09 Janeiro 2025
Por trás de um título um tanto provocativo – Contra el feminismo blanco (editora Continta me tienes) - há um livro para pensar e aprender. É assinado por Rafia Zakaria, uma advogada feminista paquistanesa, escritora, colunista em diversos meios de comunicação, que cansada de ver como o racismo e a branquitude são reproduzidos na academia, no ativismo, nas ONGs e também no feminismo, propôs-se a escrever um manual não apropriado para os ofendidinhos ou ofendidinhas ocidentais.
Zakaria escreve a partir da experiência concreta e de todo o conhecimento e experiência acumulado, não só da teoria, mas da prática, que ela afirma ser fundamental, acima de noções elitistas do feminismo que distanciam muitas mulheres dele. Há algumas semanas, a advogada e escritora esteve em Madrid para participar do ciclo de pensamento organizado pela associação Mulheres da Guatemala e La Casa Encendida.
A entrevista é de Ana Requena Aguilar, publicada por El Diario, 06-01-2025. A tradução é do Cepat.
Como você define o feminismo branco e por que acabar com ele?
Um dos conceitos centrais do livro é a ideia de branquitude, não no sentido da cor da pele, mas como um sistema de dominação. A branquitude é o sistema de colonialismo e subjugação, o desejo de manter esse sistema e a sua centralidade no nosso mundo, de modo que, direta ou indiretamente, o status quo seja mantido. Implica colocar as pessoas brancas essencialmente no centro e priorizar as suas preocupações e agendas.
A razão pela qual escrevi este livro é que sentia que havia muitas interações atravessadas pela raça ocorrendo, mas, no entanto, funcionavam sob a ideia de que em geral se dá em igualdade de condições, com a mesma quantidade de poder. E isso estava completamente errado. Hoje em dia, é muito raro que alguém seja abertamente racista, a maior parte do racismo acontece sob a superfície. Portanto, este conceito busca criar um vocabulário que permita que isso venha à luz para que as pessoas entendam que todas as nossas interações estão repletas de diferenças de poder e se não as reconhecemos, então, participamos disso.
Como você diria que o feminismo branco funciona, com quais formas específicas a branquitude é reproduzida, também no feminismo?
Um dos principais problemas é que as mulheres brancas assumem que a cultura branca, ou seja, a cultura da Europa Ocidental e norte-americana, é mais adequada à igualdade de gênero e à liberdade das mulheres do que outras culturas. Vou dar um exemplo que acabou de acontecer comigo. Há alguns dias, eu estava conversando com um grupo de mulheres, a maioria delas brancas, e me perguntavam onde eu estive recentemente. Contei que acabava de voltar do Catar e imediatamente uma delas disse: ‘oh, a situação das mulheres lá deve ser muito ruim, deve ter sido difícil para você estar lá’.
Quando as pessoas ficam sabendo que sou muçulmana, sei que começarão com: ‘o que você acha do véu?’. Não consigo dizer para você o número de vezes que, como mulher parda e mulçumana, sofro esta suposição de que venho de uma cultura que é extremamente repressiva, onde as mulheres não têm ideia de como lutar pela sua liberdade, então, temos que fazer isso por elas e lhes dizer o que fazer.
Não acredito que as mulheres brancas tenham uma intenção maliciosa ou que façam isso para que eu me sinta inferior, mas agem assim. Expõem a suposição de que outras mulheres são de alguma forma inferiores e têm menos ideia do que é ser feminista, quando a verdade é que as mulheres nessas culturas, como com as que cresci no Paquistão, lutam tanto para sobreviver como mulher que são lutadoras melhores, grandes e fortes, porque sabem o que é enfrentar os homens o tempo todo.
Existem muitas mulheres brancas que tendem a falar muito e a ocupar todo o espaço, e é muito difícil para elas ceder esse espaço para que as mulheres pardas, negras, asiáticas etc. também possam falar. Embora essas mulheres sejam a maioria, têm bem pouca voz dentro do movimento feminista global.
Você dá o exemplo do sufragismo, que sempre aparece como um marco na história do feminismo, conforme costumamos ouvir e relatar.
Se sabemos alguma coisa sobre o sufragismo é, claro, sobre o sufragismo branco. O feminismo não começou quando as mulheres brancas decidiram lutar pelo voto ou na Revolução Francesa. Essa é justamente a questão: que marco consideramos feminista? Se você tem uma mulher branca e olha apenas para as características de sua vida e de si mesma, e se essas são as únicas mulheres em que você está pensando quando pensa no feminismo, então, é isso que você encontrará, pois outras características que mulheres pardas, negras etc. podem ter nem sequer fazem parte do marco, então, ficam de fora.
Começar o seu marco com o movimento sufragista deixa de fora milhões e milhões de mulheres e muitíssima história. A consequência, e digo isto como alguém que cresceu no Paquistão, é que se você é uma garota paquistanesa pensa que ali de modo algum houve feministas, que todas estão na América ou na Europa. Isto é simplesmente incorreto, e se estamos tentando criar um movimento feminista que seja inclusivo, mas continuamos agindo assim, naturalmente muitas dessas mulheres e garotas dirão: ‘não temos nada a ver com isso, não se aplica às nossas vidas’. Quando você cria uma história que deixa tanta gente de fora, naturalmente essas pessoas não vão se interessar pelo propósito dessa história.
No livro, você faz uma diferenciação muito interessante entre os termos ingleses ‘expertise’ e ‘experience’, que em espanhol seria como diferenciar entre as mulheres que são especialistas no sentido mais teórico, de ler, escrever, estudar, e aquelas que têm experiências no feminismo, quem vivem a partir de suas feridas e vivências. Quais são as consequências de criarmos essa diferença?
Comecei a minha carreira como advogada, trabalhando com mulheres em um refúgio para vítimas de violência. Tinham perdido suas casas, estavam lá com seus filhos, não sabiam o que aconteceria no futuro e a elas se pedia que demonstrassem um grau incrível de força para basicamente ser capazes de sobreviver. Existem milhões de mulheres em todo o mundo que vivenciam isto em um nível ou outro.
No entanto, ao mesmo tempo, minhas experiências como estudante de pós-graduação em aulas de teoria feminista eram muito diferentes, pois não se falava dos desafios reais que as mulheres enfrentam no dia a dia. Havia conversas teóricas muito profundas sobre o que é o feminismo e sobre se deveríamos incluir isto ou aquilo. Não estou dizendo que essas conversas não sejam importantes, mas me sentia frustrada porque acreditava que era urgente falar sobre o que as mulheres precisam e merecem da sociedade. E não havia urgência nessas conversas.
Tinha a sensação de que essas mulheres se sentiam cômodas em seu papel de teóricas. Também via que no caso das mulheres que estavam criando um importante discurso feminista antirracista dentro do mundo acadêmico, seu trabalho não vinha à luz. Em última instância, queria ressaltar que as mulheres que sobrevivem a estas situações difíceis, suas vozes, devem ser fundamentais para o feminismo.
Considera que essa diferenciação que se faz está de alguma forma relacionada com as tensões e debates feministas dos últimos anos, com a 'luta' para demarcar qual deve ser a agenda feminista e quem pode falar em nome do ‘verdadeiro’ feminismo?
Absolutamente. Em inglês, a palavra que usamos para isso é gatekeeping, o que significa que essencialmente estão buscando controlar quem pertence e quem não pertence. Isto acontece de muitas formas, por exemplo, quando se diz às mulheres que precisam estudar feminismo ou que a sua compreensão das partes teóricas do feminismo é falha ou que não conhecem a definição de feminismo.
Todas essas respostas me parecem discriminatórias e excludentes. É uma forma de manter as mulheres fora do feminismo, de intimidá-las para que guardem silêncio, porque, então, pensam: ‘talvez eu não saiba nada sobre feminismo’. Tira delas a confiança para falar e participar. Por isso, quando as pessoas me perguntam qual é a definição de feminismo, uso uma muito simples: qualquer pessoa que esteja comprometida com a justiça igualitária de gênero e com a transformação das instituições sociais, políticas e culturais para que reflitam essa igualdade. E a prática é crucial. Isso é tudo.
As mulheres devem ser capazes de falar sobre as suas experiências e se conectar a partir delas. E as mulheres que têm menos poder na sala são as que mais deveriam poder falar, porque são as que mais precisam que a sua voz seja ouvida. Seria bom se algumas pessoas parassem de se preocupar tanto com a definição de feminismo e vissem como diferentes tipos de discriminação, alienação e subordinação interagem em suas vidas.
Esta forma diferente de entender ou definir o feminismo está na base da disputa pelos direitos trans, a autodeterminação de gênero e o queer? Ou seja, é a tentativa de definir e controlar o que é o feminismo que está condicionando alguns a apontar isso como um problema, uma espécie de inimigo para as mulheres?
Existe uma conexão muito importante. Pessoalmente, penso que toda a controvérsia em torno dos direitos trans é uma distração. O verdadeiro perigo para as mulheres não são as mulheres ou os homens trans. Isto que se repete para as mulheres nos esportes, por exemplo. O fato é que as oportunidades para as categorias femininas de todos os esportes são muito pequenas em comparação às que os homens têm.
Então, uma forma de abordar a questão seria, talvez, aumentar a quantidade de recursos disponíveis para o esporte feminino. Mas, é claro, ninguém fala sobre isto porque é muito mais fácil que as mulheres briguem entre si e peçam para definir o que é isto ou aquilo. É parte da forma como o patriarcado cria ansiedade interna entre as mulheres, mesmo pelo pouco que possuem. É uma mentalidade de escassez que acontece quando você é subjugada por muito tempo.
Quero dizer, é assombroso pensar diante de todas as coisas que estamos vendo - por exemplo, imagens ao vivo de Marte - que ainda estamos em uma situação em que as mulheres precisam discutir se é importante para elas participar do conselho da sua empresa, enquanto tantos homens sentem a necessidade de se afirmarem e excluírem as mulheres da tomada de decisões, de posições importantes e da formulação de políticas.
Parece um anátema, mas essa é a nossa realidade. E é uma realidade urgente porque estamos em um momento de transformação. Em todo o mundo, os sistemas políticos estão mudando a importância que damos à democracia, à igualdade. E se nós, mulheres, não apresentarmos ao menos alguma aparência de frente unida, na qual insistamos em manter os nossos direitos, será um mundo muito sombrio.
O nível de misoginia no mundo neste momento parece ser maior do quer era em tempos anteriores. Não é só o tipo habitual que sempre existiu, sinto que há muita raiva entre os homens e o desejo real de provocar danos e ver as mulheres subjugadas.
Nos últimos anos, o termo “empoderamento” se tornou um “clássico” dos encontros, das políticas e das medidas sobre igualdade e mulheres. Você é muito crítica em relação à evolução desse termo e à sua aplicação. O que aconteceu com o empoderamento?
Eu o descreveria de duas maneiras. Por um lado, o termo provém originalmente de um coletivo de mulheres indianas que o definiu como o movimento para transformar as instituições sociais, culturais e políticas de modo que reflitam a igualdade de gênero. Disto passou a ser adotado pela ONU e fazer parte de instrumentos transnacionais. O problema é que deixou de ser uma palavra que tinha significado para se tornar uma moda que soava bem e que todo mundo queria colocar em seus documentos.
Agora, pode significar qualquer coisa, da compra de um determinado tipo de sutiã esportivo a lutar contra a guerrilhas armadas na Nigéria. Quando um termo se dilui dessa maneira, infelizmente, provoca muito pouco impacto. Por isso, não sou mais uma grande fã da palavra empoderamento.
Por outro lado, sou colunista de um jornal paquistanês desde 2009. Durante grande parte da guerra contra o terrorismo, eu estive lá e foram investidas quantias incríveis de dinheiro no Afeganistão e no Paquistão nesta ideia de empoderamento. Era uma situação muito difícil: como feminista, você dirige um refúgio e, de repente, o governo dos Estados Unidos quer oferecer 40 milhões e você quer aceitar, mas, ao mesmo tempo, era um feminismo ‘de gotejamento’. Ou seja, você coloca dinheiro de cima e isso permite fazer coisas, mas não há aceitação dos interessados, de baixo. Assim que os Estados Unidos saíram e terminou o subsídio, o projeto acabou.
Colocaram milhões, por exemplo, em projetos para que as meninas afegãs pudessem aprender a andar de skate ou a jogar basquete ou coisas que são boas, mas se falamos de uma sociedade na qual as mulheres não têm educação básica e vivem em zonas muito distantes, separadas umas das outras, sem cuidados básicos de saúde, então, essa priorização está errada. Por que priorizam que joguem basquete, em vez de que recebam as vacinas básicas? Por um lado, você bombardeia a sua aldeia e, por outro, decide que vai construir uma escola em algum lugar.
Entende, então, que isso desacreditou a ideia de empoderamento...
Manchou a ideia de empoderamento e de feminismo para toda uma região do mundo, de modo que agora se você está falando sobre os direitos das mulheres, é algo controverso e considerado inerentemente pró-estadunidense. Este foi o outro motivo pelo qual cheguei à ideia da branquitude, porque o que eu tentava demonstrar é que aquilo que rejeitam é a branquitude, não o empoderamento das mulheres. Quando se fala ou se debate os princípios feministas, imediatamente você é considerada pró-ocidental, pró-estadunidense, anti-Paquistão, anti-Afeganistão.
Por isso, é muito importante separar essas ideias, porque é perfeitamente normal que as pessoas sintam o que sentem em relação à branquitude e ao colonialismo, porque essa tem sido a base da sua subjugação. Mas dizer que todo o discurso sobre a emancipação das mulheres é de alguma forma ocidental é incorreto. Então, agora, o trabalho dentro destas sociedades tem de ser, e está acontecendo, observar as mulheres dentro de suas próprias culturas e saber que travam estas lutas há muito tempo e criar uma espécie de narrativa indígena do feminismo.
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“O problema do feminismo branco é acreditar que a cultura ocidental é a mais adequada para a igualdade”. Entrevista com Rafia Zakaria - Instituto Humanitas Unisinos - IHU