27 Setembro 2023
A última vez que conversamos, não faz muito tempo, ele me disse: estou recomeçando a ler Pascal.
A entrevista é de Gian Guido Vecchi, publicada por Corriere della Sera, 25-09-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Amanhã de manhã, o cardeal Gianfranco Ravasi estará entre os oradores chamados para falar na sala de Montecitorio, na cerimônia de despedida civil de Giorgio Napolitano. O grande biblista sorri: “É também uma forma de retribuir a sua presença em Assis, quando como Presidente da República aceitou o convite para participar do ‘Pátio dos Gentios’, no dia 05-10-2012, um diálogo entre crentes e não crentes sobre o tema ‘Deus, esse Desconhecido’".
Como explicar isso a quem pode achar estranho, Eminência?
É um gesto de respeito para com uma pessoa que representou de forma ideal o tema do questionamento, da pesquisa. Outros falarão do político, do jurista, do seu compromisso com a Europa. Mas é justo que também se deseje uma presença, por assim dizer, espiritual. Napolitano sempre se interessou pelos temas da transcendência, mesmo que seja um horizonte que não alcançou. O Deus Desconhecido, a abertura às grandes questões. Como escrevia Wittgenstein: ‘Quis investigar os contornos de uma ilha, mas o que descobri foram os confins do Oceano’.
Alguém dirá: um cardeal numa cerimônia leiga?
Fiquei satisfeito com o convite da instituição e dos familiares. Afinal, é lindo o gesto que o Papa Francisco realizou na câmara funerária: não só respeito institucional, mas também para com um homem que sempre teve dentro de si uma dimensão moral e de abertura que vai além do fenômeno. Nunca esqueçamos que Cristo não hesitava em frequentar ambientes altamente seculares.
Esta é a força do cristianismo: não estar fechados no jardim protetor pessoal, mas ouvir o que está além e o outro que te escuta.
Quando vocês se conheceram?
Em 25-04-1998. Eu era prefeito da Ambrosiana e ele era ministro do Interior, que chegou a Milão para a festa da Libertação. Ele havia pedido para ver a biblioteca e se encontrar comigo. No meu gabinete havia uma ‘relíquia leiga’ que lhe mostrei: o manuscrito Sobre os crimes e as penas, de Cesare Beccaria. Ele ficou emocionado, diante daquele texto cheio de correções e manchas de tinta que falavam do esforço de escrevê-lo. A paixão pela pesquisa...
O momento mais significativo da sua amizade?
O diálogo em Assis. Ele reconstruiu o momento juvenil da sua crise religiosa, mas também a permanência do seu questionamento, as grandes perguntas alimentadas por suas leituras. Ele foi um grande humanista: literatura, filosofia... Ele amava Thomas Mann, citava o começo de José e seus irmãos em alemão.
No Palazzo Giustiniani ele mantinha a Divina Comédia em sua mesa, dizia que precisava ler alguns versículos todos os dias. Quando terminei o meu cargo, pedi a ele que se tornasse presidente da ‘Casa de Dante’ em Roma, e ele aceitou.
Em Assis, Napolitano citou uma frase de Bobbio: “Gostaria de um funeral civil. Creio que nunca me distanciei da religião dos padres, mas da Igreja sim. Passou tempo demais agora para retornar sorrateiramente na última hora".
Extraordinária, mas no caso de Napolitano sempre permaneceu um vínculo com a Igreja, também pelo seu papel institucional, mas não só: penso na amizade profunda e autêntica com Bento XVI.
Ratzinger antecipou a ele a sua decisão de renunciar...
Havia uma sintonia profunda e um dos vínculos era a música. Napolitano gostava de falar de Berg, Schönberg, Berio... Afinal, havia nele uma espécie de espiritualidade leiga. Ele sempre a teve. Certa vez, eu havia feito a resenha de um livro de Pierre Emmanuel, poeta católico que também escreveu versos sobre a resistência francesa aos nazistas. No dia seguinte nos encontramos, ‘a li e fui procurar na minha biblioteca’, e ele me mostrou um livro do poeta. Dentro havia um bilhete dele escrito a nanquim: Nápoles, 1943. Ele ainda era um garoto.
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O cardeal Ravasi, orador no rito laico da despedida de G. Napolitano, presidente da Itália: “Nunca deixou de se questionar” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU