Patriarcado, narcisismo, violência de gênero, educação para o amor... Após o feminicídio de Giulia Cecchettin, se espalhou um debate público - doloroso, amplo, necessário - que viu entrelaçadas questões relativas a âmbitos distintos, oferecendo leituras culturais e de reconstrução histórica, temas típicos da psicanálise, da análise sociológica e da pedagogia. Conversamos sobre isso com Massimo Recalcati, psicanalista lacaniano e ensaísta, observador atento das transformações da sociedade contemporânea e dos papéis familiares.
A entrevista é de Massimo Calvi, publicada por Avvenire, 26-11-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Que papel a cultura patriarcal pode ter tido no caso do feminicídio de Giulia? Ainda é uma leitura eficaz?
A referência à cultura patriarcal é necessária, eu diria essencial. É o pano de fundo inconsciente coletivo da violência contra as mulheres. De acordo com essa cultura, que dominou no Ocidente até o início dos anos 1960 com o 1968 e os movimentos feministas, a mulher é concebida como afligida por uma minoridade ontológica, cognitiva e moral. O homem é, consequentemente, autorizado a exercer sobre ela um poder disciplinar que também justifica o recurso à violência.
Bastaria assistir ao "Comizi d'amore" de Pasolini para ter uma ideia precisa do caráter invasivo dessa representação nas relações homem-mulher na Itália antes de 1968. Contudo, também é verdade que estamos noutro tempo e que a condição da mulher é profundamente mudada.
Em que sentido? Como aconteceu essa transformação?
A cultura masculinista, como filha natural da ideologia do patriarcado, não está mais em uma posição dominante. Seria impossível não reconhecer isso. Mas suas cinzas não se extinguiram completamente. Além disso, temos que distinguir duas faces daquela ideologia. Uma delas é representada pelo ódio sexófobo em relação às mulheres. A sua encarnação mais recente é aquela da polícia moral iraniana, que exige o apagamento do corpo feminino. É o terrível legado do nosso Malleus maleficarum que identificava com as bruxas as mulheres não resignadas à obediência passiva em relação aos homens. A outra face do patriarcado, aquela mais obscura, difícil de nomear, mas que, em vez disso, é central para compreender o assassinato de Giulia, é aquela do vínculo interminável com a mãe.
Essa leitura frequentemente retorna em casos semelhantes. Posto que não se trata de uma perspectiva de julgamento em relação a um caso específico, o que se entende especificamente?
Os vínculos primários não se interrompem, mas tendem a se prolongar na vida adulta, reproduzindo a fusionalidade e a posse que originariamente os caracteriza. É algo que não pertence à Idade Média, mas diz respeito profundamente à cultura do nosso tempo. A cultura do sucesso individual e do princípio do desempenho dificulta, de fato, a elaboração do fracasso e da falha e estimula o nascimento de relações refúgio, adesivas, simbióticas, de nichos narcisistas separados do mundo, uma espécie de "reinfetações" fantasmagóricas, abrigo de uma realidade precária, ameaçadora, desorientadora...
O que há por trás de um feminicídio? A vontade de domínio e posse? A dificuldade na relação com um “outro”, uma pessoa diferente? A incapacidade de lidar com uma rejeição?
É um monstro de duas cabeças. A primeira é aquela do narcisismo, a segunda é aquela da depressão. A violência masculinista como impulso ao domínio do parceiro reduzido à propriedade exalta a dimensão narcisista. Mas também traz consigo o gelo e a escuridão sem fim da depressão: “Eu te domino a ponto de te matar para que tu nunca possas me abandonar, porque se me abandonares, não sobraria nada de mim."
Por que, no contexto de uma relação, quase sempre são os homens que matam?
Como eu dizia, estamos diante das cinzas da cultura patriarcal. Os homens violentos percebem a mulher como uma ameaça à sua identidade. São emotivamente analfabetos. O desejo de possuir manifesta a sua fragilidade subjacente. Diante da ferida narcísica de um abandono, podem reagir violentamente porque não toleram a liberdade da mulher que desconcerta o seu prestígio fálico.
A dissolução da figura paterna na sociedade hipermoderna, tema que você domina, tem a ver com determinadas formas de violência?
Não há dúvidas. Na verdade, é preciso distinguir a representação patriarcal da paternidade do princípio paterno. Esse é um tema que permeia também a pregação de Jesus. O pai que detém o poder e faz uso sádico dele, gera violência em vez de limitá-la. Ele é a figura terrível do pai-patrão de quem justamente o Deus das Sagradas Escrituras se diferencia. Pode-se ler assim a terrível época do totalitarismo no século XX: o pai-Duce, o pai-Fuhrer tranquiliza as multidões negando a liberdade. Diferentemente, o princípio paterno introduz uma Lei que sabe conter a violência na medida em que lembra que o ser humano não pode ser tudo. Essa é, de fato, a origem primária da violência humana: o impulso de querer ser tudo. É o que acontece no nosso tempo. O princípio paterno corrige esse impulso lembrando que o ser humano é sempre não-tudo.
A própria ideia de masculino e feminino hoje parece estar em crise. O amor ainda precisa dessa diferença?
O amor, dizia Lacan, é sempre heterossexual. Com o acréscimo, porém, de que devemos aprender a não reduzir a heterossexualidade à diferença anatômica entre os sexos. O amor é heterossexual por ser sempre amor pelo héteros, pelo outro, pela sua diferença... A existência desse amor não é de forma alguma garantida pela diferença anatômica, como bem sabem os psicanalistas.
Um dos medos que está se espalhando entre as garotas e entre os pais, quando confrontados com um feminicídio cometido por “um bom rapaz”, é que todos os homens sejam potencialmente perigosos. Isso pode realmente acontecer a qualquer um?
Mais que observar os filhos de maneira policialesca, os pais deveriam preocupar-se em testemunhar o amor na família. Se um filho cresce numa família onde a afetividade não assusta, onde o cuidado e a atenção pelo outro são exercícios cotidianos, onde o respeito pelo feminino se realiza nos fatos e não nas palavras, onde não há recurso à violência ou ao insulto, não se tornará um homem que odeia as mulheres.