30 Abril 2025
O Papa Francisco, portanto, não existe mais: ele foi uma criação da história que a própria história acabou consumindo. Tudo o que existe é a individualidade mais íntima de Jorge Mario Bergoglio, e é essa individualidade que o juízo divino escaneou mox post mortem, examinando sua conformidade à lógica que preside a existência do mundo, aquela lógica da harmonia relacional melhor exemplificada pela parábola de Jesus sobre o julgamento universal e que o Evangelho chama de “logos”, o judaísmo de “hochmà”, a cultura grega de “sophia”, o Oriente de “dharma” ou “tao”.
O artigo é de Vito Mancuso, ex-professor da Universidade San Raffaele, de Milão, e da Universidade de Pádua, em artigo publicado por “La Stampa” de 27-04-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Pascal escreveu em meados do século XVII: “o final, um pouco de terra é jogada sobre nossa cabeça, e esse é o fim para sempre”. Assim, aquele grande matemático e filósofo francês, cristão fervoroso, dava voz ao sentimento do mundo diante da morte. No papa Francisco, a terra não foi jogada diretamente sobre sua cabeça, mas sobre seu caixão; mas, no que diz respeito ao que atestam os sentidos, a substância não muda: “fim para sempre”.
As religiões, no entanto, e até mesmo algumas filosofias (principalmente as que se originam do filão Pitágoras-Sócrates-Platão), anunciam outra coisa: que a alma é imortal e, se for considerada justa, entra na vida eterna. Perto do fim da Idade Média, em 1336, o Papa Bento XII publicou uma constituição dogmática (ou seja, o documento papal com o mais alto valor doutrinário, muito superior à encíclica), que ele intitulou Benedictus Deus e sobre a qual escreveu que seria “in perpetuum valitura”, “válida para sempre”. Nela, contra o papa anterior João XXII, que havia adiado a visão beatífica para depois da ressurreição da carne, reservando nesse ínterim para as almas uma letargia semelhante à morte, Bento XII estabelece que a visão beatífica para as almas dos justos ocorre “mox post mortem”, “imediatamente após a morte”. Antes disso, é claro, vem o juízo proferido pelo primeiro e último princípio do mundo, comumente chamado de “Deus”.
Mas como podemos descrever esse “juízo”? E como essa “visão beatífica”? Quando morremos, cada um de nós deixa tudo para trás: não apenas o corpo e os bens terrenos, mas também os afetos, a cultura adquirida, os cargos acumulados e todas as nossas outras conquistas temporais. O mesmo aconteceu com o Papa Francisco, que, precisamente por isso, agora não é mais “papa”, pois o fato de ser papa foi uma criação do tempo e o tempo chegou ao fim para ele, mas voltou a ser simplesmente Jorge Mario Bergoglio. Diante da irrupção da morte (ou seja, do nada eterno ou do ser eterno, mas, em todo caso, “do eterno” como radicalmente distinto do tempo), de acordo com as religiões e algumas filosofias, apenas resiste a essência mais pura da personalidade, tal como foi configurada ao longo da vida: aqueles que fizeram o bem deram uma determinada forma à sua interioridade, aqueles que fizeram o contrário deram outra forma. Isso é o que a humanidade sempre sentiu, começando pelos antigos egípcios com o mito da psicostasia ou pesagem da alma, revivido na Idade Média cristã com a substituição do deus Osíris pelo arcanjo Miguel.
Ora, chegando ao julgamento divino, imaginamos que a forma adquirida pela personalidade posse ser sintetizada em um holograma, em uma espécie de “QR code”, e que esse código seja lido na velocidade da luz pelo scanner celestial do olho divino, permitindo ou não a entrada na vida eterna. Aqui está o juízo divino: em menos de uma fração de segundo, o eterno lê cada ser humano e o reconhece como seu, ou não. Tudo isso para dizer que o Papa Francisco não teve nada a ver com seu funeral de domingo. Tampouco qualquer outro ser humano antes dele teve algo a ver com seu próprio funeral, porque não é possível nenhuma relação entre um evento temporal e alguém que não é mais tempo, mas entrou na eternidade.
O Papa Francisco, portanto, não existe mais: ele foi uma criação da história que a própria história acabou consumindo. Tudo o que existe é a individualidade mais íntima de Jorge Mario Bergoglio, e é essa individualidade que o juízo divino escaneou mox post mortem, examinando sua conformidade à lógica que preside a existência do mundo, aquela lógica da harmonia relacional melhor exemplificada pela parábola de Jesus sobre o julgamento universal e que o Evangelho chama de “logos”, o judaísmo de “hochmà”, a cultura grega de “sophia”, o Oriente de “dharma” ou “tao”. E assim como foi para ele e para os inúmeros seres humanos que o precederam, assim será para cada um de nós, quando o eterno, no momento de nossa morte, nos envolver. Naquele instante, o que poderá ser “escaneado” será apenas aquilo que resistiu à passagem do anjo exterminador do tempo, ou seja, apenas aquilo que de nós tiver adquirido o sabor do eterno. Independentemente de ser papa ou cardeal, ministro ou presidente, crente ou não crente, a interioridade mais secreta de cada indivíduo está destinada a ser examinada pela lógica do bem, a lógica de Deus.
É claro que, se o funeral não teve sentido para Jorge Mario Bergoglio, o teve, e de forma muito relevante, para todos nós que ainda habitamos a história. Para os vivos, o significado de todo funeral consiste na seguinte função tríplice:
1) manifestação de afeto para com o falecido;
2) consolo dos familiares;
3) rito que reúne os seres humanos, permitindo-lhes enfrentar a sempre terrível irrupção da morte.
Com relação ao primeiro ponto, o funeral celebrado no domingo permitiu que os poderosos da Terra e os simples fiéis prestassem homenagem pública ao Papa falecido e constituiu um grande ato de proximidade, afeto e gratidão pelo Papa Francisco. Não por Bergoglio, nesse caso, mas precisamente pelo Papa Francisco, ou seja, pelo cargo institucional que Bergoglio personificou em seus últimos doze anos de vida depois de ter sido eleito no conclave de 2013.
Quanto ao segundo ponto, certamente pouquíssimas pessoas se sentiram inconsoláveis com a morte do Papa Francisco, não há familiares cujas vidas tenham sido tragicamente dilaceradas por sua morte, e mesmo para os fiéis mais devotos que beijam comovidos sua foto presa entre as mãos, a morte do Papa não é remotamente comparável à dor inconsolável daqueles que perdem um filho ou filha. No entanto, fica ainda a tristeza de muitas pessoas pelo fato de o Papa Francisco não estar mais entre nós, e essa tristeza o funeral de domingo certamente ajudou a sublimar. Subjacente a todo funeral está a necessidade humana de ter um rito para poder enfrentar a terrível face da vida, e isso é testemunhado pelo fato de que não há civilização que não tenha ritos fúnebres. Acho que é possível afirmar que os três objetivos inerentes ao ritual fúnebre de domingo foram amplamente alcançados.
Entretanto, permaneceu sem resposta a questão da “visão beatífica”, do encontro da alma com o eterno. É sobre esse possível encontro, de fato, que se joga o sentido da religião, de toda religião. Ao definir a consistência da visão beatífica, o Papa Bento XII escreveu em sua constituição dogmática que as almas “veem a essência divina com uma visão intuitiva e, além disso, cara a cara, sem a mediação de qualquer criatura, sendo a essência divina revelada a elas de maneira imediata, descoberta, clara e evidente”. O que resulta dessas palavras não parece muito empolgante, pois prefigura uma espécie de interminável “paraíso cinematográfico” com a mesma cena repetida ad infinitum, o que, se fosse realmente assim, constituiria uma espécie de prisão dourada da alma individual privada de liberdade e criatividade.
Não, são necessárias outras imagens e outras metáforas, é preciso de menos dogmática e de mais poesia, para que o conteúdo da vida eterna seja, mesmo que remotamente, prefigurado. É uma pena que o Papa Francisco tenha dedicado sua imaginação criativa mais à dimensão horizontal da fé e menos àquela vertical (assim se expressou o Cardeal Ravasi: “Francisco falou pouco da transcendência, a sua palavra desceu às praças, às periferias, em sintonia e em simpatia com o mundo”, Corriere della Sera, 23 de abril de 2025), porque é precisamente o mundo de hoje que precisa não só de solidariedade humana, mas também de redescobrir a gramática adequada para poder ler novamente o mistério do qual viemos e ao qual estamos destinados a confluir. Mais ainda, embora a solidariedade também possa ser praticada com a mesma paixão pelos não-crentes, são apenas os crentes que podem redescobrir como pensar hoje a vida eterna. O ponto de partida para isso são, em minha opinião, estas palavras de Wittgenstein: “A solução do enigma da vida no espaço e no tempo encontra-se fora do espaço e do tempo.”. O filósofo escreveu em itálico “fora” para enfatizar sua importância decisiva. Aquele “fora” no qual agora vive e se regozija a grande alma de Jorge Mario Bergoglio.