19 Dezembro 2024
Segundo fiscais e procuradores responsáveis por operação, os trabalhadores dormiam sobre papelão e faziam turnos de até 21 horas seguidas. Empresa organizadora do evento foi responsabilizada.
A reportagem é publicada por Leonardo Sakamoto e Diego Junqueira, publicada por Repórter Brasil, 18-12-2024.
Uma força-tarefa de auditores fiscais do trabalho da Superintendência Regional do Trabalho no Rio de Janeiro e procuradores do Ministério Público do Trabalho da 1ª Região concluíram, nesta semana, a operação que resultou no resgate de 14 pessoas submetidas a condições de trabalho análogo ao de escravo na edição 2024 do Rock in Rio. A empresa organizadora foi diretamente responsabilizada, mas nega as acusações.
De acordo com informações divulgadas em coletiva à imprensa na manhã desta quarta (18), o resgate teve início em 22 de setembro durante fiscalização para verificar se os expositores, comerciantes e contratantes de músicos estavam cumprindo as obrigações trabalhistas.
Parte dos trabalhadores eram levados a dobrar a jornada por dias seguidos na esperança de receber mais, chegando a trabalhar por 21 horas em um único turno e descansando por apenas três horas.
“Eles começavam a jornada às 8h e iriam até as 17h. Quando dava o horário, o supervisor perguntava: quem quer dobrar? E eles iam até as 5h da manhã. O problema é que já retornariam três horas depois. Então, em razão dessa oferta de pagamento maior, falavam sim. E onde é que dormiam? Lá, no chão, em cima de jornal, papelão, usando mochila de travesseiro, utilizando um banheiro improvisado, absolutamente um lixo”, afirmou à coluna o auditor fiscal do trabalho Alexandre Lyra, um dos coordenadores da operação.
Os fiscais do trabalho encontraram os 14 trabalhadores precariamente sobre papelões, sacos plásticos ou lonas, alguns com cobertores, demonstrando que havia um planejamento prévio para pernoitar no local. Parte das trabalhadoras resgatadas tomavam banho de canequinha no banheiro feminino pela falta de chuveiro. Para garantir que homens não entrassem no local durante seu banho, tinham que tirar a maçaneta da porta do sanitário.
“Era uma jornada exaustiva, carregavam peso, sem uma recomposição de energia e sem uma devida alimentação. Aliás, segundo os trabalhadores, até a marmita chegava azeda às vezes”, diz Lyra.
As vítimas atuavam como carregadores de grades, equipamentos, bebidas e estruturas metálicas, na montagem do festival e na limpeza de alguns espaços. Elas haviam sido contratadas com a promessa de receber diárias que variavam de R$ 90 a R$ 150, a depender do número de horas trabalhadas, mas os valores prometidos não foram totalmente pagos.
Segundo a fiscalização, os trabalhadores estavam submetidos a condições degradantes, jornadas exaustivas e trabalho forçado, três elementos que configuram a escravidão contemporânea de acordo com o artigo 149 do Código Penal.
“Sabe aquela fotografia clássica do barraco de lona, das necessidades fisiológicas no mato, do consumo de água compartilhadas com os animais, do trabalho escravo rural? Por incrível que pareça, vimos mais ou menos essa fotografia no ambiente urbano do Rock in Rio. Os trabalhadores estavam largados”, explica Alexandre Lyra.
Em nota, a Rock World, organizadora do evento, negou as acusações de trabalho escravo e disse que as autoridades “lançaram sérias acusações”, mas “de maneira precipitada, desrespeitando o direito constitucional ao contraditório, ampla defesa e presunção de inocência, já que os fatos ainda estão sob o crivo de um processo administrativo recém iniciado”. A empresa ressaltou que nenhuma alegação foi comprovada até o momento.
A respeito da denúncia, a Rock World disse que o episódio envolveu apenas trabalhadores de uma empresa terceirizada, a Força Bruta, e que “agiu prontamente” após tomar conhecimento dos fatos. A empresa diz ainda ter instruído as terceirizadas e fornecedoras a realizar contratações respeitando a legislação. Veja a nota completa.
A Força Bruta foi procurada, mas não retornou. O espaço segue aberto.
Foram lavrados 21 autos de infração contra a FBC Backstage Eventos Ltda, empresa contratada, e 11 contra a realizadora do evento, Rock World S.A., ou seja, o organizador do Rock in Rio foi diretamente responsabilizado pelo crime.
De acordo com a força-tarefa, a empresa organizadora do evento deixou de garantir medidas de proteção à saúde e de segurança no trabalho e de instalações adequadas à prestação do serviço, demonstrando falta da devida diligência no tocante ao cumprimento da legislação trabalhista por parte da empresa contratada.
A legislação trabalhista permite a terceirização, inclusive da atividade fim, mas impõe à contratante que monitore se a prestadora de serviços está garantindo condições dignas de trabalho.
Segundo a força-tarefa, as empresas não quiseram firmar Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). Com isso, o Ministério Público do Trabalho afirma que irá adotar as medidas cabíveis após a conclusão do inquérito civil a fim de evitar que as irregularidades constatadas voltem a ocorrer, bem como para garantir a indenização por danos morais individuais às vítimas e danos morais coletivos.
A Rock World diz que não assinou o TAC por não concordar os termos e por entender que as irregularidades “foram realizadas exclusivamente pela Força Bruta”.
O MPT requisitou informações à empresa que emitiu o certificado de “evento sustentável” para o Rock in Rio, para que informe sobre as providências adotadas a partir da constatação de trabalho escravo na edição de 2024. E às empresas que realizaram ações de divulgação comercial no evento, para que expliquem quais medidas serão adotadas a partir de agora.
A fiscalização garantiu o pagamento de três parcelas de seguro-desemprego aos trabalhadores resgatados. A fiscalização conseguiu o pagamento das diárias de trabalho, mas ainda está pleiteando a quitação de outros direitos trabalhistas.
Não é a primeira vez que resgates ocorrem no Rock in Rio. Mas, segundo a fiscalização, diferentemente dos casos anteriores, neste ano a empresa que organiza e produz o Rock in Rio foi considerada diretamente responsável pela condição análoga às de escravizadas das vítimas.
Em setembro de 2013, o Ministério do Trabalho e Emprego apontou a rede de fast food Bob’s como responsável por 93 escravizados. Segundo a fiscalização, eles estavam alojados em locais sem as mínimas condições de dignidade e foram obrigados a contrair dívidas para pagar a credencial e poderem trabalhar, vendendo cerveja e refrigerante.
Para preencher as vagas, o Bob’s utilizou a empresa To East, que, por sua vez, subcontratou a 3D Eventos. Na época, a rede negou à Repórter Brasil que o caso fosse de trabalho escravo, afirmou estar “à disposição das autoridades competentes para continuar prestando todos os esclarecimentos necessários” e prontificou-se a assinar um termo de ajustamento de conduta de forma solidária.
Após a caracterização do crime, a organização do Rock in Rio disse que “a contratação de funcionários é de responsabilidade, firmada em contrato, dos operadores de bares e lanchonetes” e que, “ao tomar ciência das acusações, o Rock in Rio entrou em contato imediatamente com a empresa, nesse caso o Bob´s, para que a mesma tomasse as devidas providências”.
Justificativa semelhante foi dada, dois anos depois, quando a fiscalização resgatou 17 pessoas de condições análogas às de escravo novamente no Rock in Rio. Na edição de 2015, foi constatada escravidão contemporânea na venda de batatas fritas por ambulantes da empresa Batata no Cone, dentro do festival.
Segundo o Ministério do Trabalho, as vítimas gastavam mais do que recebiam para atuar no local. Os ganhos diários eram superados por despesas com hospedagem, exames médicos, transporte, comida, e até com batatas que não eram vendidas ao final do dia e precisavam ser reembolsadas aos empregadores.
A organização do Rock in Rio informou, na época, que “não tem qualquer responsabilidade sobre a contratação de profissionais de outras empresas para atuarem na Cidade do Rock”. A nota ainda disse que “trabalha de acordo com a legislação brasileira e lamenta que este não seja o procedimento adotado por outras empresas”.
A Lei Áurea aboliu a escravidão formal em maio de 1888, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade.
Desde a década de 1940, a legislação brasileira prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.
De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).
Os mais de 63,5 mil trabalhadores resgatados estavam em fazendas de gado, soja, algodão, café, frutas, erva-mate, batatas, cebola, sisal, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para a siderurgia, na extração de caulim e de minérios, na construção civil, em oficinas de costura, em bordéis, entre outras atividades, como o trabalho doméstico.
No total, a pecuária bovina é a principal atividade econômica flagrada desde 1995. Números detalhados sobre as ações de combate ao trabalho escravo podem ser encontrados no Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil.
Denúncias podem ser encaminhadas pelo Sistema Ipê, pelo link ipe.sit.trabalho.gov.br , ou pelo Sistema de Coleta de Denúncias do Ministério Público do Trabalho.
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Força-tarefa resgata 14 da escravidão no Rock in Rio e culpa organização - Instituto Humanitas Unisinos - IHU