar já a dois Estados poderia ser algo perto da utopia, mas continua sendo a única possibilidade concreta neste momento. Sinceramente, não consigo imaginar uma coabitação neste momento, com o ódio que transbordou de forma avassaladora depois de 7 de outubro, mas que já existia também antes, e com esse mar de sangue criado pelo 7 de outubro e depois pela destruição de Gaza.
Há núcleos em Israel que tentaram implementá-la, há experiências-piloto que conseguiram dar vida, mesmo em tempos trágicos como os que estamos vivendo, a um diálogo frutífero, premissa fundamental para uma futura coabitação. Mas estamos falando de um futuro indefinível. Neste momento, acho que até mesmo uma solução temporária e parcialmente significativa de dois Estados poderia ser um grande passo à frente.
Em uma das muitas conversas que tive o privilégio de ter com Abraham Yeoshua, ele disse que, para os israelenses, acertar as contas com o problema da fronteira era muito mais do que um fato político, territorial. Era analisar o problema, cultural, identitário, do limite. Dotar-se de uma consciência do limite. É isso mesmo, professora Foa?
Eu diria que sim. Se olharmos para os colonos, para esse desejo de estender a Terra, para essa relação ao mesmo tempo muito próxima e deformada com a Terra, com Eretz Israel... Porque essa importância da Terra, essa ânsia de posse absoluta. Não há coisas mais importante do que a Terra! Aqui é a Terra desejada por Deus. É a Terra da Bíblia. E quando se está lidando com a religião, é difícil raciocinar. E foi exatamente em nome desse messianismo que os rabinos ultraortodoxos lançaram uma ‘fatwa’ mortal contra Yitzhak Rabin, posteriormente executada por um jovem fanático. Ao fazer isso, aqueles rabinos usaram a Bíblia .... Algo apavorante. Inspirar-se na Bíblia para propagar o ódio e a violência é algo que realmente deveria causar horror. A Bíblia contém tudo e o contrário de tudo.
O que a direita messiânica extrapola da Bíblia é o que melhor lhe convém para veicular suas mensagens repugnantes e legitimar atos irresponsáveis. Certamente não se olha para o universalismo dos profetas, mas se brande a relação com o sangue e a Terra como uma arma de propaganda.
Essa agitação de emoções, de reflexões empenhadas, está levando a alguma modificação dentro da diáspora?
Um pouco, sim, de forma bem lenta. As vozes que estão se posicionando de forma decidida ao lado de Israel, sem hesitações, ao que me parece, estão se modificando um pouco e se atenuaram um pouco em comparação com seis meses atrás. Continua sendo um processo muito lento, que olha para todos os lados com cautela, caso o mainstream seguir em outra direção... O que nos faz pensar é que, quando esse processo for completado, os ‘jogos’ já terão terminado.