28 Novembro 2023
Cheia em Porto Alegre levanta discussão sobre as condições do sistema de proteção contra enchentes diante das mudanças climáticas.
A reportagem é de Danielly Oliveira, publicada por ((o))eco, 24-11-2023.
A nova cheia do Lago Guaíba fez as atenções se voltarem para as comportas do Cais Mauá e todo o Sistema de Proteção Contra Enchentes de Porto Alegre (RS). O fechamento dos portões foi acionado na segunda-feira (20/11) pela manhã, pela terceira vez no ano. Mas ocorreu em um momento em que as águas do Guaíba já invadiam pontos da zona norte da cidade, onde o lago atingiu o maior nível em mais de 80 anos e chegou aos trilhos dos trens que ligam a capital à região metropolitana. A marca de 3,46 metros do Lago Guaíba é a maior desde a histórica enchente de 1941, quando chegou a 4,75 metros.
A Defesa Civil enfrentou problemas para fechar a comporta de número 12, porém todo o sistema ficou vedado por menos de quatro horas. Ainda durante a tarde de segunda-feira, a comporta de número 13 não conteve o fluxo e cedeu. Na terça-feira pela manhã a água já tomava as ruas de bairros da zona norte da capital gaúcha. O Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae), informou à imprensa que não houve a vedação com sacos de areia na comporta que falhou – procedimento realizado nas demais aberturas –, ocasionando o vazamento para as vias do entorno.
Construído no início dos anos 70, o Sistema de Proteção Contra Enchentes compreende 60 quilômetros ao longo do rio Gravataí, Guaíba e nos arroios, além dos 2,6 quilômetros do Muro da Mauá, localizado no centro de Porto Alegre. A obra, estrutura responsável por proteger a cidade contra inundações, é uma cortina de concreto construída entre 40 e 100 metros do Guaíba e com seis metros de altura — e mais três metros abaixo da terra.
Um dos muros do Sistema de Proteção Contra Enchentes de Porto Alegre. (Foto: Luciano Lane | PMPA)
Em toda a extensão do sistema existem 14 aberturas que permitem acesso entre as áreas protegidas e as margens do Guaíba, dotadas de comportas que são fechadas em caso de inundações. As áreas baixas da cidade são drenadas para o lago através de um sistema de 18 estações de bombeamento.
Apesar do ponto mais conhecido do sistema ser o Muro da Mauá, ele representa apenas 4% de toda a extensão dos diques de proteção da Capital, com 2.647 metros de comprimento. O muro foi construído com três metros de altura, além de outros três metros abaixo do solo para reforçar sua sustentação, totalizando seis metros de estrutura em concreto armado.
De acordo com Fernando Dornelles, doutor em recursos hídricos e professor adjunto do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), as comportas do Sistema de Proteção desde os diques de terra a cortina de concreto (Muro da Mauá) são estruturas adequadas, mas carecem de manutenção. “Não é opinião, é fato, estamos vendo água passar por elas”, diz.
Em 2019, a Secretária Municipal de Serviços Humanos anunciou que dos 14 portões que fazem parte do Sistema de Proteção Contra Cheias de Porto Alegre, 12 necessitavam de manutenção. Trava-se basicamente de limpeza geral do entorno, pintura, lubrificação, raspagem de pontos oxidados e substituição das partes não recuperáveis. As obras não ocorreram.
Em 2021, em carta aberta à Prefeitura, representantes de diversas entidades da engenharia defenderam a afirmaram que era “imprescindível a manutenção e preservação do grau de segurança e eficiência do Sistema de Proteção contra Inundações da Região Metropolitana de Porto Alegre, visto que a supressão – mesmo que parcial – ou redução de sua altura, tornaria a Região Metropolitana altamente vulnerável às imprevisíveis cheias e suas nefastas consequências, com prejuízos de complexa mensuração.”
Quando foram usadas em setembro passado, as comportas apresentaram dificuldades para serem fechadas devido ao chão asfaltado e outras estavam sem trilhos. Aquela cheia, no entanto, não subiu a ponto de fazer tanta água passar pelas comportas. “Mas não houve uma preocupação adequada em verificar os problemas do sistema, que são usados como argumentos para desqualificar a existência de todo o sistema de proteção”, aponta o professor da UFRGS.
A comporta de número 13 rompeu, causando inundações na área do porto e no Quarto Distrito da Capital Gaúcha. (Foto: Evandro Leal | Folhapress)
2023 é um ano marcado por grandes enchentes, ciclones extratropicais, granizos e vendavais em todo o Rio Grande do Sul, que causaram mortes e prejuízos materiais. Para especialistas, a situação pode ser explicada pela soma de múltiplos fatores: o ciclo natural do clima gaúcho, o El Niño e as mudanças climáticas estão entre eles.
Neste cenário, é trivial fazer com que todo o sistema de proteção contra cheias funcione bem. A manutenção destas estruturas tem que ser levada a sério, principalmente em um cenário com eventos climáticos cada vez mais frequentes, como apontam especialistas. Inclusive, ainda pode haver um agravamento da enchente atual caso ocorra mais chuvas no Vale do Taquari, que, junto com as águas que ainda estão vindo do Rio Jacuí, podem chegar nos próximos dias no Lago Guaíba. Em 1941, quando aconteceu a maior cheia da história, foi exatamente isso que ocorreu: uma sequência de chuvas que foram enchendo os rios gradualmente e teve seu pico em um dia de muito vento.
Fernanda Damacena, doutora em direito ambiental pela Universidade do Vale dos Sinos, explica que para prevenir desastres é preciso conhecer os riscos das cidades e traçar um planejamento de mitigação. “Se não for possível evitar, com prevenção e planejamento é possível mitigar”, afirma. Ela ainda explica que as políticas ambientais são muito importantes para a prevenção de desastres, mas em geral, não são desenvolvidas pensando em desastres. “Mas deveriam, porque quanto mais desmatamento, mais impacto em mudança climática e menos proteção em caso de desastre”.
Inundações fazem parte do cotidiano histórico de muitos municípios do Rio Grande do Sul. Há pessoas que precisam sair de casa todo ano – e às vezes mais do que uma vez. “Há uma indevida naturalização do desastre [ambiental] de forma geral”, afirma Damacena. Esses eventos climáticos extremos apresentam um novo desafio para a gestão dos recursos hídricos, exigindo medidas de prevenção contra cheias e enchentes, especialmente nas áreas onde o sistema de proteção não chega.
Foto: Pedro Piegas | PMPA.
Na Zona Sul e na Região das Ilhas, não há estruturas de proteção contra cheias do Guaíba. Especialistas sugerem que, em ambos os espaços, haja um sistema de monitoramento das chuvas e do fluxo dos rios vizinhos em tempo real. Como a água não respeita os limites políticos dos municípios, Damacena defende que as decisões precisam ser tomadas em uma escala regional que permita compreender melhor a dinâmica dos impactos dos eventos climáticos extremos e identificar áreas de intervenção para proteger adequadamente toda a população de uma região. Para além disso, a manutenção do Sistema de Proteção Contra Enchentes também é necessária.
No entanto, o cenário é bem diferente no Rio Grande do Sul. Para se ter uma ideia, o orçamento do governo estadual para 2024 define uma quantia de 115 milhões para enfrentar os eventos climáticos no Estado no próximo ano. A cifra representa menos de 0,2% do orçamento total aprovado.
O novo edital de leilão do Cais Mauá à iniciativa privada prevê a derrubada do muro e a construção de um elevado na beira do Cais com a mesma intenção de conter as cheias no Guaíba. A construção, contudo, é alvo de críticas. “Remover o sistema de proteção é uma decisão que creio não ser mais aventada, todos estão vendo a importância do sistema”, afirma Dornelles.
A revitalização do Cais Mauá pretende substituir o Muro da Mauá por uma arquibancada entre os armazéns e o Lago Guaíba até a cota 4,26m. E sobre ela um complemento removível que vai até a cota 6,00 m, dando o mesmo nível de proteção do muro. “As estruturas removíveis propostas de fato funcionam, os fornecedores possuem certificação que mostram que o produto é capaz de resistir ao nível das águas. Porém é sem dúvidas um sistema bem mais vulnerável que o muro de concreto”, explica o professor. Para ele, modernizar o sistema de comportas não é necessário, basta serem resistentes aos esforços de empuxo da água e não apresentarem vazamentos.
A reportagem fez questionamentos ao Departamento Municipal de Água e Esgotos sobre a manutenção das estruturas que apresentaram falhas, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem. Desde 2019, o Dmae cuida da manutenção e operação das comportas e das casas de bombas elétricas do sistema de contenção de enchentes de Porto Alegre.
Mais de 30 mil pessoas estão fora de casa e cinco morreram depois das chuvas dos últimos dias no Rio Grande do Sul. A Prefeitura de Porto Alegre decretou situação de emergência pela cheia histórica do Lago Guaíba na tarde de terça-feira (21/11). A medida foi publicada no Diário Oficial e simplifica contratações para mitigar o impacto da cheia na população.
Eldorado do Sul, perto da capital, tem a situação mais alarmante, onde o Rio Jacuí invadiu boa parte da cidade e uma mulher morreu afogada dentro de casa. Na região, são quase 6 mil pessoas forçadas a sair de suas residências.
Segundo o monitoramento do Centro de Operações da Defesa Civil, há previsão de temporais acompanhados por granizo no sul gaúcho nos próximos dias. De acordo com a MetSul Meteorologia, a tendência é que as águas do Guaíba baixem nos próximos dias, mas ainda seguirá com marcas muito acima do normal.
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Sistema contra enchentes em Porto Alegre não foi projetado para eventos extremos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU