06 Novembro 2024
"Este papado trouxe à tona inimigos. Aqueles para quem a fidelidade à encarnação de Francisco é simplesmente demais: que, em toda situação humana, a misericórdia de Deus não pode chegar sem limites, que a kenosis de Jesus não pode ser seguida literalmente pela Igreja… e assim por diante", escreve Elsa Antoniazzi, em artigo publicado por Setimanna News, 04-11-2024.
Depois, Jesus partiu com seus discípulos em direção às aldeias ao redor de Cesareia de Filipe, e no caminho questionava seus discípulos dizendo: "Quem dizem as pessoas que eu sou?". E eles responderam: "João Batista; outros dizem Elias e outros um dos profetas". E ele lhes perguntou: "Mas vós, quem dizeis que eu sou?" Pedro respondeu: "Tu és o Cristo". E ordenou-lhes severamente que não falassem dele a ninguém. E começou a ensiná-los que o Filho do homem deveria sofrer muito e ser rejeitado pelos anciãos, pelos chefes dos sacerdotes e pelos escribas, ser morto e, depois de três dias, ressuscitar. Ele falava isso abertamente. Pedro o tomou à parte e começou a repreendê-lo. Mas ele, voltando-se e olhando para seus discípulos, repreendeu Pedro e disse: "Vai para trás de mim, Satanás! Porque tu não pensas segundo Deus, mas segundo os homens". Convocando a multidão junto aos seus discípulos, disse-lhes: "Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me" (Mc 8,27-34).
Evidentemente, o título do nosso encontro suscita temores: se é o pontificado que se destina a fazer um exercício hermenêutico da Palavra, podemos fazer a pergunta, aprendida com o Cardeal Martini: a qual página podemos comparar este evento/esta situação? Tentei, consciente da parcialidade, que não é a confissão de um limite, mas a consciência de que é apenas o início de um exercício comum de leitura da Palavra.
Depois de mim, iniciarão reflexões e nem todas serão feitas por pessoas que se identificam com a comunidade, mas sabemos que somente na escuta de todos, como Jesus faz aqui, o pensamento de cada um terá a espessura necessária para edificar um templo de pedras vivas. Iniciamos a leitura do texto, conhecido pela maioria e bastante marcado pela história da interpretação, de modo que teremos de fazer um esforço de suspensão do julgamento, dito filosoficamente, ou mais prosaicamente teremos de não deixar que a mente e o coração sejam invadidos pela imagética católica.
Jesus está no caminho entre as aldeias próximas de Cesareia de Filipe, periferia das aldeias em relação à cidade, numa área habitada principalmente por gentios, portanto, periferia em relação ao centro, que é Jerusalém, para onde ele e os discípulos com ele estão se dirigindo. Ou seria melhor dizer para onde Jesus está se dirigindo, levando consigo os discípulos.
E é impactante descobrir que o início do anúncio de sua paixão não ocorre em casa, para o pequeno grupo dos seus, mas na estrada, onde Jesus se dirige alternadamente aos seus e à multidão. Quase como se a situação concreta o tivesse levado a enfrentar uma questão que o preocupa: todos o reconheceram como alguém que fala e age com autoridade, positivamente ou negativamente, mas seu povo e seus discípulos parecem distantes de compreender o específico.
Ele está na estrada e, por enquanto, o grupo está com o mestre; poderíamos também pensar que a formação vê Jesus à frente e os outros que o seguem, de acordo com o ritmo de cada um. Mas este seguir aos poucos ganhará força: o seguir a ele por parte de Pedro será sinal de uma passagem decisiva, depois será um chamado a segui-lo, até se tornar verdadeiro seguimento.
O caminho faz parte do anúncio, o anúncio faz Jesus avançar em direção a Jerusalém e seus seguidores, atrás dele. Enquanto isso, a pergunta que quase se torna conversa fiada é sobre o que todos já haviam escutado dos “homens”:
O rei Herodes ouviu falar de Jesus, pois seu nome se tornou famoso. Diziam: "João Batista ressuscitou dos mortos, e por isso tem o poder de fazer prodígios". Outros, porém, diziam: "É Elias". Outros ainda diziam: "É um profeta, como um dos profetas". Mas Herodes, ao ouvir isso, disse: "Aquele João, que eu mandei decapitar, ressuscitou!" (Mc 6,14-16).
Aqui, o evangelista faz um resumo. Quem encontrou Jesus foi chamado a uma novidade de caminho, como João Batista propunha a partir do Batismo, e com Elias remetido à espera do dia definitivo, da vinda do reino, para usar a linguagem evangélica. Como lemos nos versículos anteriores a 8,27, Jesus está posicionado no contexto dos homens de Deus, mas ainda incompreendido.
E então, parando – poderíamos imaginar – ele pergunta: e vós, quem dizeis que eu sou? A pergunta é destinada à comunidade dos discípulos para que a comunidade perceba que com Jesus ocorreu o kairós, o tempo em que se pode dizer "O tempo está cumprido e o reino de Deus está próximo; convertei-vos e crede no Evangelho" (Mc 1,14). E por isso é necessário encontrar palavras que expressem Jesus. Elas não precisam ser necessariamente novas, mas devem ser palavras que saibam caracterizar o tempo de Jesus e o tempo que ele inaugurou.
Pedro respondeu: tu és o Cristo, e a determinação posta pelo artigo cria uma ruptura com a série de ungidos. A resposta é precisa e parece ter compreendido plenamente o kairós anunciado anteriormente por Jesus; é uma resposta unânime, já que um fala por todos.
E aqui deve ocorrer um pouco a nossa suspensão, pois o imaginário católico faz de Pedro o chefe. E as imagens também fazem isso. Uma obra de Vincenzo di Biaggio Catena, agora no Prado, chamou minha atenção.
Pintura de Vincenzo di Biaggio Catena (Foto: Wikimedia Commons)
Pedro sustentado pelas três virtudes teologais. Sem fazer do pintor renascentista um feminista, não posso deixar de pensar que ela nos ajuda a lembrar que entre aqueles discípulos havia mulheres. Por exemplo, aquelas mulheres de quem o próprio Marcos diz que seguiram Jesus desde a Galileia até Jerusalém, nos dias da Páscoa, e que, ao contrário dos homens, permaneceram observando e foram de manhã cedo.
Assim, hoje nos confiamos a esta imagem para lembrar que Pedro fala pela comunidade, está na comunidade, e as mulheres estão na comunidade. À comunidade que lê o evangelho de Marcos, então, nosso autor sugere as palavras para a confissão da fé.
Em que consiste? Para Pedro, é a referência à messianicidade davídica, que nos escritos de Enoque já possui os traços escatológicos. O discípulo declara a santidade, a glória de Deus no Cristo; sim, mas – como depois se explicita – a dificuldade dessa confissão, uma vez conquistada a ruptura em relação à série dos profetas, é reconhecer que aquele homem, autoritário em palavras e obras, mas também marcado pela tristeza de quem não é reconhecido, é o ungido.
A grandeza do Cristo de Deus, como diz João, ou como explicita Mateus, o Cristo Filho do Deus vivo, convive com a pequenez do humano, é apenas um, com a fraqueza do rejeitado e também do que enfrenta essa rejeição com dificuldade.
E antes de correr em direção à cena pascal, esse mistério remete ao dom da encarnação, única condição possível para a celebração da Páscoa do Senhor.
Marcos não se detém explicitamente no nascimento. Os primeiros gestos após o batismo e o deserto, quase prolegômenos, são o chamado dos discípulos. Um chamado de pessoas que não são religiosas por excelência e que estão na Galileia, cidade dos gentios. O chamado para todos, em sentido absoluto, será indicado por Paulo, e Pedro reconhecerá o selo de Deus com a visão que o levará ao centurião de Cafarnaum.
Aqui está o grande tema em que confiar para respeitar o tema da fé dos primeiros. Kierkegaard nos lembra bem que, se para eles era difícil reconhecer sua glória, para nós é bem difícil imaginar sentar-se à mesa com Deus.
Como tudo isso ilumina o exercício do primado petrino, para refletir a vida da Igreja neste tempo de Francisco? De forma um tanto repentina, a Igreja descobriu a estrada como lugar de escuta. Claro, são infinitos os homens e mulheres que viveram assim e também testemunharam isso.
Mas agora Pedro fala por todos e convida a caminhar pela estrada, não só como percurso a seguir, mas sobretudo como realidade periférica em relação aos palácios sagrados – a estrada onde se vive, assim como acontece em tantas periferias de nossas cidades. A estrada, que ocupa pouco espaço e, no entanto, exige tempo, exige movimento, processos.
Um papa e um papado que reafirmaram o óbvio da encarnação, diríamos. Não foi Francisco que descobriu que todo ser humano brilha com a luz de Deus, justamente porque Deus se fez carne. Mas ele nos convida a sintonizar uma única voz que já não sabe separar o amor por Deus e pelos irmãos. E ama e agradece a Deus porque concedeu a cada um irmãos e irmãs, em todos os lugares. As periferias, toda periferia que é também toda distância, são aquela estrada em que ocorre a revelação, o testemunho de Cristo, em qualquer lugar onde demônios sejam expulsos ou se espere que sejam.
Temos na memória imagens absolutamente improváveis antes, como os membros do movimento pela terra recebidos no Vaticano. A sabedoria indígena e os pedidos de muitos indígenas do mundo encontraram voz nas encíclicas. E as vítimas da guerra, resgatadas de seu status de danos colaterais, voluntários ou não.
O silêncio imposto por Jesus sempre desestabiliza o leitor e a leitora, embora seu sentido seja conhecido. No entanto, esse desconcerto ajuda a lembrar a advertência: que o entusiasmo não nos arraste para um anúncio inconsciente, em que o anúncio da boa nova pareça não envolver quem o anuncia.
A comunidade, e nós que lemos com ela, é chamada a não fechar o livro, porque há algo a descobrir que tem a ver com o “e vós, quem dizeis que eu sou?”. Porque o autor do evangelho ainda não fez com que seus personagens pronunciassem o termo Filho de Deus, de forma crente e testemunhal. A trajetória de Jesus não é apenas um acontecimento – interpela, assim como interpela a Escritura que a transmite.
E começa o ensinamento sobre o sofrimento, possível para o Filho do Homem e vítima dos escribas e dos sumos sacerdotes. Para esses discursos não há segredo, nem diante dos discípulos nem diante do povo. E Pedro (mas só Pedro?) não entende o que será a ressurreição, mas entende que haverá sofrimento e considera que isso não é compatível com a figura do Cristo.
E o que acontece, então, com o reconhecimento da encarnação? Paulo nos lembra como Jesus não foi o primeiro a morrer pelos amigos, e Kierkegaard, ao compará-lo a Sócrates, recorda que Jesus não foi nem o primeiro a morrer como inocente.
No entanto, é como se o reconhecimento da encarnação fosse interrompido. Toda a humanidade, mas apenas se resplandecente e capaz de atrair; certamente não a de um amaldiçoado que pende de um madeiro.
Ciente da cena, a comunidade de leitores sabe que essa passagem é inevitável. A história geralmente não acolhe bem quem denuncia que o rei está nu, quem expõe desigualdades de todo tipo: mas Deus nos oferece essa estranha receita de salvação – morrer para dar fruto, amar Jesus, segui-lo e perder a própria vida por ele e pelo Evangelho.
São os corajosos apelos pela paz que percorrem os finos fios da diplomacia, às vezes sem graça diplomática, mas sempre com o coração atento. Pois bem, esses apelos e a inércia eclesial com que são ouvidos evidenciam que nesses temas nem sempre o reconhecimento por parte de Pedro é compartilhado.
João não menciona a palavra sobre Satanás, mas na cena do lava-pés, apresenta uma situação semelhante em que Jesus repreende Pedro por ele não ter captado o horizonte em que se move:
Aproximou-se de Simão Pedro e este lhe disse: “Senhor, vais lavar os meus pés?” Jesus respondeu: “O que faço, tu não o sabes agora, mas compreendê-lo-ás depois.” Disse-lhe Pedro: “Jamais me lavarás os pés!” Jesus respondeu: “Se eu não te lavar, não terás parte comigo.” Simão Pedro lhe disse: “Senhor, não somente os pés, mas também as mãos e a cabeça!” Jesus disse: “Aquele que tomou banho não necessita lavar senão os pés, pois está todo limpo; e vós estais limpos, mas não todos.” Pois ele sabia quem o trairia; por isso disse: “Nem todos estais limpos” (Jo 13, 6-11).
Pelo relato, sabemos da traição de Judas e de Pedro, mas Jesus lava os pés de todos. Francisco não é menos do que Pedro, mas todos são chamados a estar ali e acolher o gesto do Senhor. Não cabe a ninguém reconhecer Satanás; cabe a todos reconhecer o testemunho do Senhor.
A severa repreensão de Jesus explica bem a importância da questão: sem acolher a vida doada, não há espaço para o cumprimento da revelação do amor do Pai que Jesus testemunha.
Uma resistência natural corre o risco de se tornar negação de Deus, de nos colocar entre os inimigos de Deus, ou até mesmo de quase nos tornarmos o inimigo. E esse papado trouxe à tona inimigos. Aqueles para quem a fidelidade à encarnação de Francisco é simplesmente demais: que, em toda situação humana, a misericórdia de Deus não pode chegar sem limites, que a kenosis de Jesus não pode ser seguida literalmente pela Igreja… e assim por diante.
Um papado que trouxe à tona inimigos, que reconheceu como a nossa atitude natural tende a se opor ao olhar infinito de Deus, revelou que a pergunta inicial de Jesus é um passo integrante do seguimento. Pensar segundo Deus é o destino, nossa predestinação, como sugere Paulo.
Contudo, como é próprio da humanidade, nem tudo é preto no branco. Dúvidas foram instiladas, críticas e manobras de deslegitimação, mas também caminhos interrompidos. Relembrar a reprimenda de Jesus traz consigo a severa advertência à comunidade e recorda o compromisso de aceitar a encarnação até suas últimas consequências, para que o reconhecimento do Cristo possa ser testemunho do amor do Pai.
E sabemos que Marcos é severo com os discípulos. No final, quem o reconhecerá de perto será um centurião, diante da morte. E mesmo diante da ressurreição, o evangelista estará atento para não transformar o fechamento do relato em um final feliz. Ele nos entrega o silêncio daqueles que entendem que realmente é o kairós, que todas as palavras, as obras e a própria vida de Jesus são a palavra definitiva de Deus.
E acrescenta que aquele medo que tanto estigmatizamos nas mulheres não deve nos acompanhar. Que sejam a fé, a caridade e a esperança a nos acompanhar; para que a Igreja, esperemos no tempo de Francisco e além, saiba com coragem ouvir, consolar e acompanhar as vítimas de abuso, e denunciar, prevenir para conter essa terrível chaga.
Por outro lado, um dia as mulheres falaram: após terem seguido a morte de longe, como Pedro, foram as primeiras a conhecer a ressurreição, sem trair. Esperemos que a Igreja tenha a coragem delas, inclusive em relação às próprias mulheres, compreendendo o que já está escrito:
Pois todos vós que fostes batizados em Cristo vos revestistes de Cristo. Não há mais judeu nem grego; não há mais escravo nem livre; não há mais homem e mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus (Gl 3,27-28).
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Francisco após Francisco: Pedro. Artigo de Elsa Antoniazzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU