20 Janeiro 2025
Christian Laval é doutor em Sociologia e professor emérito do Laboratoire Sophiapol da Université Paris Nanterre. Foi diretor de programa no Collège International de Philosophie e desenvolveu uma extensa e prolífica carreira acadêmica. Intelectual de reconhecido prestígio e impacto nas ciências sociais, tem contribuído com elaborações complexas e análises críticas a partir de uma perspectiva ampla e comprometida, na contracorrente dos atuais processos de fragmentação e padronização da pesquisa e do saber. Além disso, atua em contextos de mobilização social e é um autor prolífico que reúne complexidade e capacidade comunicativa para além da academia.
A entrevista é de Patricia Amigot Leache e Lorenzo García Martín, publicada originalmente por Cuadernos de Relaciones Laborales e reproduzida por Insurgencia Magisterial, 10-01-2025. A tradução é do Cepat.
Laval é uma referência no estudo da expansão da racionalidade neoliberal nas últimas décadas, bem como na análise das mutações induzidas por essa expansão em vários âmbitos. Em sua obra, o neoliberalismo não é considerado mera ideologia ou uma política econômica favorável ao capital, mas uma estratégia poderosa para implementar no todo uma sociedade concebida como um mercado competitivo, que afeta a própria configuração subjetiva dos indivíduos, que são interpelados a ser “empresários de si mesmos”, capitalizando-se e desgastando-se permanentemente na tentativa de superar qualquer limite.
Junto com Pierre Dardot, sua perspicácia analítica e capacidade de relacionar diversas ferramentas conceituais lhe permitiram propor como chave para esse processo o que chamaram de “dispositivo de desempenho/gozo” e desvendar formas contemporâneas de dominação em diferentes níveis.
Entre suas obras, que se tornaram referências do pensamento crítico, destacam-se A nova razão do mundo: Ensaio sobre a sociedade neoliberal (2009), Comum: Ensaio sobre a revolução no século XXI (2015), Ce cauchemar qui n'en finit pas: Comment le néolibéralisme défait la démocratie [O pesadelo que nunca acaba: Neoliberalismo contra a democracia] (2016) e Dominer: Enquête sur la souveraineté de l'État en Occident [Dominar: Pesquisa sobre a soberania do Estado no Ocidente] (2020). Da mesma forma, para compreender a imposição deste novo modelo subjetivo mencionado, é especialmente interessante El ser neoliberal [O ser neoliberal] (2018).
Há mais de vinte anos, também trabalhou de forma específica na história política da educação e soube ler com perspicácia a transformação dos sistemas educacionais no contexto do capitalismo global. Além de sua atenção ao sistema educacional a partir de A escola não é uma empresa (2004), também dirigiu parte dessa análise para o devir neoliberal da instituição universitária. Entre outras questões, denunciou com veemência, em diversos trabalhos e colaborações, o impacto desta transformação na gestão da força de trabalho e sua precarização, no sentido e nas formas de pesquisar e produzir conhecimento submetido ao mercado e na reconfiguração empresarial de uma instituição pública como a universidade.
Por outro lado, e como parte de seu trabalho acerca das alternativas à lógica capitalista, também apresentou propostas detransformação que são uma referência para pensar um novo sistema universitário, uma universidade construída a partir do “comum”. Nesse sentido, destacamos Éducation néoliberale [Educação neoliberal], escrito junto com Vergne (2021), e o artigo De l’université néoliberale à l’université comme commun [Da universidade neoliberal à universidade como comum] (2021).
Na sequência, expomos a conversa que tivemos com ele recentemente, agradecendo a generosidade de sua resposta e o seu compromisso, tanto com o conhecimento quanto com a resistência e a aposta na transformação da lógica capitalista, lógica que também reconfigurou o ambiente universitário do qual fazemos parte.
Já se passaram duas décadas desde ‘A escola não é uma empresa’ (2004), onde você identificou a mutação dos sistemas educacionais em direção a um modelo neoliberal. Em 2021, mais precisamente, caracterizou o modelo universitário neoliberal como uma universidade ‘empreendedora, gerencial’, regida pela competição e a prestação de contas ao mercado, pela transformação do conhecimento em valor econômico e pela orientação do corpo docente a partir de indicadores de desempenho. Em relação a esta interpelação aos docentes e pesquisadores, e mesmo aos estudantes, para que se tornem sujeitos empresários de si mesmos, recorrendo também, conforme destacou, à pressão para o “uso de si” (2021), no âmbito acadêmico, como você conjuga a relação entre essa superexploração das capacidades - essa “autoaceleração” - com o dispositivo essencial da racionalidade neoliberal que Dardot e você anunciam como “dispositivo de performance/gozo”? Como situar aqui o gozo, levando em consideração o papel fundamental das tecnologias de avaliação, disciplina e monitoramento da atividade acadêmica?
Quando falamos dos “dispositivos de performance/gozo” em A nova razão do mundo, fazíamos referência a Lacan, para quem o gozo não é precisamente o prazer, mas um além que mobiliza o corpo, coloca-o em tensão, força-o a se desgastar e se superar em direção a um horizonte de conquista. Os atletas sabem muito bem disso, experimentam claramente um gozo que não vem sem sofrimento. É isso que podemos ver agora operando na gestão do desempenho, na qual os sujeitos acabam se convencendo de que só “se realizarão” em um sempre mais. Pareceu-nos que isto constituía exatamente a forma de subjetivação que o neoliberalismo implicava como extensão da razão do capital (justamente o sempre mais) ao conjunto das instituições e atividades.
O mundo acadêmico não está livre desta distorção subjetiva, na medida em que o estímulo intelectual inerente à atividade de pesquisa e ensino foi de alguma forma capturado pelos sistemas de gestão de laboratórios e departamentos, pela pressão da concorrência interindividual, pela lógica do valor econômico. Trata-se justamente de transformar os pesquisadores e docentes em “empreendedores/as”, tanto no plano da representação que possuem deles próprios quanto no de suas relações com os outros. Não estou dizendo que todos cumpram com boa vontade. Pelo contrário, existem múltiplas formas de resistência ou fuga. No entanto, ninguém na universidade escapa completamente dos imperativos da publicação, da tirania do índice h e da prática do reporting generalizado.
O modelo universidade-empresa afeta as condições de trabalho e na Espanha, um pouco como em todas as partes, assistimos à piora das condições de trabalho de docentes e pesquisadores, progressivamente precarizados, de modo que a concorrência é a única forma de alcançar certa estabilidade ou não ser excluído. Contudo, essa dinâmica não afetou a todos do mundo acadêmico da mesma forma, o que também reforçou as desigualdades e hierarquias acadêmicas. Para você, como essa nova racionalidade afeta as pessoas que ocupam os cargos mais baixos e instáveis na universidade, os jovens – e menos jovens - que disputam o acesso a recursos e cargos cada vez mais escassos ou que são mantidos em empregos universitários mal remunerados? Como tudo isso condiciona a relação que possuem com eles próprios ou o tipo de mal-estar que experimentam?
A forma de gerir a força de trabalho universitária se caracteriza por um sadismo institucional de uma crueldade cada vez mais extrema, que só pode fragilizar as pessoas que estão comprometidas “de corpo e alma” com a sua vocação. Esta crueldade consiste em explorar a paixão pelo conhecimento e a verdade para melhor confinar os jovens - ou não tão jovens - à condição de subcontratados precários e mal remunerados por muitos anos. Esta exploração da paixão é, na minha opinião, a pior hipocrisia e traição à universidade.
Por um lado, deixamos os e as jovens durante anos sem conseguir planejar o seu futuro, seja profissional ou pessoal. Por outro, mantemos a sua esperança com promessas estatisticamente falsas. Podemos comparar o sistema de contratação para cargos estáveis com uma loteria, especialmente quando garantimos a todos e todas que têm as mesmas chances de conseguir um.
O número de vagas cresce muito mais lentamente do que o número de pessoas candidatas e, ao menos na França, as políticas estão forçando cada vez mais as universidades a cortar custos com pessoal. O sadismo da instituição consiste em envolver subjetivamente aqueles que participam de uma forma ou de outra deste sistema, permitindo esta exploração subjetiva da paixão intelectual. Quantas tarefas ingratas ficam a cargo das pessoas precárias? Quantos cursos nos primeiros anos da formação, que você mesmo não quer fazer, abandona sem pudor? O sistema nos torna cúmplices.
Há tempo você destaca o papel da universidade em relação à produção de saberes e aprendizagens destinados aos mercados globais. Inclusive, que o neoliberalismo constitui também “um regime de verdade” que obriga a certos atos e “procedimentos de manifestação da verdade”. Para você, este regime neoliberal de verdade na universidade consiste na validação pelo mercado: “é verdade, é legitimamente verdade, aquilo que é economicamente eficaz”. Para além disso, que outras especificidades estariam relacionadas à ideia de saber, de verdade, de conhecimento, na universidade neoliberal? Como a reorganização gerencial dela deslocou os sentidos desses significantes? Como tudo isso pode reconfigurar as práticas epistêmicas, metodológicas, e a própria natureza do saber?
Efetivamente, podemos questionar as consequências desse “conhecimento para o mercado”, ou seja, do conhecimento cuja validação ocorre por meio de sua valorização em um mercado. Diríamos, se somos bourdieusianos, que o “mercado de ideias” não é algo novo e que há muito tempo é competitivo. É totalmente certo que o campo intelectual foi profundamente transformado a partir do século XVIII, quando as práticas de “patrocínio” da nobreza e das monarquias deram lugar à competição entre autores formalmente livres para produzir obras para o público. No entanto, durante muito tempo, a universidade escapou desse tipo de competição de mercado, ou apenas participou dela por meio de uma atividade secundária e, às vezes, desvalorizada, a da divulgação. Contudo, a lógica mercantil molda cada vez mais o cerne da produção intelectual e, inclusive, condiciona o reconhecimento institucional.
A lógica do valor econômico modifica a relação com a produção, a formação e, inclusive, a relação consigo mesmo/a. Essas empresas verdadeiramente capitalistas que são as “grandes revistas” científicas norte-americanas são um modelo desse tipo. Fabricam à sua maneira “bens fictícios”, segundo a fórmula de Karl Polanyi.
Por outro lado, a “pilotagem” da pesquisa através de editais nacionais, europeus ou globais levanta sérios problemas em termos de autonomia. A pesquisa perde a valiosa liberdade de definir seus próprios objetos e deixa de lado o que, às vezes, é chamado de “serendipidade”, a descoberta aleatória. Mas, sobretudo, proíbe algo que é ainda mais valioso e comum do que o acaso: o “deslizamento” que permite ampliar o ponto de vista e estabelecer vínculos entre objetos e domínios que nenhuma pilotagem ou orientação nos editais pode prever a priori.
Tudo isso nos leva a questionar não sobre a “qualidade”, que as autoridades políticas acreditam que podem gerir como em uma empresa fabricante de automóveis, mas sobre a originalidade da pesquisa fora do convencional e dos caminhos trilhados. O que realmente preocupa, do meu ponto de vista, é como padronizamos os processos de pesquisa, e isto se dá assim desde a própria redação da tese. Assistimos a uma produção de documentos administrativos muito prescritivos, que se supõe que devem “guiar” os estudantes. Esses “modelos” mais ou menos obrigatórios são contrários ao processo vivo que constitui toda a verdadeira criação. O que estamos presenciando é uma mistura de burocracia e mercado, ou mais precisamente a mobilização de formas burocráticas a serviço do mercado. A universidade realmente encontrou, graças à burocracia neoliberal, a forma de construir sua janela de Overton?
É evidente que a universidade tem sido - com grandes tensões históricas - uma instituição essencial para a legitimação das características de uma ordem social. Atualmente, faz isto por meio da naturalização da primazia do mercado sobre outras esferas sociais e tornando a empresa o modelo-chave para dotar de inteligibilidade o campo psicológico e social. Para você, como tudo isso funciona considerando que o discurso institucional também prega a necessidade de estar a serviço da sociedade, apelando para noções como a de progresso e, inclusive, para a de igualdade e democracia?
Você tem razão, não deveríamos simplificar demais as coisas. A lógica do mercado, por mais poderosa que seja, não afeta o meio acadêmico da mesma forma em todas as partes. Poderíamos traçar uma série de círculos concêntricos ao redor do mercado. Há tipos de formação e instituições que estão diretamente ligadas ao mercado de trabalho (por exemplo, as escolas de negócios) e outras que estão muito mais distantes e protegidas por essa mesma distância: o setor das “humanidades”, por exemplo. Contudo, mesmo os mais afastados do centro se veem afetados pela exigência de “valorização”, mesmo que muitas vezes seja artificial, absurda e irrisória.
O segundo ponto que gostaria de destacar é que cada instituição tem a sua inércia. O discurso do Iluminismo que atribui seu valor emancipatório ao conhecimento não desapareceu completamente. Ainda é compartilhado e incorporado por boa parte dos docentes e pesquisadores, pelos estudantes e também por grande parte dos cidadãos.
A estratégia neoliberal, que gostaria de se livrar deste valor emancipatório para o substituir por uma concepção econômica da formação (o “capital humano”), não tem êxito completo. E o discurso da igualdade social, sustentado pela esquerda, também não desapareceu do mundo acadêmico. A sociologia crítica o apoia de maneira particularmente consistente. O universo do conhecimento é um cenário no qual racionalidades diferentes e até opostas se chocam. A dominação neoliberal ainda está longe de ser absoluta.
Você não considera que a hibridização entre a universidade e o mundo empresarial deslocou a tensão, antes central, entre o papel ideológico da universidade em relação ao status quo e o saber ligado à transformação social e com efeitos políticos de emancipação?
Concordo que se fez tudo o que era possível para mudar as linhas divisórias. Na minha juventude, nós nos perguntávamos como combater as formas ideológicas conservadoras que estavam muito disseminadas nos conteúdos do ensino, mas também nas próprias relações educacionais. Althusser, com Aparelhos ideológicos de Estado, foi um autor central daquela época. E depois, gradualmente, a discussão avançou para a oposição modernidade/arcaísmo. O discurso dominante não era mais em absoluto “conservador” no sentido tradicional do termo, ou seja, apegado ao status quo social e cultural, mas tinha se tornado modernizador. E então vimos alianças estranhas entre certas facções da esquerda e os reformadores neoliberais. Opor-se às reformas neoliberais era, do ponto de vista dos modernizadores, defender a velha instituição reacionária; era ser contra a democratização das escolas e universidades.
Com efeito, penso que neste âmbito, como em outros, especialmente no econômico, a esquerda se deixou enganar pelo significado que atribuiu a esta “modernização” que as “elites” nacionais e a União Europeia queriam. Eu me pergunto agora se não entramos em um novo período e se o discurso conservador mais tradicional, mesmo sobre a moral e as liberdades, não está retornando brutalmente em quase todas as partes. Os ataques da direita às universidades não são mais exatamente os mesmos. Não é mais acusada apenas de criar futuros desempregados, mas de favorecer a ditadura das feministas, de fomentar a homossexualidade e a mudança de gênero. A “guerra cultural” da direita global faz das universidades um de seus principais alvos.
No entanto, ao mesmo tempo, nos últimos anos, podemos notar o desenvolvimento de um campo de estudos críticos em relação a esse processo de neoliberalização das universidades. Ainda que evidente, é importante ressaltar que esses discursos críticos convivem com uma aceitação cotidiana e pragmática das regras do jogo, sem gerar outros efeitos transformadores. Qual pode ser a chave para essa coexistência entre crítica e aceitação? Estamos presos em uma crítica “impotente”?
Concordo com essa observação. As críticas aumentaram consideravelmente, mas não reverteram a neoliberalização das universidades. Sem dúvida, isto responde a razões que não esclarecemos completamente. A primeira é que toda uma parte do mundo acadêmico está tão ocupada por um excesso de funções a cumprir, de tarefas administrativas e tarefas docentes, que o esgotamento resultante não promove a mobilização e a resistência coletiva. Muitas vezes, a fuga costuma ser o curso mais fácil a seguir. A “luta pelo tempo” se tornou muito intensa, sobretudo porque é necessário muito tempo para pesquisar.
Meus colegas costumam me dizer que a resistência se tornou quase clandestina e, em todo caso, muito individual. Uma companheira me disse, inclusive, que sentia que agora precisava se esconder para pesquisar de modo eficaz. A situação deixa você um pouco louco, preso entre a multiplicação de tarefas a ser realizadas e a competição para publicar tudo o que for possível.
A segunda razão é que esta neoliberalização não requer necessariamente uma adesão ideológica a “doutrinas neoliberais”. O neoliberalismo, do modo como está encarnado nas instituições, é uma questão de sistemas e práticas, mais do que de convicções. É claro, encontraremos adeptos nos dirigentes das instituições e no aparelho estatal em geral, mas a maioria dos pesquisadores e professores se veem obrigados a obter fundos para os laboratórios por meio de editais, competem com outras universidades, outros departamentos, outros colegas etc.
Conceitos como o de governamentalidade inventado por Foucault são certamente muito úteis aqui para analisar o que acontece. Esta forma de dirigir os indivíduos é inseparável das modalidades de avaliação, que não são apenas formas de acompanhar e controlar pesquisadores e docentes, ou seja, de restringir sua autonomia, mas formas de infundir a lógica do valor em seu trabalho e transformá-los, objetiva e subjetivamente, em produtores de valor econômico.
Você desenvolveu a relação entre os trabalhos de Bourdieu e Foucault em suas respectivas análises do neoliberalismo. Bourdieu estudou o mundo acadêmico como um campo onde diferentes frações de classe e grupos de faculdades disputam recursos de poder e a legitimação de diferentes formas de hierarquia. Isto significa que as reformas neoliberais não aterrissaram em uma universidade igualitária, comunitária e democrática, mas sobre um terreno de lutas e desigualdades acadêmicas. Você considera que a neoliberalização do mundo universitário estabeleceu novas relações de força nesse sentido, com novas frações e novos princípios dominantes? Considera que há certos perfis que perderam em relação a outros? Qual seria o papel do seu trabalho em tudo isso?
Você tem razão. Um livro como Homo academicus (1984) deveria ser amplamente reescrito com base em novas análises sociológicas empíricas. Já estava um pouco desatualizado quando os textos que o compõem foram publicados. Pessoalmente, não realizei este trabalho de pesquisa, mas já existem várias teses que se concentraram na evolução do ambiente acadêmico. A tendência mais notável na França é o aumento do poder do setor privado e, em particular, do polo “comercial” e “gerencial” dos estabelecimentos de ensino superior. O maior prestígio não é mais atribuído às “grandes escolas” especializadas no poder estatal e no serviço público. Ou, mais precisamente, essas escolas, como a “Sciences Po Paris”, por sua vez, transformaram-se em uma espécie de escola de negócios.
No outro polo desvalorizado, encontramos as universidades de letras, filosofia e ciências sociais. Em termos mais gerais, a universidade como tal tem uma imagem degradada, com exceção das faculdades de direito e medicina. Tudo acontece como se a “reprodução” ocorresse cada vez menos por seleção dentro da formação, segundo a explicação “clássica” das desigualdades educacionais – penso no livro de Bourdieu e Passeron, A Reprodução (1970) – e cada vez mais através das possibilidades de acesso ao setor privado da educação superior. Em outras palavras, o capital monetário das famílias está substituindo o capital cultural como fator dominante nas trajetórias sociais de meninos e meninas.
Dito isto, a universidade ainda tem uma capacidade significativa de refletir sobre o futuro do mundo. E isto deve ser enfatizado de modo contundente. O neoliberalismo não ganhou tudo, de forma alguma. Basta destacar a abundância de publicações acadêmicas que analisam criticamente todos os temas, incluindo a guerra, a destruição ambiental, as desigualdades e, inclusive, as reformas que precisam ser feitas no sistema. A universidade continua sendo o principal local de autorreflexão da sociedade. Isto exige que ela se abra ao conhecimento desenvolvido fora dela, às diferentes correntes críticas nascidas no seio das mobilizações sociais.
É essencial preservar esta capacidade crítica: a universidade está formando as gerações que salvarão o que for possível salvar da cultura crítica ou, ao contrário, que ficarão de braços cruzados diante dos desastres ou, pior ainda, que os agravarão. É com este espírito que concebi quase todas as minhas obras, das que se concentram no utilitarismo de Jeremy Bentham à última obra que Pierre Dardot e eu estamos terminando sobre a “cosmopolítica” e que será lançada no início de 2025.
Em ‘Educação democrática’ (2021), você defende, junto com Francis Vergne, a constituição de uma universidade democrática, na qual a comunidade acadêmica tenha garantida a sua autonomia frente aos poderes econômicos, políticos e religiosos e, portanto, a livre realização do projeto da universidade ilustrada. Além disso, você contrapôs o modelo da universidade neoliberal ao modelo de uma “universidade como comum” (2021). Como seria uma universidade articulada a partir deste comum? Quais resistências e práticas podem nos permitir, agora, avançar nesta via?
A ideia de pensar a escola e a universidade como bens comuns está diretamente ligada ao livro Comum, mas também ao dedicado à soberania estatal, Dominar. A pergunta que Francis Vergne e eu fizemos é muito simples. Em vez de sempre repetir as mesmas análises críticas, agora, devemos partir para a ofensiva em termos de propostas práticas. Este ponto é muito importante já que a luta não é apenas ideológica, como vimos, mas diz respeito a dispositivos, programas e à organização do poder. A primeira condição da universidade é a liberdade acadêmica, que deve ser “incondicional”, para usar uma frase de Jacques Derrida.
A universidade do comum, como a imaginamos, para dizer de forma muito rápida, tem como característica original, entre todos os projetos alternativos (que não são muitos), o fato de incluir todos os níveis educacionais. Aqui, retomamos um projeto que remonta à Revolução Francesa, o de Condorcet. Todos aqueles e aquelas que produzem conhecimento e ensinam são membros de uma mesma instituição. É uma instituição livre, autônoma e aberta à sociedade, que obedece somente às suas obrigações em termos de direitos fundamentais ao conhecimento e à cultura. Os poderes governamentais, as autoridades religiosas e os poderes econômicos ficam de fora dessa instituição, inteiramente dedicada ao conhecimento e à busca das verdades mais prováveis, como dizia Condorcet.
Junto com Francis Vergne, tentei tirar todas as conclusões da questão que nos colocávamos no início: como uma instituição assim pode ser chamada de democrática, ou seja, não controlada pela economia capitalista, mas pelo projeto de uma economia igualitária, ecológica, feminista e antirracista? Em resumo, trata-se de fazer o que os neoliberais fazem, ou seja, pensar uma instituição educacional em termos de propósito e transformá-la de acordo com os fins que desejamos. Contudo, para nós, evidentemente, esses fins são muito diferentes, inclusive, radicalmente opostos aos dos neoliberais autoritários que querem impor sua tirania a todo o campo educacional.