24 Junho 2023
"A redução da fé à obviedade de uma espécie de “jogo dos quatro cantos” entre clichês catequéticos e estímulos emocionalmente gratificantes, levada adiante por uma versão inteiramente clerical dos modernos influenciadores, não contribui para dar força ao corpo de Cristo, mas o enfraquece dia após dia. Procuro também tentar entender por que os pastores não se apercebem do perigo de se entregarem ao fascínio do efêmero, talvez consolador, porque pelo menos enche por uma noite as igrejas; inquietador, porém, porque favorece uma crença religiosa fraca e flutuante", escreve Marinella Perroni, biblista e fundadora da Coordenação de Teólogas Italianas, em artigo publicado por Il Regno delle donne, 19-06-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Há muito tempo que penso nisso, e não porque goste de brincar com as palavras. Hannah Arendt cunhou a expressão: a banalidade do mal. Uma expressão aparentemente leve, mas que se impôs porque é a situação em que são pronunciadas que realça o calibre das palavras.
Os argumentos que os líderes nazistas usavam em sua própria defesa após o horror da Segunda Guerra Mundial e dos campos de extermínio causavam grande consternação justamente pela banalização que faziam do imenso mal realizado. No passado dia 4 de dezembro, dia do aniversário da morte da filósofa alemã naturalizada estadunidense, essa frase inevitavelmente repercutiu várias vezes nas redes sociais. E, movida por uma série de pensamentos que me ocupam e preocupam há tempo, disse a mim mesma que aquela expressão podia ser revertida para o mal da banalidade.
Sim, há tempos me preocupam a falta de uma pesquisa teológica digna desse nome, de uma divulgação religiosa de qualidade, de uma espiritualidade capaz de banir os clichês e de corajosas perspectivas eclesiais. Pelo contrário, espalha-se uma pregação medíocre, que tem a pretensão de ser edificante, porque captura com a insídia dos clichês. A banalidade, justamente, mas uma banalidade que, além de ser ruim, causa mal. Vimos as repercussões que o declínio do nível da comunicação de massa teve no tecido cultural italiano: por que não perceber a tempo que também na comunicação da fé todo movimento de redução ilude, porque é "instantâneo", mas depois só pode desiludir porque não alimenta realmente as raízes da profissão de fé, da espiritualidade, da prática litúrgica, do comportamento ético?
De fato, neste tempo tão difícil para o mundo inteiro, mas também tão opaco para as Igrejas, parece mesmo que a inteligência da fé e a política da fé estejam condenadas a submeter-se à banalidade. Afirmei isso certa vez durante uma conferência pública e, no final, dois editores católicos vieram me pedir para escrever um livro rapidamente sobre isso porque estavam interessadas em publicá-lo imediatamente. Fiquei satisfeita. Não por lisonja, mas porque era um sinal - e, de fato, para mim não foi nem o primeiro nem o último - que o desconforto é compartilhado: não sou eu a única que acredita que a situação seja grave porque muitas vezes confundimos os sintomas - como as igrejas vazias ou a falta de vocações - com a doença, ou acreditamos viver uma espécie de convalescença pós-pandemia e não nos apercebemos, porém, que a pandemia apenas acelerou o processo, não o causou.
Tentei me esclarecer um pouco de cada vez porque a banalidade é perigosa. A redução da fé à obviedade de uma espécie de “jogo dos quatro cantos” entre clichês catequéticos e estímulos emocionalmente gratificantes, levada adiante por uma versão inteiramente clerical dos modernos influenciadores, não contribui para dar força ao corpo de Cristo, mas o enfraquece dia após dia. Procuro também tentar entender por que os pastores não se apercebem do perigo de se entregarem ao fascínio do efêmero, talvez consolador, porque pelo menos enche por uma noite as igrejas; inquietador, porém, porque favorece uma crença religiosa fraca e flutuante.
Ouvimos ser repetido por analistas de renome que a crise da participação democrática com tudo o que ela implica foi favorecida precisamente pelo enfraquecimento progressivo da qualidade das correias de transmissão da comunicação que inervam e irrigam o tecido social. Por que não fazemos o esforço de nos perguntar o que tudo isso pode significar quando relacionado ao corpo eclesial?
O Papa Francisco tentou colocar no centro de seu magistério aquela teologia do povo na qual se expressa a visão argentina específica da teologia da libertação e que, no entanto, deveria nos fazer refletir profundamente. Trata-se de questionar que especificidade assume a terminologia sociocultural “povo/popular” quando se refere a uma sociedade pós-moderna, como a italiana, em que a rigidez ideológica dos dogmas e dos vínculos econômico-financeiros é diretamente proporcional à fluidez das redes relacionais, mesmo aquelas primárias, bem como ao enfraquecimento especular dos sujeitos individuais cada vez mais empurrados para tendências narcísicas.
A força anestesiante desse modelo, que já assumiu feições totalitárias, está à vista de todos e é favorecida justamente por doses poderosas de banalizações e simplificações comunicativas que iludem ser possível evitar se confrontar com a complexidade. É certo, no entanto, que o desenfreado processo de descristianização não pode ser respondido tirando o pó de ideologias religiosas já obsoletas ou armando cruzadas inúteis, mas com um investimento robusto de recursos econômicos e humanos em uma formação cultural da qual faça plenamente parte uma pesquisa teológica séria, capaz de enfrentar problemas e questões dos homens e das mulheres do nosso tempo e do nosso contexto sociocultural.
Vêm-me agora à memória as palavras de Paulo que, no âmbito desse nosso contexto atual, ressoam também como uma advertência às Igrejas que continuam a temer que os crentes saiam da condição de minoridade: “Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino" (1 Cor 13,11). Tenho a sensação de que o mito da fé da velhinha, que era contraposto à decisão dos crentes da minha geração de seguirem o caminho dos estudos teológicos como leigos e sobretudo como mulheres, o paternalismo eclesiástico tenha hoje substituído o mito de uma "fé infantil" que evita qualquer esforço para acreditar "de todo coração e de toda alma, de todo entendimento e de todas as forças" (Mc 12,30 e par; cf. Dt 6,4s e Lv 19,18).
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O mal da banalidade. Na igreja, por exemplo. Artigo de Marinella Perroni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU