24 Mai 2024
Francisco Milanez é especialista em análise de impactos ambientais e diretor científico e técnico da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), entidade ecológica pioneira no Brasil, fundada em 1971 por ambientalistas como José Lutzemberger. Ele se diz indignado com o que chama de “jogo de palavras” dos que, na sua visão, são os grandes responsáveis pelas enchentes que atingiram o estado e devastaram as vidas de milhões de gaúchos. Com formação em Biologia e Arquitetura e Urbanismo e uma extensa trajetória na luta ambientalista, Milanez sabe do que está falando e não esconde sua opinião. Para enfrentar essa tragédia previsível, não bastam “sincericídios”, diz, referindo-se às declarações muitas vezes exacerbadas ou contraditórias do governador do Rio Grande do Sul. Para o biólogo, Eduardo Leite (PSDB) deve ser duplamente penalizado, pela Justiça e pela população. “Ele bate e esconde a mão. É uma pessoa perigosa, porque foi o governador que mais destruiu a lei ambiental na história do estado e com essa destruição, deu a senha para aqueles que gostam de desmatar e destruir o meio ambiente. Liberou geral e deu no que deu”. Para ele, parte da imprensa local passa pano para o governador ao engolir explicações como a adaptação da legislação ambiental do RS às leis federais. “A lei estadual não pode ser mais concessiva que a federal”. Da mesma forma, Milanez defende a responsabilização do prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB) por omissões que contribuíram com a inundação da capital.
A entrevista é de Marcelo Menna Barreto, publicada por Extra Classe, 23-05-2024.
Em recente entrevista ao programa Roda Viva (TV Cultura, 20 de maio), por ocasião da tragédia que assola o Rio Grande do Sul, o governador Eduardo Leite (PSDB) afirmou que não é um negacionista e que a flexibilização que promoveu em questões ambientais no estado foram para uma adaptação à legislação federal. O que o senhor pensa sobre isso?
O governador tem feito constantemente esse jogo de palavras e eu diria que o marketing é o forte dele. Ele bate e esconde a mão. É uma pessoa perigosa, porque foi o governador que mais destruiu a lei ambiental na história do Rio Grande do Sul. E ele se diz quase que ambientalista! Afirma coisas que parece que nem tem uma formação jurídica; não demonstra, pelo menos. Por exemplo, adaptar a lei estadual à lei federal é a maior prova de ignorância em Direito, já que a lei estadual só pode ser mais restritiva. Se a gente fosse fazer as leis estaduais iguais às federais, simplesmente fecha a Assembleia; porque não serve para mais nada. Já que a lei estadual não pode ser mais concessiva, como é que ele sancionou ilegalmente uma ou duas semanas antes da enchente a liberação da construção de barragens, reservatórios de água dentro das áreas de proteção permanente, o que não é permitido pela lei federal?
No mínimo, contraditório?
Então, há uma total desconexão com as ações e com o discurso. E isso é assustador, porque pelo menos as pessoas, como a que ele chegou a apoiar, o Bolsonaro, diziam o que iam fazer e faziam aquilo. Agora, dizer uma coisa e fazer outra, me parece muito mais controverso e até mais complicado de combater. Ele (o governador) tem responsabilidade sobre essa catástrofe. Não só com as leis que destruiu, como a lei de agrotóxicos, e o código que sancionou recentemente que derrubou um código inteiro de meio ambiente do estado que era uma construção feita em dez anos, com a sociedade inteira participando. Ele destruiu em 74 dias! Então, ele tem muita responsabilidade sobre essa catástrofe. Eu diria que a maior responsabilidade dele é o que eu chamaria de mensagem simbólica. Quando um governante vai contra o meio ambiente e destrói as leis ambientais, ele está autorizando os cidadãos de forma tácita e é responsável pela destruição ambiental em outras áreas paralelas. Mostra que não há valor no meio ambiente e aí os seguidores dele acreditam nisso.
Acredita que a imprensa local tem desmentido e confrontado o governador como deveria?
Quanto à imprensa, minha preocupação é que tem que haver firmeza, porque, uma pessoa que não assume as coisas que faz precisa de jornalistas, de entrevistadores fortes que a confrontem, que a coloquem numa sinuca de bico, que a ponham na situação de mostrar a que veio. Só os sincericídios do governador, de reconhecer que tinha toda a informação e que não deu prioridade para a questão das enchentes, assim, ocasionando todo esse sofrimento, não adiantam. Tem que assumir as responsabilidades verdadeiramente. Não é dizer que tinha outras prioridades; isso não existe para uma coisa importante como a segurança da sua população. O que acho que deveria acontecer é o governador vir a ser responsabilizado judicialmente. Responsabilizado também pela imprensa e pela população no sentido de consciência e crítica.
Há quem diga que as mudanças promovidas por Leite na legislação ambiental não foram necessariamente as responsáveis pela tragédia. Ele próprio negou esse impacto.
Faz parte do discurso de “não é hora de buscar culpados agora”. É o discurso que os responsáveis, os culpados têm feito. Obviamente, eles sempre farão esse discurso. O processo de retenção da chuva ou aceleração dela depende das áreas protegidas e o governador, dias antes dessa enchente, sancionou uma lei permitindo construir em Áreas de Proteção Permanentes (APPs). É um absurdo! É uma lei ilegal, inclusive. Mas, antes disso, ele já direcionou, lá no começo do seu governo, a destruição de áreas de banhado, áreas de encosta, áreas de preservação, áreas ao redor de áreas de preservação. É um conjunto inimaginável de coisas que foram permitidas; destombamento da reserva da Mata Atlântica da Unesco, que inclui todas essas áreas. Então, é um conjunto de coisas que freiam, que absorvem a chuva, que evitam erosão, que desaceleram a água, evitando com isso que o rio encha demais e faça uma enchente.
A responsabilidade é pelo conjunto da obra, então?
Sim! É um conjunto de responsabilidades que têm que ser cobradas. É admirável que o governador não assuma a responsabilidade sobre a destruição da legislação ambiental gaúcha; de toda uma história de 53 anos de luta ambiental. Leite é o governador que mais destruiu a legislação e, com isso, na minha opinião, volto a dizer, deu o exemplo de que está tudo liberado para aqueles que também gostam de destruir. O conjunto dessa responsabilidade tem que ser cobrado.
Além da responsabilidade do governador, qual a sua opinião sobre a atuação do prefeito de Porto Alegre em relação à catástrofe?
Continuo com o meu entendimento que a responsabilidade maior é do estado. Porque é ao estado que cabe gerir a área rural, incentivar o desenvolvimento das regiões, dar novas feições, cobrar, fiscalizar a parte ambiental, a destruição, o licenciamento. Quer dizer, tudo isso é responsabilidade do governo estadual e esse é um evento estadual, não é um evento local. O governador foi e tem sido durante a segunda gestão, inclusive, um grande inimigo do meio ambiente. Propôs até uma mina a céu aberto há 13 quilômetros de Porto Alegre, prejudicando e pondo em risco toda a capital. Olha que ele não negou a licença; apenas arquivou, esperando uma hora melhor. A gente conhece bem isso. Quanto ao prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, é mais claro e extremamente didático, e ele tem que responder por isso também.
Por quê?
Porque, simplesmente, a prefeitura tem, há mais de 50 anos, todo um sistema de proteção contra águas que atinjam até seis metros de altura e essa enchente chegou a 5,33 metros. Portanto, não chegou ao limite e o centro, casas e até o aeroporto foram inundados. As pessoas perderam suas casas, suas vidas, suas produções, gratuitamente, já que todo o sistema estava preparado para isso e a prefeitura, simplesmente, não fez manutenção. Tendo dinheiro em caixa! Se orgulhando de superávit e não fez a manutenção! Não há desculpa decente se é que pudesse ter para não ter feito, lembrando que os técnicos avisaram, pediram mudanças. Pequenas mudanças! Baratíssimas e que iam evitar que Porto Alegre tivesse sequer acumulado águas nas ruas. Na capital há todo um sistema de bombas, de eclusas, diques e até um muro que poderiam ter defendido plenamente grande parte da cidade.
Como pensar em uma retomada das políticas de proteção ambiental com uma maioria conservadora nos legislativos?
Quanto à situação atual do perfil legislativo, é importantíssimo dizer que qualquer mudança tende a ser para o pior, porque existe o que é assim chamado de BBB, bancada do Boi, da Bala e da Bíblia. É uma maioria nos legislativos, pelo menos no nosso estado, na federação; na municipalidade também da capital. Essa bancada é contrária ao meio ambiente ou a favor da liberdade total de especulação. Então, nós temos pessoas que são eleitas pelo povo, mas não representam os interesses do povo. Representam os interesses contrários à maioria do povo. Essa é a situação atual. As pessoas, essa crise, talvez as ajude a refletir em quem elas votam e procurar nos partidos pessoas que tenham simpatia por elas; declarem e tenham compromissos, que depois devem ser cobrados, devem ser assinados e cobrados; compromissos com a saúde das pessoas e com o meio ambiente. Porque pessoas que fomentam a livre exploração, a livre poluição, a livre destruição do meio ambiente, não têm amor nem por si, nem pelos seus familiares, muito menos pelos que votaram nelas, por seus eleitores. E isso, então, tem que mudar. Tem que mudar porque, às vezes, a gente elege Executivos decentes que não conseguem trabalhar quando são eleitos legisladores que priorizam interesses próprios ou de grupos de poder contra os interesses da população em geral. Isso tem que mudar.
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“A culpa é de quem destruiu a legislação ambiental e liberou geral”. Entrevista com Francisco Milanez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU