21 Mai 2025
"O europeu deve se desvincular da primazia autorreferencial do “nós” e migrar, despojado e desarmado para a alteridade dos outros. Uma aventura esta, cheia de incógnitas, que o Catolicismo, também na sua versão latino-americana, tem dificuldade de encarar, porque comporta um corte desconstrutor de hábitos imperiais, fardos doutrinais e rituais seculares", escreve Flavio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), maio de 2025.
Francisco e Leão, dois papas que, por coincidências análogas, vêm do “fim do mundo”, do Novo Mundo, descendentes dos europeus, que, a partir de 1492, invadiram este outro mundo e, mais recentemente, a partir do século XIX, netos de migrantes, famílias de pobres em fuga da Europa, que vieram para a América do Norte e a América Latina. Pobres, que, porém reproduziram o estilo genocida dos primeiros colonizadores europeus, ou ignorando a tragédia da colonização, como nos Estados Unidos, ou dando a ela continuidade com o extermínio dos nativos, para se apropriar de suas terras, como no Chile, Argentina, Sul do Brasil...
Por isto, resulta hipócrita a vulgata, ainda hegemônica, que descreve os dois papas, Jorge e Francis, como sendo representantes da periferia da Europa, de um sul do planeta explorado e inferiorizado pelo sistema capitalista, ocultando a responsabilidade das elites europeias, que dão continuidade ao colonialismo, pecado originário da modernidade ocidental, em que o cristianismo, católico e protestante, foi promotor e avalista.
Que eu saiba, até hoje, nunca as elites eclesiásticas abandonaram a fundamentação neotestamentária, que transformaria os protagonistas da cristandade colonial em cidadãos da Galileia. Em suma não houve a mínima contestação do eurocentrismo dominante e das culpas históricas das Igrejas. E eles são de fato descendentes dos conquistadores da primeira hora e dos massacradores mais recentes dos indígenas da Abya Ayala.
Católicos da Argentina e do sul do Brasil, a chamada terceira geração, têm boas chances de ser netos de assassinos de indígenas. E sabemos que este massacre não é coisa do passado. Que o digam, entre todas as outras nações, os Guarani Kaiowa do Mato Grosso, diariamente violentados pelo empresários do agronegócio, famílias com sobrenomes europeus, sobretudo italianos.
Recentemente, as teologias da libertação conseguiram semear as evidências que condenavam as cristandades como responsáveis da tragédia colonial, apelando para um processo de conversão, que não podia ser reduzido ao pedido póstumo, inútil e irrelevante, do perdão, como no caso de Galileu Galilei, mas apontavam para um renovado jeito de ser Igreja, além do pesado fardo de séculos de traição do evangelho de Jesus, além dos testemunhos heroicos, isolados, mais ainda catolicamente eurocêntricos e supremacistas, dos de Las Casas [1] e Montesinos. Nada, porém, aconteceu até hoje.
Aliás, faz-se necessário lembrar o que aconteceu em Porto Seguro, Bahia, no dia 22 de abril de 2000, no evento programado para ser uma celebração dos 500 anos do “descobrimento” do Brasil. A intenção governamental, que espelhava, também naquela época, a história ensinada nas escolas e a opinião pública, era a celebração apoteótica da nação brasileira, numa confraternização com os “descobridores” portugueses, abençoada por uma Missa, em memória da primeira Missa no Pindorama, celebrada, no dia 26, pelo Cardeal Angelo Sodano, Secretário de Estado de Sua Santidade João Paulo II.
Uma festa macabra, que prolongava a tragédia colonial da destruição genocidas das nações indígenas, das culturas que não fossem – e não sejam- brancas e católicas.
Houve a contestação dura e fortemente motivada de muitos povos indígenas, estudantes, Cimi e Pastorais Sociais, militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e do movimento negro e punks – a Marcha e Conferência 2.000, organizada pelo Movimento de Resistência Indígena, Negra e Popular - que, quando tentaram entrar no local do evento, presidiado pela polícia militar, foram duramente reprimidos, com um saldo de sete feridos e cento quarenta detidos. O próprio Presidente do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), o bispo Franco Masserdotti, participava da manifestação e sofreu a violência com que a Marcha foi reprimida, inclusive sendo detido por algumas horas.
Quem nos desvenda com clareza cristalina a mentira do “descobrimento” da América é Enrique Dussel. No livro “O encobrimento do outro” [2], ele apresenta 1492 como a data do nascimento da modernidade, contradizendo a tese de Habermas, que considera a Modernidade um fenômeno exclusivamente europeu, ocultando (encobrindo, também na filosofia) a relação dialética com os não europeus, massacrados e encobertos, desde 1492. Este desconhecimento faz com que boa parte da filosofia europeia apresente o branco europeu como único modelo de humanidade, esquecendo que esta sua identidade fundamenta-se no Outro e nasceu quando o Outro foi inventado, ocultado, conquistado, vencido e violentado, eliminado física e espiritualmente. Encobrimento filosófico, confirmado e argumentado pelos grandes nomes da filosofia europeia, Kant e Hegel, filósofos que esquecem o pecado original do encobrimento do outro, propondo uma interpretação do ser humano como ser humano ocidental. "A história universal vai do Oriente para o Ocidente. A Europa é absolutamente o fim da história universal... A história universal é a disciplina da indômita vontade natural dirigida para a universalidade e a liberdade subjetiva" [3].
O que fazer? Lembrar que todos os pecados da Igreja foram incorporados na agonia do Getsêmani e derrotados, junto a poder da violência e da morte, no Calvário.
Acólitos e acólitas do Kyrios Ressuscitado, o único Senhor, aceitam o chamado para desmascarar e lutar contra a dominação do palácio, do templo e do mercado.
Para começar, o europeu deve se desvincular da primazia autorreferencial do “nós” e migrar, despojado e desarmado para a alteridade dos outros. Uma aventura esta, cheia de incógnitas, que o Catolicismo, também na sua versão latino-americana, tem dificuldade de encarar, porque comporta um corte desconstrutor de hábitos imperiais, fardos doutrinais e rituais seculares.
Temos para fortalecer a esperança uma palavra radical de papa Leão, que nos conforta e anima: "Desaparecer, para que possa aparecer e permanecer o Cristo”,
[1] Nem mesmo um Las Casas enxerga no índio mais do que " crianças imaturas" e "bárbaras", se não forem menos ainda, porque "não chegaram ao uso da escrita" (DUSSEL, 1993, p. 63). Em 1492, cria-se realmente a América Latina. "Quer dizer, os indígenas com suas esplêndidas culturas não têm nenhum significado histórico" (DUSSEL, 1993, p. 66).
[2] DUSSEL Enrique, 1492. O Encobrimento do outro. A origem do mito da modernidade, VOZES, Petrópolis, 1993.
[3] Hegel, Filosofia da História Universal, citado em Dussel, op. cit., p. 17