Sinodalidade: o calcanhar de Aquiles do pontificado de Francisco. Entrevista especial com Marinella Perroni

“Há um cisma a frio, isto é, há pessoas que simplesmente abandonam a Igreja por estarem desiludidas, por verem a Igreja como uma realidade incapaz de reformas, novidades e de responder às demandas do tempo”, diz a teóloga

Foto: Reprodução

30 Novembro 2023

Se, de um lado, a Igreja sinodal “é o grande investimento de Francisco”, isto é, “aquilo que Papa, de forma aberta e declarada, quer deixar para a Igreja”, de outro, o Sínodo para Amazônia e a primeira seção do Sínodo sobre a Sinodalidade têm sido interpretados à luz da “desilusão”, como se fossem “o calcanhar de Aquiles” do pontificado, observa a teóloga Marinella Perroni em videoconferência intitulada A Opção Francisco e o sínodo sobre a sinodalidade. Esperanças e desafios, promovida pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU na semana passada, 23-11-2023. “É interessante ver que a desilusão foi provocada por dois sínodos, como se o calcanhar de Aquiles, o ponto fraco desse pontificado, pudesse ser exatamente a experiência do sínodo”, sublinha.

Na avaliação da conferencista, “Francisco estabeleceu com [os sínodos] um corpo a corpo, uma confrontação, uma luta que revelou uma forte resistência à sinodalidade”. Para ela, a pergunta emergente do processo sinodal até o momento é: “o que Francisco desejava obter? Difundir tranquilidade, serenidade, não dar armas nas mãos dos seus adversários  porque, desde o início do pontificado, é muito difícil gerenciar tudo isso? Ou, de alguma forma, ele queria abrir, criar um brainstorming na Igreja Católica, remisturar tudo, criar um movimento telúrico, porque propostas, instâncias, ilusões, esperanças, haviam sido difundidas?”

A seguir, publicamos a palestra de Marinella Perroni no formato de entrevista, juntamente com as perguntas formuladas pelos participantes. Nas respostas, a teóloga fala das proximidades e diferenças entre o pontificado do Papa Francisco e Bento XVI. “Diria que não há muitos elementos em comum entre Bento e Francisco, exceto o que disse no início, isto é, a mesma visão do condicionante mariano-petrino como única forma de organizar e tornar pacíficas as coisas na Igreja. O estilo é o mesmo: às mulheres, o carisma, aos homens, a autoridade. Lembrem que é mais importante o carisma do que a autoridade, mas depois lembrem que quem decide é a autoridade e não o carisma. Esse é o nó no qual se baseia não só a questão da presença e do papel das mulheres na Igreja, mas, do ponto de vista teológico, como ela é entendida dentro da Igreja”, resume.

Marinella Perroni (Foto: Womensordination.org)

Marinella Perroni é doutora em Teologia pelo Pontificio Ateneo Sant'Anselmo, de Roma, onde foi professora de Novo Testamento por vários anos e, hoje, é professora emérita. É uma das fundadoras da associação “Coordenação de Teólogas Italianas” e participa da Associazione Laica di Cultura Biblica.

A entrevista foi originalmente publicada por Instituto Humanitas Unisinos - IHU, no dia 30-11-2023.

Confira a entrevista.

IHU – Como avalia os dez anos do pontificado de Francisco?

Marinella Perroni – Quando Bergoglio foi eleito e escolheu o nome Francisco, ele se apresentou como um papa que queria fazer a diferença, assumindo um nome que ninguém tinha escolhido. Sabemos bem, porém, que avaliar um pontificado exige a distância de um juízo histórico porque um pontificado é uma realidade que tem a ver com a grande história. Não é somente um fato eclesial; tem a ver com os eventos e a história do mundo. Nós vivenciamos esse momento diretamente. É inevitável que entremos nessa realidade do pontificado com um juízo que construímos ao longo do tempo, que talvez precise ser reavaliado, mas o fato é que elaboramos o nosso juízo.

Vínhamos de dois pontificados que, à sua maneira, mas em forte continuidade entre eles, impuseram o que eu chamaria de a práxis romana à Igreja já globalizada, intercultural, e muito cansada, devido a tensões internas, e asfixiada por grupos de poder eclesiástico com diferentes graus de influência, mas todos preocupados apenas em preservar o status quo. Os pontificados de João Paulo II e Bento XVI tinham deixado a Igreja em um estado de cansaço, de fadiga, um pouco, devido ao fato de que as situações em volta da Igreja certamente não eram e ainda não são as melhores.

O mundo não nos apresenta motivos nem de esperança nem de confiança. Mas um pouco também porque João Paulo II e Bento XVI tiveram, em relação à Igreja Católica, uma espécie de autoridade que visava manter o status quo, sustentando, assim, uma série de grupos de poder. Não somente aqueles institucionais, curiais e outros, mas também os mais recentes. Para todos esses, era fundamental manter o status quo que permitia que eles pudessem exercer sua influência e poder. Nessa situação, o surgimento da presença de Bergoglio na varanda de São Pedro, aquela sua forma de se dirigir à multidão e se apresentar como um bispo e pedir a benção do povo, demonstrou que ele queria falar uma linguagem diferente. Para nós, que estávamos assistindo aquele evento, pareceu imediatamente claro que os tons estavam mudando. Todos sabemos que são os tons que fazem a música e então a música mudaria. Essa linguagem tinha o sabor da profecia. Logo depois, nos demos conta de que estávamos ouvindo palavras e vendo gestos que realmente fazia tempo que queríamos ouvir e ver.

É como se Francisco tivesse, longe, numa parte silenciosa da Igreja, que tinha sido colocada de lado nos últimos pontificados, despertado a esperança e a ilusão. Francisco devolveu o oxigênio a homens e mulheres fiéis que tinham permanecidos fiéis, mas estavam cansados devido à paralisação que estava caracterizando a Igreja, seja por causa dos muitos anos do pontificado de João Paulo II, seja por causa da expectativa de Ratzinger poder reinstituir tudo aquilo que, depois do Concílio, segundo a visão dele, tinha turvado a vida da Igreja. Francisco despertou consciências ressequidas dentro e fora da Igreja. Ele monopolizou as atenções com uma linguagem estrangeira. Mas ele dissolveu nódulos de ressentimento ou desânimo. Em uma grande parte da Igreja Católica houve um crescimento muito forte das expectativas e das ilusões.

IHU – Em que sentido?

Marinella Perroni – Francisco apresentou aquilo que continuou sendo um ponto crítico, fraco, discutível, da orientação que ele deu para o seu pontificado, magistério e decisões. Essa é uma ferida inquietante que apareceu logo em seguida. Na primeira coletiva de imprensa que ele concedeu enquanto estava no avião, voltando do Oriente, tudo aquilo que ele continuava confirmando, ou seja, sua capacidade de abrir novas pistas e de dar impulsos proféticos, recebeu um golpe que nos fez refletir. Ele soou o alarme. Nesta entrevista, ele falou das mulheres porque um jornalista perguntou.

Eu gostaria de fazer um comentário pessoal: considero que colocar a questão das mulheres é, hoje, absolutamente o indicador mais transparente da configuração de pensamento do próprio interlocutor, sobretudo se é eclesiástico. É sobre a realidade das mulheres que são construídos os posicionamentos, as decisões, as problematizações. Nesse sentido, a realidade das mulheres e das mulheres na Igreja representa, em minha opinião, um obstáculo.

Princípio mariano-petrino

Naquela coletiva de imprensa, Francisco apresentou essa pedra que nos faz tropeçar porque não conseguimos sair de uma obsessão que condicionou todos os últimos pontificados desde Pio XII até hoje, que é a obsessão do princípio mariano-petrino. Outro dia, o Papa continuou mencionando esse discurso, adiando o discurso sobre as mulheres. A questão das mulheres é remetida para esse único princípio, que deveria servir, segundo os pontífices – mas também segundo todos os que se referem a esse princípio –, para explicar, de forma pacífica, sem causar problemas [todas as questões relativas à atuação das mulheres na Igreja], aliás, resolvendo todos os problemas que poderiam derivar das inquietudes e expectativas que as mulheres estão vivenciando dentro de todas as igrejas e, em específico, na Católica.

Com o princípio mariano-petrino, o Papa repete o que seus antecessores tinham dito. Ou seja, a Igreja tem essa garantia numa dupla frente. De um lado, tem o carisma, ou seja, tudo o que tem a ver com as atitudes de misericórdia, consolo, de conforto, também certa visão sapiencial, que seria feminina e que é representada, garantida, comprovada, pela figura de Maria. De outro lado, o princípio mencionado é o de governo, de autoridade, que é garantido em relação à figura de Pedro. Os pontífices esperaram e continuam esperando que, dessa forma, as pessoas possam ficar mais tranquilas e as tensões possam ser resolvidas porque, para eles, isso significa reconhecer que tanto as mulheres quanto os homens fazem parte da Igreja e são irrenunciáveis. Mas as mulheres como Maria, capazes daquele carisma místico, e os homens, como Pedro, capazes de governar e ter a autoridade.

Como podem imaginar, isso é completamente contrário a qualquer questionamento dos preconceitos do patriarcado, dos preconceitos que regeram as sociedades nas quais vivemos. Não querer questionar esse preconceito do feminino ou da diferença sexual, como se quer identificar, que por natureza e graça as mulheres teriam o carisma e por natureza e graça os homens teriam o ministério – isto é, continuar guardando esse tipo de dualismo e configuração –, é contrário a qualquer regra já adquirida nas nossas sociedades. É contrário a qualquer regra já adquirida para a convivência e a corresponsabilidade e o compartilhamento entre homens e mulheres dentro de um grupo humano, tanto civil quanto religioso.

É possível ver que a relação entre Igreja e mulheres e mulheres e Igreja não diz respeito somente às tensões da nossa época, provocadas por tudo aquilo que chamamos de feminino. Mas também serve para esclarecer e entender a capacidade que a Igreja Católica Romana tem de entrar em diálogo com as ciências. Não é um exagero pensar, embora tenham mudado completamente as condições e os contextos, que hoje a Igreja Católica corre o risco de vivenciar, em relação às ciências antropológicas – penso em relação à antropologia, sociologia e psicologia, até chegar à história, à política, que já se tornaram um patrimônio vivo da cultura contemporânea –, a mesma tensão e a mesma rejeição que, no século XVII, vivenciou em relação ao avanço das ciências físicas. Ninguém, hoje, pode imaginar ser Galileu Galilei, porém as ciências antropológicas estão tendo dificuldade em relação às igrejas. Nós questionamos se não haveria uma incapacidade relativa de se dar conta de que é por meio da confrontação com as ciências que a Igreja responde à sua missão no presente.

IHU – Muitos consideram o Papa Francisco uma voz de autoridade no mundo hoje. Como analisa essa atribuição à luz da reflexão que está fazendo?

Marinella Perroni – É inevitável que o caráter, o temperamento e a forma de ser de uma pessoa, e de um papa, tenha um grande peso na gestão do seu papel. Isso vale para todos e não tem problema. Francisco sempre reconheceu que foi acusado de autoritarismo. Às vezes, até reconheceu ter esse defeito, digamos assim. É preciso ter isso em mente, ou seja, relembrar aquilo que ouvi na família desde pequena, isto é, que há certo elemento da autoridade do papa que não pode ser questionado.

Poderíamos perguntar se as tomadas de posição de Francisco são expressões de um autoritarismo psicológico que ele mesmo reconhece ter tido e exercido no passado, ou se se trata de uma figura com forte autoridade. Isso é afirmado por todos os que exaltam a figura de Francisco por fora. Agora, eu poderia fazer uma enquete e diria que as pessoas que não pertencem à Igreja julgariam Francisco como uma pessoa com autoridade. Mas, por outro lado, se me dirigisse a pessoas dentro da Igreja, quanto mais o círculo se restringe, com pessoas mais próximas dele, a resposta seria que não se trata de uma pessoa com autoridade, mas autoritária.

Poderíamos falar muito mais coisas sobre isso, mas o que é interessante para mim é traçar o perfil da pessoa que escolheu o nome de ruptura, que representa uma alternativa à Tradição. Eu gostaria de relembrar que todos nós carregamos o que fomos, somos, o que os eventos nos ensinaram e aquilo que nos impuseram ser. Gostaria de dizer que a grande ilusão inicial [em relação ao pontificado], a partir de certo momento, começou a ser substituída por uma espécie de desilusão em relação a alguns aspectos e não em relação a tudo. Eu sempre destaco pontos críticos quando me perguntam em relação ao magistério de palavras e obras de Francisco, e sinto a necessidade de dizer que algumas coisas começam a transformar a ilusão em desilusão.

IHU – Pode dar exemplos?

Marinella Perroni – Quando os sintomas do mal-estar e de desilusão começaram a surgir e a ser manifestados pela opinião pública e eclesial? Vejam bem, não estou falando de rejeição, pois Francisco sempre foi, coitado, rejeitado por vários opositores. Estou falando de sintomas de desilusão que, de certa forma, chegaram e alcançaram aquela característica do pontificado quando Francisco foi eleito. É interessante ver que a desilusão foi provocada por dois sínodos, como se o calcanhar de Aquiles, o ponto fraco desse pontificado, pudesse ser exatamente a experiência sinodal, ou de tudo aquilo que está em volta deste evento.

IHU – Como avalia o processo sinodal?

Marinella Perroni – A Igreja sinodal é o grande investimento de Francisco, é aquilo que ele, de forma aberta e declarada, quer deixar à Igreja. É uma questão muito delicada. Por que a relação que o Papa teve com o Sínodo para a Amazônia e o Caminho Sinodal alemão obscureceu uma imagem de pontificado que resultava extremamente carregada de esperança, de abertura? Por que isso aconteceu? Esses dois sínodos e a relação que Francisco estabeleceu com eles foi um corpo a corpo, uma confrontação, a luta que revelou uma forte resistência à sinodalidade. Mas cuidado porque aqui estamos realmente entrando no cerne da problemática, uma sinodalidade proposta e entendida como metodologia de liderança da Igreja, como estratégia de governo.

Todos lembramos a forte ilusão, primeiramente por parte do Sínodo para a Amazônia, porque os pedidos apresentados, quase em unanimidade, foram absolutamente recusados por Francisco. Sobre o Caminho Sinodal, a imprensa continua falando disso, dizendo que o Papa está fazendo o possível para mostrar que, entre as intenções desse processo, está a intenção de representar um cisma e os alemães estão conseguindo fazer. Pelo contrário, a Igreja alemã, desde o início, tinha declarado absolutamente que este não era o seu objetivo.

Sinodalidade

Não sei no Brasil, mas na Itália, no âmbito católico, mas também como resposta e reação às outras igrejas, a terminologia da sinodalidade se tornou algo obsessivo. É verdade que a sinodalidade é a marca que Francisco quer imprimir à sua eclesiologia, porque dessa forma respeita a caracterização que o discurso sobre a sinodalidade tomou nas últimas décadas. Então, quanto às declarações, parece que Francisco investiu neste conjunto de termos: “sínodo”, “sinodalidade”, “Igreja sinodal”, e todo o potencial que ele sente ter disposição para, enfim, chegar a uma proposta de Igreja sinodal a todo mundo cristão.

O primeiro ponto diz respeito à questão da terminologia. A questão que surge neste caso é muito específica: houve um crescente verbal, que diria que foi invasivo, ou seja, como um polvo, que tem tentáculos e, de certa forma, consegue penetrar esses tentáculos por tudo. Não sei em outros países, mas na Itália isso representou uma obsessão verbal sobre sínodo, sinodalidade, Igreja sinodal e também, por outro lado, há a contradição dos fatos.

Isso abre para um grande problema dentro da Igreja. Mas também é verdade que a participação das igrejas locais, que demonstraram coragem para apresentar petições e levantar questões, foi um sinal muito sério. Um sinal de verificar que na época pós-conciliar a Igreja realmente mudou. Contudo, é preciso observar que tudo isso provocou, no povo de Deus – naquela parte que estava aguardando um despertar depois do caráter pesado dos últimos dois anos –, uma clara exigência de reformas.

A Opção Francisco e o sínodo sobre a sinodalidade. Esperanças e desafios:

Em muitas igrejas nacionais foram fortes as questões e instâncias que pediam uma série de reformas dentro da Igreja. Também foi bastante visível que assim que a elaboração da preparação do sínodo subia de nível, a necessidade de algumas reformas aparecia, como as duas mais importantes, que é o papel das mulheres e o celibato sacerdotal. Assim que os documentos passavam de uma fase de elaboração para outra, essas demandas eram atenuadas, mas as igrejas apresentavam pedidos muito claros. Com isso foi possível entender que algumas questões não têm como ser superadas, e no sínodo isso foi evidente.

Com base naquilo que me falaram, as duas questões, tanto sobre o papel e a presença das mulheres quanto sobre a do celibato, foram, sim, colocadas em volta das mesas [no sínodo] para expressar a dinâmica sinodal. Mas, em minha opinião, aconteceu algo muito inquietante – sobretudo se pensarmos em um horizonte de crescente utilização da terminologia “sínodo”, “sinodalidade”, “Igreja sinodal” –, que foi a imposição do silêncio aos participantes e o total controle da informação.

Isso com certeza coloca uma questão importante: tudo que saiu do sínodo de forma pública propunha não aquilo que circulou no circuito sinodal, mas aquilo que, de forma autoritária, a organização centralizada do sínodo estava propondo como ponto de chegada. Mas também é verdade que se insistiu muito em uma caracterização da caracterização da sinodalidade e da Igreja sinodal acentuada no plano do intimismo subjetivo individual.

O que isso significa? Um forte exercício, em todos os dias do sínodo – e isso foi confirmado por todos os presentes –, de tipo espiritual, para adquirir uma postura de acolhimento e de silêncio como critério da sinodalidade eclesial. Então, aqui se coloca uma pergunta: a sinodalidade de que tanto se falou é uma modalidade que a Igreja tem de governar a si mesma ou seria transferida para a atitude relacional? É claro que as duas coisas não podem ser colocadas em contraste, mas estão em planos diferentes.

Um segundo ponto é o que podemos ver, sobretudo no período de recepção do Concílio Vaticano II, mas que também foi declarado de forma aberta por Bento XVI, que o problema posto por aquele Concílio seria o fato de ter experimentado o risco de uma protestantização da Igreja Católica. Enfim, tudo aquilo que há mais de 500 a Igreja Católica não consegue digerir, ou seja, a Reforma.

Acredito que as instâncias que vieram de baixo colocaram o centralismo romano à prova porque nós sabemos que, como católicos, uma verdadeira reforma só é possível se um pontífice romano a decide e segue adiante com ela. Mas Francisco afirma repetidamente que não vai fazer isso. Ele fará reformas pequenas, importantes, para talvez mudar atitudes, comportamentos, pontos de vista, padrões de avaliação, mas também práticas de vida. Nem ele vai ter a coragem de desatar o nó do passado e o pesadelo da Reforma luterana, que nunca foi metabolizado devido ao medo da protestantização da Igreja.

Processos

O que lhe falta é a capacidade de pensar processos de reforma que sejam rápidos porque hoje o tempo está sujeito a uma aceleração contínua e os ritmos com os quais a Igreja Católica chegou a assumir alguns critérios de novidade sempre foram muito lentos. Hoje, efetuar processos de reformas ou reforma significa dizer que tudo isso precisa mudar porque a aceleração pede uma agilidade que não é comum para a Igreja Católica Romana, principalmente sobre a forma como o centralismo romano monárquico é obrigado a se movimentar.

Um problema mais sério é que todos os que estão cientes dessa realidade entenderam que a única reforma digna desse nome passará pela revisão do ordenamento ministerial, uma tarefa que o Concílio desejava e que foi abordada pelos grandes teólogos da segunda metade do século XX, e depois foi silenciada pela restauração dos sucessivos pontificados. Tentar achar modalidades pequenas, intervenções sobre a formação do clero, ao final, não levam àquilo que o Concílio havia começado como uma perspectiva, ou seja, repensar o ordenamento ministerial da Igreja Católica.

Se esse é o quadro, a questão que se impõe – vou pronunciá-la como a reação que um grande teólogo vivo que participou do sínodo teve e me disse – é: há elementos de grande decepção, mas a Igreja segue adiante com a lógica dos pequenos passos; também esse sínodo representou um pequeno passo. A pergunta é: a lógica dos pequenos passos é suficiente? Essa é uma questão de oscilação que estamos vivenciando entre inquietudes que se acentuaram, devido à desilusão que mencionei antes e também devido a atitudes mais ponderadas, porque, no fim, nos damos conta de que os grandes passos ninguém consegue dar.

O que Francisco desejava obter?

Diante desse quadro, a pergunta que poderíamos fazer é: “o que Francisco desejava obter? Difundir tranquilidade, serenidade, não dar armas nas mãos dos seus adversários  porque, desde o início do pontificado, é muito difícil gerenciar tudo isso? Ou, de alguma forma, ele queria abrir, criar um brainstorming na Igreja Católica, remisturar tudo, criar um movimento telúrico, porque propostas, instâncias, ilusões, esperanças, haviam sido difundidas?”

É claro que o fato de ele ter decidido celebrar o sínodo com um ano de diferença entre a primeira e a segunda parte nos faz pensar nisto, ou seja, dar o tempo à Igreja para metabolizar essa época de passagem, de transição, com todas as exigências e pedidos que ela carrega. A forma como ele pediu para gerenciar a primeira etapa do sínodo deixa, ao contrário, pensar que ele está mais preocupado com o cuidado das questões que não podem chegar adiante e não chegam no nível da reforma.

Mulheres

Gostaria de voltar, de forma rápida, ao indicador mulheres. O que Francisco fez no motu proprio Spiritus Domini [Sobre a modificação do Cân. 230, § 1 do Código de Direito Canônico acerca do acesso das pessoas do sexo feminino ao ministério instituído do leitorado e do acolitado]? De um lado, de forma quase banal, reconheceu o que há décadas já acontece, isto é, que as mulheres são inseridas, na medida do possível, na liturgia, no mundo inteiro. Por outro lado, porém, deu força para esse movimento, criando ministérios instituídos e, pela primeira vez em relação ao Direito Canônico, eliminou a cláusula da diferença sexual. Os ministérios não estão vinculados ao gênero masculino. Aqui também teríamos de nos perguntar se se trata de uma lógica dos pequenos passos, e sobre a lógica de ter consultado as igrejas nacionais. Esse foi um ato que representou uma forma de inserção de uma prática bastante incomum.

IHU – Como avalia a recepção acerca da conclusão da primeira seção do Sínodo sobre a Sinodalidade?

Marinella Perroni – A avaliação do Sínodo, que acabou de ser celebrado como experiencial, no qual os bispos deveriam experimentar um estilo sinodal afetivo, que é típico da espiritualidade e da pedagogia inaciana, é um elemento propulsivo ou vai frear as outras dinâmicas? É uma lógica de pequenos passos, mas sempre com a ameaça aberta de grandes cismas. O cisma foi uma condição possível dentro das igrejas, mas, hoje, vivemos uma época de grandes cismas midiáticos e de pequenos, mas difundidos, cismas submersos porque as igrejas, pelo menos na Itália, estão se esvaziando.

Vou repetir a pergunta: a lógica dos pequenos passos é suficiente? É produtiva? É uma lógica que, afinal de contas, responde a uma estratégia? Talvez a história vá dizer isso ou vai mostrar que a lógica dos pequenos passos ainda é a única que podemos empregar e que deve ser suficiente. Essa, para mim, é a questão que, enquanto crentes e pertencentes à Igreja, nos deixa inquietos e nos questiona diante do processo sinodal, que parece ser a marca que Francisco quer imprimir ao seu pontificado ao longo da história.

IHU – Quais os elementos comuns nos pontificados de Bento XVI e de Francisco?

Marinella Perroni – Não sou eclesióloga e não poderia responder de forma detalhada, mas, em minha opinião, entre Bento e Francisco houve uma grande cisura; não há uma continuidade. Os dois pontificados em continuidade clara foram João Paulo II e Bento, com suas diversidades. Francisco, apesar de ter tentado de todas as formas não dar razões para ter atrito com o pontificado precedente, com a figura de Bento de forma explícita, com certeza demonstrou, com palavras e fatos, que tinha outro tipo de configuração.

Primeiramente, o atual pontífice vem de outro mundo. Não somente porque um é argentino e o outro é alemão, mas porque um era um certo tipo de alemão, sobretudo um teólogo com muitos problemas com todos os teólogos do seu tempo, com fortes conflitos, e o outro não é teólogo no sentido acadêmico, mas tem conflitos com outras realidades. Os dois se apresentaram com uma bagagem muito diferente de experiência eclesial, mas de proveniência cultural e religiosa. Diria que não há muitos elementos em comum entre Bento e Francisco, exceto o que disse no início, isto é, a mesma visão do condicionante mariano-petrino como única forma de organizar e tornar pacíficas as coisas na Igreja.

O estilo é o mesmo: às mulheres, o carisma; aos homens, a autoridade. Lembrem que é mais importante o carisma do que a autoridade, mas depois lembrem que quem decide é a autoridade e não o carisma. Esse é o nó no qual se baseia não só a questão da presença e do papel das mulheres na Igreja, mas, do ponto de vista teológico, como ela é entendida dentro da Igreja. Autoridade, ministerialidade e carismaticidade. É preciso romper com essa ideia de que um é masculino e outro é feminino. A questão é como eles entram em diálogo, uma vez que são as duas almas da vida humana, da vida de qualquer instituição e também da Igreja.

IHU – Pensando na realidade complexa da Igreja, teria alguma possibilidade de o atual pontificado realizar uma reforma significativa?

Marinella Perroni – Isso é realmente o que esperamos. Infelizmente, alguns elementos nos convidam a não ter muitas esperanças nesse sentido. Francisco disse algumas coisas de forma clara. Ele disse que não vai abordar algumas questões. Mas também é verdade que – e aqui em Roma essa é a grande questão do momento – Francisco declara isso, mas, do ponto de vista estratégico, ele mostra elementos que questionam essa defesa do status quo. Ele diz que pode intervir em algumas realidades, como a questão das mulheres, pode fazer algumas pequenas reformas, que talvez nem sejam muito pequenas, como a inserção de papéis dentro dos circuitos vaticanos, curiais, o reconhecimento da presença das mulheres no sínodo.

As mulheres tiveram direito de voto, mas elas representavam quem, se foram escolhidas pelos homens? Não estavam representando o mundo das mulheres nas igrejas, mas o mundo das mulheres que os homens da Igreja gostariam que fossem. É verdade que tinham direito de voto, mas todos foram chamados a votar com base no que, se as questões colocadas no sínodo até agora não foram questões sobre as quais foi pedido que se chegue a uma decisão, para que uma pressão possa ser feita junto ao pontífice para seguir um certo caminho? Se as questões são, afinal de contas, muito gerais, teóricas, de pequeno porte, as mulheres poderiam votar, mas assim não se chega a reformas.

O Papa entendeu algumas coisas perfeitamente porque ele disse que aquele caminho ele não queria percorrer. Por exemplo, o caminho da ordenação das mulheres. Sobre o diaconato, ele é mais ambíguo. Tenta ganhar tempo. Mas sobre a questão da ordenação, sobre o ministério ordenado, continuam considerando o sacerdócio como o único ministério ordenado. Então é claro que no sínodo ele disse “não”, isto é, “não tenho nenhuma intenção de abordar essa questão”.

O que entendemos por reforma significativa? Talvez ter mais mulheres no Vaticano, fazer, de forma simbólica, com que esses homens aprendam a dialogar com as mulheres, compartilhando necessidades. Se for nesse sentido, sim, é verdade. Sobre o quanto isso foi significativo, diria que bastante, mas não suficiente para uma real reforma da Igreja, em minha opinião.

IHU – Quais seriam os pequenos passos trazidos pelo Sínodo para a Amazônia e pelo Sínodo sobre a Sinodalidade? Considera que são passos duradouros ou é possível retroceder?

Marinella Perroni – Talvez eu fale de forma superficial, mas, para mim, dois passos fundamentais propostos pelo Sínodo para a Amazônia não dizem respeito a questões específicas, como a ordenação de homens casados e à abertura ao ministério para as mulheres. Acerca dessas duas realidades, o Papa disse não; ele fechou qualquer tipo de diálogo. Mas, de fato, o Sínodo para a Amazônia deu luz, publicamente, diante de toda a Igreja – até porque lá não foi feito silenciamento algum – a realidades eclesiais no grande universo católico, que são muito diferentes entre si. Ser bispo na Amazônia é diferente de ser bispo em Roma.

Primeiro, a palavra Igreja diz respeito a realidades estruturalmente diferentes, de forma profunda, que apresenta problemas quanto à gestão centralizada e abstrata por parte de Roma. O Sínodo para a Amazônia deixou isso muito claro. Depois isso foi um pouco obscurecido, digamos assim, mas foi um traço muito importante para mim. O que significa também dizer que as reformas nascem e crescem conforme as pressões que as igrejas nacionais fazem nos diversos contextos em que as igrejas vivem.

A segunda questão que o Sínodo para a Amazônia destacou é que se trata de um organismo consultivo, mas o Papa pode mesmo não levar em consideração a quase maioria dos bispos que pedem algo para ele. Esta foi uma ferida do sínodo, ou seja, quando a quase maioria não pode decidir. Talvez o sínodo seja considerado como um dos momentos decisivos dessa flexão do pontificado. No Sínodo sobre a Sinodalidade, como mencionei antes, o pequeno passo é representado pelo fato de que primeiramente se colocou a questão da sinodalidade em nível relacional, o que tem sua importância. Ele pode educar os bispos mais alheios à capacidade de relações não hierarquicamente configuradas. Isso com certeza foi feito.

A primeira Sessão do Sínodo sobre Sinodalidade. Análises e reflexões:

Outra questão é: quando se fala em sinodalidade, em qual nível da vida da Igreja estamos nos movendo? Pois se estamos falando em estar juntos, dialogar, que somos um só povo, poderíamos ir para uma pizzaria para fazer isso; não é preciso ir para a Igreja. Ou seja, não se trata de algo que exige um comportamento eclesial específico. Mas se a questão da sinodalidade for colocada em outro nível, que é aquele da passagem do consultivo para o decisório, então se trata de ir muito mais adiante na busca de procedimentos possíveis para gerenciar de forma democrática o princípio de autoridade.

A Igreja Católica tem uma gestão monárquica do princípio de autoridade e, se fosse na direção de uma gestão democrática, pediria uma série de passos intermediários muito sérios. Mas Francisco falou sobre isso de todas as formas: ele não quer percorrer esses caminhos. A Igreja não é uma democracia. É claro que isso significa eliminar completamente a possibilidade de a sinodalidade se movimentar em nível técnico da gestão da autoridade.

IHU – Vê a possibilidade de um cisma na Igreja nesta década?

Marinella Perroni – Percebo fortes resistências ao Concílio Vaticano II e à autoridade papal. Desta vez, não por parte dos protestantes, mas dos católicos. No YouTube, assisti ao pronunciamento do presidente eleito da Argentina contra o Papa Francisco. Diria que é bem mais do que um cisma; é uma condenação e uma rejeição total. Enfim, isso deverá ser avaliado se pertence a um folclore individual ou se realmente representa uma espécie de vox populi. Eu diria que aquilo que o presidente eleito declarou é o que é dito contra Francisco, pelo menos na Itália, nas redes sociais.

Há um movimento de desconfissão, de acusar o Papa de heresia, de satanismo, de maçonaria. Quanto isso é difundido e quanto os cinco cardeais que se pronunciaram contra Francisco são ou não pilotos disso, eu não sei dizer. Precisaríamos ver como os movimentos seguirão adiante. Mas que existe um cisma desse tipo em andamento, ou seja, de contrariedade, com certeza, existe. Há um cisma a frio, isto é, há pessoas que simplesmente abandonam a Igreja por estar desiludidas, por ver a Igreja como uma realidade incapaz de reformas, novidades e de responder às demandas do tempo. Hoje, ninguém “pede” o batismo, não há nenhum tipo de instrução cristã. Isso também deveria ser considerado um cisma frio.

IHU – O resultado das votações do texto do capítulo nove sobre as mulheres na vida e missão da Igreja indica os aspectos que mais incomodam na discussão sobre a realidade das mulheres na instituição. O que aponta como os principais desafios e possibilidades para a continuidade das buscas no caminho sinodal sobre este tema?

Marinella Perroni – Tenho uma visão fortemente crítica. Foi decidido que é preciso escutar o amadurecimento do pensamento das mulheres – nem quero falar dos pedidos, das pretensões – sobre si mesmas, sobre o mundo, sobre Deus. Até que isso não seja finalmente realizado e se renuncie a isso ao buscar aquelas mulheres que são as mais clericais do clero e que repetem exatamente aquilo que é a convenção vigente, a Igreja Católica não vai mudar.

Infelizmente a Igreja sempre teve resistência, desde o início, em relação a essa questão. Faz décadas que pedimos para falarem com os movimentos feministas, escutarem as mulheres. Mas a instituição eclesiástica não sabe fazer isso e tem medo, e aí muda alguma coisa, mas, na maioria, é uma operação de camuflagem. Eu sei que sou radical nesse sentido, mas acredito que, até que não haja uma passagem para o verdadeiro mundo das mulheres e não para o imaginário que a Igreja construiu das mulheres, o caminho sinodal vai existir, mas não vai ter um impacto sobre essa problemática.

IHU – O Papa Francisco tem destacado a opção preferencial da Igreja pelos pobres. É sabido que no Brasil a pobreza tem cor. Considera suficiente a atuação da Igreja em opções antirracistas?

Marinella Perroni – O presidente eleito argentino reconhece que a opção da Igreja pelos pobres tem uma conotação forte para o pontificado de Francisco e esse é o motivo pelo qual, para ele, Francisco deveria ser considerado herético e condenado. Se ele pudesse, condenaria o Papa para o inferno amanhã. Mas o que pode ser feito pela Igreja hoje, em um mundo que está se orientando para um aumento das desigualdades e para um forte aumento das guerras?

Esses dois fenômenos estão ligados entre si. O mundo tenta se opor ao aumento das desigualdades, que é um fenômeno que tem mil consequências, mil rostos, mil realidades, e às guerras. Diante de tudo isso, os primeiros sintomas são as migrações, e a primeira resposta que temos dado é o racismo, eleições de governos racistas, rejeição da imigração. A fórmula de opção preferencial da Igreja pelos pobres me parece quase sentimental, romântica, algo que poderia ser dito na década de 1960. Francisco vem daquela parte do mundo em que a pressão da pobreza ainda é forte. Ele tentou relançar essa questão com linguagem mundial, mas o mundo vai em outra direção e não quer ouvir essa linguagem.

Não sei o que podemos fazer. Podemos continuar com a lógica dos sinais, mais do que pequenos passos. Há infinitos homens e mulheres de Igreja que continuam levando adiante uma opção fundamental pelos pobres, o acolhimento, mas, como podem ver, de novo, trata-se de um compromisso individual, de sentimento pessoal, de disponibilidade particular e não de um nível de política eclesial, de política da fé, e política da prática da caridade. Infelizmente, a Igreja não pode apresentar um mundo diferente do mundo que tem em sua volta, o que se reflete de forma recíproca. O mundo que está se criando a nossa volta, infelizmente, está indo na direção em que os pobres são deixados de lado.

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