22 Dezembro 2024
Com seu último ensaio La passione secondo Maria (A paixão segundo Maria, em tradução livre, Il Mulino, 2024), o filósofo Massimo Cacciari mostra como a arte foi capaz de captar o que a política nunca foi capaz de elaborar.
A entrevista é de Anna Giurickovic Dato, publicada por Domani, 14-11-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Como é possível que o cristianismo não tenha sido fundado sobre uma figura como essa? Como é possível que a cultura europeia tenha assumido tais traços machistas?” Pergunto a Massimo Cacciari, o indomável, o filósofo responde com palavras que devem ser lidas com atenção e ponderadas. Enquanto a humanidade se debate com problemas cruciais, Cacciari nos devolve a inalienabilidade fundamental da dimensão filosófica para entender as vivências humanas, lançando luz sobre o papel dos sentimentos em nossa sociedade: é preciso ter a força para penetrar no poder ou a fragilidade para permitir que o poder penetre à custa de uma perda de valores e razões. Em seu último ensaio La passione secondo Maria (Il Mulino, 2024), Massimo Cacciari mostra como a arte foi capaz de captar o que a política nunca foi capaz de elaborar. De fato, a arte, por meio da figura misericordiosa de Nossa Senhora, é capaz de nos devolver uma percepção profunda do feminino, entendido como um conjunto de valores que devem ser encarnados pela sociedade e pelo poder. Diante das guerras, das derivas securitárias, do populismo penal, só há uma solução: dar ouvidos ao grito ignorado de Maria.
Em seu mais recente ensaio, você oferece uma imagem de Maria como uma mulher totalmente humana, que dá à luz e o faz gritando.
Embora não haja nenhuma figura de Maria dando à luz na natividade, grande parte da teologia interpreta o grito de Maria ao pé da cruz como um grito de parto: é como se naquele momento Maria regenerasse seu filho. Essa Maria que participa plenamente da paixão não é encontrada na tradição evangélica, mas é uma criação de nossa arte pictórica. Ela é uma mulher real, um símbolo de liberdade e misericórdia. Ela não tem nada a ver com o símbolo da mãe terra, é protagonista, não se limita a gerar, mas é a criadora de uma nova ordem. Não é apenas mãe, é salvação.
Enquanto você publica um ensaio destacando o grito da Virgem Maria, o regime talibã no Afeganistão promulga um novo decreto que apaga a voz das mulheres afegãs: não podem mais falar, cantar ou recitar poesias. Elas não podem mais nem mesmo rezar. Também na nossa cultura, esse grito não foi ouvido e isso é um paradoxo absoluto. Como é possível que a cultura europeia - que em sua arte foi capaz de criar esse símbolo extraordinário de mulher que diz livremente sim, que é tudo menos serva obediente e silenciosa, que aceita e assume o seu destino - tenha assumido traços tão machistas? Como o cristianismo pôde não ser fundado sobre uma figura como essa? Uma figura que não existe de forma alguma no judaísmo ou no islamismo. A Maria de quem falo está presente nos ícones da pintura europeia ocidental, mas, apesar disso, ela nunca esteve no centro do mundo europeu e cristão.
Que mal causou a remoção dessa Maria?
O fato de que, apesar dessa figura da mulher símbolo do amor gratuito, da perfeita misericórdia, vivemos hoje em uma sociedade a mil milhas de distância de qualquer ideia de dom e perdão. Vivemos em um mundo que esqueceu completamente a compaixão, o sofrer juntos. Tudo é dominado por paixões frias: inveja, ressentimento, ciúme.
E violência.
E violência.
Você escreve que “no final da busca por nós mesmos, por nossa verdadeira face, é o Outro que se manifesta. O Outro é o nosso próprio fundo”. É importante - diante de um mundo em guerra, que exaspera o conceito de “identidade” - nos lembrarmos da importância do encontro com o Outro?
Hoje em dia, muitos se fecham em sua caverna egoica... Não é assim que poderão evitar o relacionamento com o outro, mas esse será sempre uma relação de exclusão e, portanto, de guerra. Se a busca do self - que é essencial para cada um de nós, porque cada um de nós deve buscar a si mesmo - se tornar um fechamento em si mesmo, então com o outro você só terá uma relação de inimizade. Se, por outro lado, a busca de si for realizada como uma busca dos próprios nomes diferentes, uma compreensão da própria multiplicidade intrínseca, então, ao procurar sintonizar os muitos eus que eu sou, implicitamente também procurarei sintonizar os muitos que estão fora de mim. Se eu me entrincheirar em uma tentativa vã de me definir como uma identidade pura e absoluta, terei apenas uma relação hostil com todos os outros nomes possíveis e imagináveis.
Por um lado, há as migrações e milhares de mortes sem nome; por outro, há essa defesa exacerbada da identidade.
Às vezes, as culturas tendem a se identificar de forma estável e a rejeitar todas as formas de mistura. A situação cultural e política em que vivemos não tem nada a ver com a atenção e o cuidado de Maria com o Outro que sofre, mas está nos antípodas disso. As diferentes culturas tendem a se identificar de forma inóspita, cada uma tentando afirmar sua própria hegemonia, cada uma representando a si mesma como o único Bem e atribuindo às outras culturas apenas valores negativos, se não até mesmo o Mal. Então, torna-se inevitável barricar-se dentro de si mesmo, erguer fronteiras e muralhas. Esforços em vão e tão perigosos hoje mais do que nunca, prenúncios de catástrofes e guerras.
A obsessão securitária e o populismo penal são filhos desse mesmo fenômeno?
São expressões de tudo isso. Mas repito: são fechamentos vãos, porque os movimentos globais, os processos que ocorrem no mundo da tecnologia, da cultura, da ciência, inevitavelmente induzirão fenômenos de transmigração, de mistura. Se, no entanto, não os enfrentarmos com consciência, com conscientização, mas apenas os sofremos, esses processos se concretizarão da maneira mais trágica: a nova ordem mundial se produzirá por meio da guerra.
O fato de ser um problema de cultura também é demonstrado pelo fato de que as derivas securitárias estão destinadas a recuperar o consenso de territórios ideológicos ou de instabilidade social.
Naturalmente, há também toda uma instrumentalização dessa situação que diz respeito ao uso político dessa insegurança, que é alimentada de propósito, precisamente para preservar ou afirmar posições de poder. É necessário entender o perigo, porque onde o perigo é entendido, talvez também possa crescer a possibilidade de salvação.
Falando de justicialismo e securitarismo, abro um parêntese: a barriga de aluguel é agora um “crime universal”. A Itália é, em geral, mais restritiva do que muitos países em relação à questão da parentalidade não biológica. Os tradicionalistas invocam o cristianismo, mas a maternidade de Maria não é a mais atípica de todas?
Qualquer ato que restrinja uma mulher ou que limite sua vontade de maternidade ou que a reduza à sua dimensão meramente biológica contrasta com a figura de Maria, que, em vez disso, engloba toda maternidade consciente, toda maternidade que se propõe a criar algo. A vontade criativa é um ato divino. Ao contrário, qualquer ato puramente egoísta, que vise apenas satisfazer a curiosidade pessoal ou o ego, contrasta radicalmente com um símbolo que é um dom e não guarda nada para si.
Muros e proibições, aumento das penalidades e novos crimes. Em sua opinião, essa crescente demanda por “poder e disciplina” contém uma “demanda por um pai” em uma época sem pais, como é a nossa?
Sim, o pai é a figura que, em nossa civilização, também devia garantir a estabilidade de nossa identidade. Mas é a mãe, é Maria que é a “pessoa” da Misericórdia. O pai deveria reconhecer sua “primazia”. Esse pai está cada vez mais ausente. Mãe e filho parecem se perguntar em tantos ícones, que comento no livro: Senhor, por que nos abandonaste?
Será que Deus nos abandonou?
Há esse drama subjacente em meus ensaios dedicados a Maria. Nos grandes ícones da mãe e do filho, está pintado todo o presságio da tragédia que os aguarda. Essa mãe e esse filho abandonados expressam uma pergunta trágica, a mesma pergunta feita por Cristo na cruz à hora nona: Meu Deus, por que me abandonaste? Aqui a figura do pai parece ter se retirado dramaticamente. Nessas imagens, experimenta-se realmente o grande problema da Europa ou do cristianismo, a proclamação “Deus está morto”. Diante desse massacre de Deus e dos pais, nenhum voto para as novas gerações?
Se o pai não existe mais, isso significa que você não pode mais considerá-lo, mas sempre pode desejá-lo. “Desejar” significa desconsiderar: é o desaparecimento da possibilidade de considerar, mas não da possibilidade de desejar considerar. Portanto: deixem os filhos desejarem!
Qual é o erro dos pais que os filhos não deverão repetir?
A culpa dos pais é não ter visto e entendido o ícone de Maria: um símbolo extraordinário de amor gratuito, de misericórdia, de participação no sofrimento, de capacidade de perdoar. Apesar dos grandes poetas e pintores a terem colocado no centro de suas obras, ela nunca foi ouvida por nossa civilização. Os pais tentaram removê-la de todas as formas, se não a violentar. Não há nada em nossa sociedade, em nossa política e em nossa cultura daquela capacidade de doar livremente, da qual Maria é símbolo. Espero que os filhos possam desejá-la a ponto de poderem “considerá-la”, ou seja, vê-la como uma realidade viva em seu mundo.
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A figura de Maria segundo Cacciari: “Um ícone que a Europa removeu”. Entrevista com Massimo Cacciari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU