15 Junho 2024
Os indicadores para medir a felicidade obedecem a padrões consumistas incompatíveis com o respeito pelos seres vivos, denuncia Gaël Brulé, engenheiro ambiental e sociólogo, no seu livro Le coût environnemental du bonheur (O custo ambiental da felicidade).
A entrevista é de Pierre-Yves Lerayer, publicada por Basta!, 14-06-2024. A tradução é do Cepat.
Gaël Brulé, engenheiro de formação inicial, é professor de saúde ambiental na Escola Superior de Saúde de Genebra e professor visitante nas universidades de Neuchâtel e Estrasburgo.
Desde quando medimos a felicidade?
Corremos atrás da felicidade desde a Segunda Guerra Mundial. Antes, nós avaliávamos a vida de um ponto de vista externo, ou seja, do ponto de vista do lugar que cada um ocupa na cidade, no espaço público, na sua religião, na sua família, etc. As duas guerras vão embaralhar as cartas e, diante dos fracassos das grandes narrativas que guiaram as sociedades até então – razão, tecnologia, nação – passaremos a avaliar a vida a partir do seu interior.
A ideia, portanto, não é mais apenas viver bem – ser um bom crente, um bom cidadão, um bom pai –, mas viver uma boa vida. Os indivíduos tornam passam a ser especialistas no seu bem-estar. Nos Estados Unidos – a Europa acompanhará este movimento de perto –, os indicadores de felicidade são desenvolvidos em importantes pesquisas de opinião, como aquelas realizadas por Hadley Cantril, professor da Universidade de Princeton, no final da década de 1940.
As pesquisas de opinião, subsidiadas pelos poderes públicos, pedem aos entrevistados que situem as suas vidas entre uma “melhor vida possível para eles” e uma “pior vida possível para eles”. O seu objetivo é mostrar que a vida nos Estados Unidos é melhor do que em qualquer outro lugar. A partir de então, estes indicadores conjugaram uma forma de comparação e uma certa carga política.
Nós não perguntamos “você está feliz?”, mas antes “como está a sua vida em comparação com o que poderia ser?”. Por exemplo, as classificações permitem mostrar que a vida é melhor nos Estados Unidos do que no bloco comunista, e as enquetes sondam a recepção que as pessoas têm em relação aos programas de financiamento da NASA. Sempre houve um lado político na medição da felicidade, mesmo que esta dimensão sempre tenha estado um pouco escondida. Um dos objetivos do livro é justamente colocá-la novamente em destaque.
Como surgiram esses indicadores de felicidade?
A partir do momento em que a felicidade surgiu como tema social na década de 1960, surgiu um grande número de indicadores, seguindo-se depois uma fase de racionalização a partir da década de 1980. Comitês de especialistas reuniram-se para definir os melhores indicadores de medição da felicidade. O problema é que, segundo estes comitês, os indicadores sociais que melhor mediam a qualidade de uma sociedade eram o PIB, a renda ou outros indicadores socioeconômicos. Foram, portanto, os indicadores de felicidade mais próximos destas noções econômicas que foram mantidos.
Paralelamente, os profissionais de marketing e relações públicas perceberam que a felicidade era um poderoso veículo para atrair as pessoas para a sociedade de consumo e começaram a explorá-la. Grandes empresas americanas como a Coca ou o McDonald’s começaram a utilizá-la de forma bastante ampla, com o seguinte imperativo: “seja feliz e consuma”. A publicidade começa a construir a ideia de que a felicidade depende do envolvimento de alguém no papel de consumidor. Isto levanta questões do ponto de vista ambiental.
Entretanto, você escreve que “não existe uma, mas várias medidas de felicidade” que representam “uma visão da nossa relação com a Terra e com os seres vivos”. Como isso se manifesta na prática?
O que me pareceu importante foi mostrar que a visão da felicidade muda conforme o tempo e o espaço. Sem necessariamente colocar os seres vivos no centro, existem de fato medidas que seriam mais ecocompatíveis. Isso é importante porque quando utilizamos indicadores não comparativos, podemos ter a alegria e a felicidade juntos, e esta é a melhor forma de acessá-la. Já nas comparações com outros há necessariamente um perdedor. Assim, se partirmos de medidas afetivas, ou seja, sentir felicidade ou alegria, torna-se possível ter uma felicidade que não vem às custas da vida, onde não precisamos dominar ou ser melhores.
Existem também expectativas implícitas ou explícitas sobre o que entendemos por felicidade. Entre determinados povos, quechua ou aymara, por exemplo, o bem-estar individual e o bem-estar planetário andam de mãos dadas. As coisas vão mal para nós quando vão mal para a natureza, o que não é de modo algum a narrativa da nossa sociedade ocidental. Na verdade, é exatamente o contrário.
“Nossa esfera íntima está colonizada por narrativas destrutivas”, você escreve. Quais são essas narrativas?
Existe sempre esta ideia segundo a qual, claro, a felicidade é uma coisa íntima e que, como tal, nos pertenceria plenamente. Mas a intimidade é influenciada e colonizada pelas narrativas que se encontram fora de nós. Não somos pessoas isoladas que sentem o que querem sentir; existem condicionamentos externos que são fortes e que chegam a nos impor as condições em que devemos nos sentir bem. E isto é transmitido pela dinâmica das sociedades e nos é repetido mais ou menos diretamente no dia a dia.
Dois exemplos emblemáticos da promessa de felicidade consumista que é destrutiva para o ambiente são as viagens aéreas e as viagens de carro. Se compararmos quem tem o carro maior e quem faz as viagens mais longas, o que as pessoas fazem no estacionamento ou na manhã de segunda-feira quando voltam das férias, vemos muito claramente o que isso implica em termos ecológicos.
Além disso, os países onde as pessoas atualmente declaram ser os mais felizes nas classificações mais populares são os países com a maior pegada ambiental. O que me pareceu interessante foi tratar a felicidade proporcionalmente em relação à pegada ecológica. A ideia não é mais apenas saber se algo te deixa feliz, mas se isso te deixa feliz em relação ao impacto que causa. Deste ponto de vista, vemos que os países ricos são de fato ineficazes na produção da felicidade.
Porque a felicidade é definida pela satisfação de necessidades, limitadas, e de desejos, ilimitados. No entanto, uma vez que grande parte das sociedades ocidentais supriu as necessidades do maior número delas, correm agora para criar e responder a esses desejos, que são poços sem fundo.
Mais uma vez, tendemos a pensar que a felicidade não é política, mas permite-nos transmitir ideias, imaginários e até políticas públicas. A busca da felicidade também é política porque segue o que consideramos ser “bem”, “bom”, “correto”, etc. O mundo mercantil, retransmitido pelas redes sociais e pelas nossas relações interpessoais, sugere-nos que para sermos felizes precisamos consumir de determinada forma, comprar determinada coisa, viajar para determinado lugar, assinar determinado serviço, para alcançar a felicidade.
Como a felicidade pode ser ecológica?
Gostaria, paradoxalmente, de citar o utilitarista Jeremy Bentham [filósofo inglês do século XVIII], não muito bem visto pelos ambientalistas por ter definido as bases da economia moderna, para repensar isso. [O utilitarismo é uma teoria moral e política que nasceu no século XVIII e que prescreve agir de forma a maximizar o bem-estar coletivo.]
Bentham recomenda almejar “a maior felicidade para o maior número de pessoas”. Eu acrescentaria uma dimensão temporal ao propor que devemos almejar “a maior felicidade para o maior número de pessoas… pelo maior tempo possível”. Para isso, parece-me que há um trabalho político em afirmar que determinadas atividades têm um enorme custo ambiental para um ganho marginal de felicidade.
O exemplo das viagens novamente é emblemático. Em certos segmentos minoritários da população, viajar era visto como moralmente repreensível, como na Suécia, onde se desenvolveu a noção de “flygskam”, que é a vergonha de pegar avião. Se removermos o aspecto “cool” de dizer que saímos de férias para longe, se passarmos do “onde você foi” para “o que você descobriu”, se fizermos o trabalho oposto do marketing que tornou as viagens longas socialmente gratificantes, então a busca da felicidade pode ser mais ecológica.
Mas essa não pode ser uma decisão de cada um; é muito pesado para o indivíduo que já tem tantas coisas para administrar. É mais eficaz e mais justo fazê-lo coletivamente através de escolhas políticas. É claro que não tenho todas as soluções, mas qual é a alternativa se não mudarmos a nossa visão da felicidade? Será que escolha não nos será imposta de forma mais brutal?
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“A busca da felicidade é política”. Entrevista com Gaël Brulé - Instituto Humanitas Unisinos - IHU