12 Novembro 2024
É difícil encontrar alguém que seja capaz de tirar tanto proveito da psicanálise (tanto freudiana quanto lacaniana) para a análise crítica da sociedade atual como a filósofa, socióloga e teórica do direito eslovena Renata Salecl.
Salecl é pesquisadora do Instituto de Criminologia da Faculdade de Direito, na Universidade de Ljubljana, e professora de Psicologia, Psicanálise e Direito na Faculdade de Direito do Birkbeck College, Universidade de Londres. Também mantém vínculos com instituições como a London School of Economics, a Cardozo School of Law, o King's College de Londres, o Instituto de Estudos Avançados em Berlim, a Universidade Humboldt de Berlim, a Universidade George Washington e a Universidade Duke.
A pesquisadora visita o Chile a convite da Universidade Andrés Bello, no contexto das atividades do Doutorado em Teoria Crítica e Sociedade Atual, e do renomado Festival Porto de Ideias.
A entrevista é de Mauro Basaure, publicada por El Mostrador, 05-11-2024. A tradução é do Cepat.
Bom dia, Renata. Muito obrigado pelo tempo que você nos dedica hoje.
Bom dia, Mauro. É um prazer estar com vocês novamente no Chile.
Em sua obra há vários momentos, mas todos unidos por um esforço em aplicar categorias psicanalíticas à análise social e da subjetividade. Você explora a profunda conexão entre desejo, gozo (jouissance) e proibição. Como avalia que essas ideias psicanalíticas lacanianas nos ajudam a compreender melhor as dinâmicas de poder nas sociedades capitalistas atuais?
Para lhe responder, vou me referir especificamente ao neoliberalismo. O capitalismo neoliberal atual se baseia na lógica do desejo descrita na psicanálise lacaniana. O consumismo nos impulsiona a querer o que os outros têm ou o que aparece como um objeto socialmente desejado. A proibição também desempenha um papel importante aqui: as coisas devem ser difíceis de conseguir, caras e com certos limites. No entanto, quando obtemos o objeto desejado, muitas vezes, perdemos o interesse, sentimos que “isto não é”.
As pessoas também questionam sobre o desejo do Outro: como aparece diante dos olhos dos outros e da sociedade em geral. As redes sociais têm um papel crucial na resposta a essa pergunta. Os “likes” e “shares” que recebemos são sinais de reconhecimento perante o Outro, o preço que pagamos pelas amizades, muitas vezes. E a pessoa sempre quer mais “likes”. A insatisfação continua sendo o motor da sociedade atual. O gozo também desempenha um papel vital, pois muitas vezes sentimos que os outros desfrutam mais do que nós ou que o seu gozo nos tira algo.
A sua resposta nos permite ver claramente a possibilidade de conectar a psicanálise com outras áreas da análise social, como a do consumo e dos meios de comunicação. Vamos para o campo político. Em seu livro ‘The Spoils of Freedom’, de 1994, você examina o papel da fantasia na política e a sua função ideológica. Em sua perspectiva, como essas fantasias funcionam para manter as estruturas de poder?
Nesse livro, estudei este ponto em relação às sociedades pós-socialistas da Europa do Leste. Quando um sistema colapsa, é possível observar o colapso da fantasia que as pessoas tinham sobre o seu espaço social, sobre o seu país. No entanto, rapidamente se formam novas fantasias que ajudam as pessoas a lidar com a mudança social. Muitos países pós-socialistas, por exemplo, criaram fantasias sobre o seu passado glorioso antes da revolução socialista, razão pela qual muitos substituíram a estrela comunista em suas bandeiras nacionais por alguns símbolos do passado ou inventaram novos símbolos nacionais.
Esse fenômeno é algo que pode ser observado em diversas outras sociedades. Na comemoração dos 50 anos do golpe de Estado no Chile, usando as suas palavras, pude observar uma fantasia de ordem e paz perdida no passado, justamente na época da ditadura de Pinochet, e isto a propósito da crise de segurança no presente. Uma coisa que me chama a atenção em sua obra (por exemplo, na forma como você usa noções como “fantasia”) é a sua desconfiança em relação a visões puramente racionalistas na abordagem de diferentes fenômenos. Isto vem, sem dúvida, da psicanálise. É assim também que você trabalha em seu livro ‘La tiranía de la elección’, destacando os efeitos subjetivos e até políticos da “liberdade de escolha”. Como isso afeta a nossa tomada de decisões e as nossas expectativas de sucesso e felicidade?
O discurso sobre a felicidade tem gerado muita miséria em nossos tempos. Não me lembro que antes os pais se preocupassem tanto se os seus filhos eram felizes. Agora, isto lhes causa muita ansiedade. Quanto às opções, o problema não é simplesmente que a abundância de opções de consumo pode ser esmagadora, mas, sim, a ideologia que glorifica a ideia de que tudo na vida é uma questão de escolha.
Facilmente, é possível ter a impressão de que quando se toma as decisões corretas, a felicidade e o sucesso serão alcançados. No entanto, as opções são limitadas pela situação social (e econômica) em que vivemos. As decisões também são menos racionais do que pensamos. Mecanismos inconscientes intervêm em nossas escolhas. Além disso, somos influenciados pelo que a sociedade considera uma escolha aceitável.
Quanto à noção de “ansiedade”, em seu livro com esse nome, você discute como o imperativo de maximizar o gozo gera novas formas de angústia em nossa sociedade. Você pode explicar como esse imperativo se relaciona com o aumento de problemas de saúde mental e a busca constante pela otimização pessoal?
Se tomarmos como exemplo os nossos corpos, somos diariamente bombardeados com informações sobre o que devemos fazer para otimizá-los. As pessoas sentem ansiedade por não comer corretamente, por não fazer exercícios suficientes ou por não dormir o necessário. No trabalho, estamos constantemente preocupados por não sermos produtivos o suficiente. A ideia de que não nos relacionamos adequadamente com os nossos parceiros e filhos em casa gera ansiedade. E tudo isso sem falar da ansiedade relacionada a como deveriam ser as nossas casas, o status social que deveríamos ter alcançado, o dinheiro, o tempo livre...
Se eu te li bem, você também acentua os mecanismos subjetivos de defesa, por assim dizer. A ansiedade é, neste sentido, ambivalente. Não se trata de destruir a ansiedade, de eliminá-la completamente. Essa mesma perspectiva pode ser evidenciada em seu livro ‘Pasión por la ignorancia’, no qual você descreve a ignorância como uma estratégia ativa, em vez de uma simples falta de conhecimento. Você pode explicar como essa paixão pela ignorância se manifesta na sociedade contemporânea e como afeta a nossa relação com a informação e as verdades incômodas?
Consideremos os algoritmos que influenciam cada vez mais nossas vidas e os dados que são coletados sobre nós. Aqui, temos uma ignorância sistêmica em jogo. Não sabemos como os algoritmos funcionam, que dados são coletados sobre nós, nem como são vendidos ou manipulados. Além dessa ignorância sistêmica, no âmbito pessoal também temos momentos em que abraçamos ativamente a ignorância.
Há situações em que não conseguimos lidar com o conhecimento (quando, por exemplo, enfrentamos uma doença terrível). Há momentos em que é melhor não saber muito, como no amor romântico, pois podemos deixar de amar rapidamente. E há situações de sobrecarga de informação: quando escutamos constantemente sobre horrores no mundo, podemos preferir a ignorância ao conhecimento.
Permita-me retomar o que você disse em sua resposta anterior sobre a glorificação da escolha. Em seu livro ‘El placer de la transgresión’, reflete sobre o impacto do neoliberalismo na subjetividade e nas emoções como a culpa e a vergonha. Que efeito político você identifica?
Quando a ideologia te convence de que tudo em sua vida é uma questão de escolha, ou quando escuta constantemente que “qualquer um pode conseguir”, você pode rapidamente desenvolver um sentimento de culpa se as coisas não vão bem. As pessoas também se envergonham de ser pobres, como se tivessem tomado decisões equivocadas. É muito benéfico para a ideologia neoliberal que as pessoas sintam culpa e vergonha. Culpam constantemente a si mesmas e, assim, não colocam em perigo a máquina capitalista, que permite que os lucros acabem cada vez mais nos bolsos de poucos.
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“O discurso sobre a felicidade tem gerado muita miséria em nossos tempos”. Entrevista com Renata Salecl - Instituto Humanitas Unisinos - IHU