24 Mai 2025
Se você é uma daquelas pessoas que resiste a sair das redes sociais por medo de que o mundo se esqueça de você, pode ser que se interesse por esta entrevista. “Na Espanha seca e com estresse climático, um dos grupos que pedem uma moratória aos novos data centers se autodenomina Tu Nube Seca Mi Río. O nome é apropriado, e não apenas para a Espanha. Uma escolha indescritivelmente sombria está sendo feita diante de nossos olhos e sem qualquer consentimento: máquinas sobre os humanos, seres inanimados sobre animados, os lucros acima de tudo”. A pessoa que escreve estas palavras é ninguém menos que Naomi Klein.
“Sou eu que tenho que dizer porque estou muito orgulhosa”, afirma Aurora Gómez, a pessoa que está por trás desse coletivo. Porque não é todo dia que você aparece no The Guardian, nem é todo dia que você é citada pela autora de A Doutrina do Choque. “E nos citou sem a necessidade de eu estar nas redes sociais privadas. Eu estou apenas no Mastodon”, argumenta, como exemplo de que é possível habitar a internet de um outro modo.
Psicóloga de profissão, Gómez tem 25 anos de luta em favor do software livre e os direitos digitais. “Se diminuir a resolução da câmera, conseguiremos conversar melhor. Ou se você puder fechar as abas”, avisa, diante das interrupções no início da entrevista por videoconferência. Foi alguns dias antes do apagão. Finalmente, optamos pelo telefone. “Agora, sim”.
A entrevista é de Olivia Carballar, publicada por La Marea, 20-05-2025. A tradução é do Cepat.
Como surge ‘Tu Nube Seca Mi Río’?
Somos um coletivo ativista que nasceu com a ideia de sensibilizar sobre o impacto ecossocial dos data centers. Começamos falando de impacto ambiental e também tivemos que falar do social, porque percebemos que os impactos também alcançavam a população. O coletivo surgiu quando anunciaram o data center da Meta em Talavera de la Reina. Eu, que sou de Castilla-La Mancha, pensei que se o instalassem lá, instalariam em mais lugares. E não estava muito errada. Na minha região, enfrentamos não só o tema dos data centers, mas também a mineração de terras raras.
Agora, passamos a escutar mais que a IA consome muita água. De que impacto estamos falando?
Até pouco tempo, não sabíamos que os data centers consomem água. A única coisa que faziam para se refrigerar era consumir muita energia. E isso já era um problema climático impressionante e deslocalizado. Contudo, quando surge a inteligência artificial e outros tipos de demandas de energia, como o streaming e os jogos multijogador on-line, as coisas mudam.
Os data centers desempenham três funções. São como uma grande caixa de sapatos, e dentro dela estão os computadores, que precisam armazenar a informação, processá-la e distribuí-la. E é na parte do processamento da informação que a inteligência artificial consome muito mais recursos. Antes o consumo era muito menor, mas agora é um grande problema. Ou seja, cresceram os chamados data centers de hiperescala, que são os que utilizam energia e água para se refrigerar. Em breve, representarão metade dos data centers em todo o mundo.
Aqueles que defendem o uso da IA generativa argumentam que com ela precisam realizar menos buscas do que antes, razão pela qual o impacto ecológico é menor. É assim mesmo?
É absolutamente falso. Primeiro, porque a informação costuma não ser verídica. Segundo, porque uma busca com o ChatGPT consome 10 vezes mais do que uma busca no antigo Google. Imagine a diferença sobre o que estamos falando em tão pouco tempo.
E em terceiro lugar, todas essas visões tecno-otimistas da IA são visões colonizadoras, racistas e vindas de uma posição de privilégio, porque se assume como fato que seu direito de buscar essa informação ou fazer uma imagem do Studio Ghibli está acima do direito de alguém beber água em outra parte do mundo. Ou seja, é um privilégio atroz pensar que temos o direito de usar a inteligência artificial de qualquer forma. Por que alguém se considera no direito de pisotear na saúde, no clima e nos direitos trabalhistas de outras pessoas?
Existem pessoas comprometidas com o meio ambiente que dizem preferir não saber das consequências.
Sim. É que existem pessoas que aderiram ao discurso tecno-otimista e não percebem que este discurso está totalmente imbricado ao capitalismo. E vou retroceder. Na primeira revolução industrial, a escravidão e as primeiras fábricas coexistiam. Nas plantações com escravos, estavam se rebelando, estavam com seus movimentos abolicionistas. E nas fábricas, os movimentos operários também diziam: “ei, queremos direitos trabalhistas, queremos saúde”. Eles não estavam conectados, mas os chefes eram os mesmos.
Então, pessoas como Charles Babbage disseram: vamos usar a automação que separa uma tarefa complexa em tarefas menores de tal modo que poderemos retirar o valor das pessoas. Ou seja, na própria ideia do que é a raiz da IA já existe uma base colonial, capitalista e extrativista. Não é um erro de design, é o design.
É outra invenção do sistema, dizem alguns leitores, porque no que você gastava um dia, agora leva um minuto.
Vou dar um exemplo que eu gosto muito. Sou de uma região de Ciudad Real muito próxima de Almagro. Almagro é muito bonita, com seu teatro e tudo, mas tem uma característica muito curiosa: a renda de bilros. É muito produzida lá porque as pessoas a trouxeram de suas migrações para a Holanda. E é algo que requer uma habilidade manual espetacular. Mas você sabe o que as mulheres de Almagro fazem, enquanto fazem bilros? Conversam entre elas.
O bilro é secundário e conversar entre elas é o principal. O principal é que vão para as portas de suas casas, nas noites mais quentes de verão, para poderem conversar em grupo. E se ouve aquele som que tenho gravado na mente: tuturrutu-tuturrutu. Poderiam fazer isto muito mais rápido, com um tear, com muito barulho, sem falar e, assim, ser eficazes. Mas a eficácia é algo que só importa para o capitalismo.
E por que determinados lugares são escolhidos para esses data centers?
A maioria dos lugares que estão sendo escolhidos são regiões com alto estresse hídrico. Ou seja, desertos. São áreas despovoadas, com baixíssimo poder. Para essas empresas pouco importa que haja água porque vão retirá-las. Possuem contratos preferenciais. E é isso que temos visto. Por exemplo, nos Estados Unidos, você vê o mapa das regiões secas, onde haveria um cowboy vagando por lá, e é onde estão todos os data centers. Arizona, Virgínia…
Na Espanha, Aragón é de longe a região em que mais está crescendo. A próxima será Castilla-La Mancha. E depois Andaluzia. Madrid e Barcelona têm os data centers antigos, pois nelas o terreno é mais caro e não é rentável para eles. Basicamente, esses data centers de hiperescala irão para a Espanha despovoada.
Alguns governos também promovem esses data centers. Deveria ser exigido que as empresas informassem o uso de água que a sua atividade acarreta?
Há uma diretriz europeia aprovada em setembro do ano passado que diz que elas precisam informar o quanto gastam, mas não está sendo aplicada. Sabe aquele meme sobre a independência da Catalunha? Primeiro sim e depois não? Bom, quando Escrivá, como Ministro da Transformação Digital, disse na mesma notícia que iriam legislar sobre a IA e os data centers para que não consumam tanta água e que seu uso seja transparente, eu disse: “Bom!”. Mas, na sequência, acrescentou: “E então vamos criar um kit digital para que todos os autônomos, pequenas empresas, utilizem a IA”. E eu disse: “Não!”. Há um problema com a transição ecológica e digital…
E o que aconteceu com o decrescimento? Voltou-se a escutar muito quando a Rainha Letizia perguntou. E agora?
Eu a escrevo diariamente, muitas vezes. Nós, por exemplo, falamos de decrescimento digital. Há pessoas que usam os termos permacomputação ou ecofeminismo de dados, como Ana Valdivia. Há muitas formas de abordar como poderia ser um mundo com outro tipo de tecnologia.
Em 'La Marea', que também saiu das redes do 'mal', ficamos animados em ouvir isto.
Claro. Não precisamos estar nesses outros lugares do mal e alimentar o mal. Somos nós que criamos os conteúdos e que queremos interagir. E para essas duas coisas não precisamos dessas ferramentas do mal.
Mas é difícil em meio à grande onda.
O erro é ver individualmente. Eu luto há 25 anos, então, para mim é medianamente fácil. Mas você se lembra da questão da pegada de carbono? Agora, estão tentando fazer a mesma coisa: transferir para as culpas individuais. Mas não temos poder de modo individual, tampouco em uma sociedade digital. Temos poder no coletivo.
Um exemplo da nossa capacidade de ação é o que está acontecendo nas escolas. As associações de famílias estão se unindo e fazendo acordos contra as telas, que não permitirão que seus filhos e filhas utilizem celulares até os 16 anos. Dessa forma, sim, você consegue tirar seus filhos da tela. É o que eu te dizia antes sobre os escravos das plantações na Jamaica e os luditas em Londres. Não se conheciam, mas eu, por exemplo, minha próxima reunião é com alguém da Irlanda. E eu falo diariamente com muitos coletivos, franceses, portugueses... É uma cascata de ativismos que vão se levantando, e cada um faz isso porque viu outro e se inspirou.
E atuando.
Sim, porque além da parte da visibilização, já estamos com a parte da luta. Por exemplo, entramos com ações coletivas, junto com Ecologists en Acción, contra os data centers da Amazon. Que as atuações tenham consequências.
Em resumo: é impossível ter IA sem o consumo de água?
Mesmo que você resolvesse o problema aqui com os data centers, continuaríamos tendo uma cadeia de impactos ecossociais em toda a cadeia de fornecimento, em outra parte do globo, ou seja, seria impossível.